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Dono de comunidade terapêutica, Pastor Cleiton Collins desarquiva projeto para regulamentar entidades

Raíssa Ebrahim / 31/07/2019

O deputado estadual Pastor Cleiton Collins (PP) desarquivou um projeto de lei para regulamentar as Comunidades Terapêuticas (CTs), instituições privadas, geralmente religiosas e instaladas em locais isolados, de acolhimento e recuperação de dependentes de álcool e drogas. O próprio pastor é, juntamente com a esposa, a vereadora do Recife Missionária Michele Collins (PP), dono de uma das maiores redes do estado, a Saravida. O PL deve ser um dos destaques na volta do recesso parlamentar na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) nesta quinta-feira (1º).

No estado, o assunto envolve um intrincado jogo político-partidário e pode ameaçar a sobrevivência da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), referência nacional na luta antimanicomial e no modelo de redução de danos. A verba e a estrutura do SUS são o centro da disputa. Atualmente as CTs em Pernambuco recebem dinheiro federal via Ministério da Cidadania. No Recife, os recursos também chegam por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social.

O PL de Collins, depois de desarquivado, em abril, passou pela Comissão de Constituição, Legislação e Justiça – inclusive com aprovação do deputado Isaltino Nascimento (PSB), líder do governo Paulo Câmara na Assembleia – e pode ir a plenário a qualquer momento. Alguns dias antes do recesso parlamentar, o deputado João Paulo (PCdoB) pediu vistas e o projeto será debatido na Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo mandato coletivo Juntas (Psol).

A votação da Comissão de Direitos Humanos exercerá um grande peso no processo, mas uma rejeição não impede o PL de ir a plenário.

“É necessário ouvir as pessoas, os conselhos, a sociedade civil, para depois tomar uma posição, foi por isso que pedi vistas”, diz João Paulo. “Vamos discutir agora a questão do mérito. Nós estamos vivendo um momento de grande turbulência provocado pelo governo Bolsonaro, que quer desconstituir o SUS, privatizar os serviços de saúde e colocar serviços prioritários para serem entregues à iniciativa privada”, argumenta.

Diversas entidades, junto com o Movimento de Luta Antimanicomial – que vem se articulando para analisar a possibilidade de uma frente – estão unidas num grupo de articulação para discutir a questão e articular o movimento para tentar barrar o projeto na Alepe.

Mas não é só no estado que os Collins mostram sua força. No Recife, a atual secretária-executiva de Políticas sobre Drogas, Ana Paula Marques, era coordenadora geral da Saravida. O prefeito de Olinda, Professor Lupércio (Solidariedade), também é fundador de uma comunidade terapêutica, a Casa de Recuperação Cristo Liberta, em Igarassu.

“Cleiton Collins quer onerar duplamente o Estado incluindo as Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial para receberem verba do SUS. Mas elas não têm aparato de saúde, não têm médico, enfermeiro, assistente social. Não são equipamentos de saúde, e o próprio projeto de lei diz isso”, argumenta Carol Vergolino, codeputada das Juntas.

LEIA TAMBÉM: O jogo político-partidário por trás das comunidades terapêuticas em Pernambuco

Entidades reunidas contra o PL de Collins:
Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme)
Conselho Federal de Psicologia
Conselho Municipal de Saúde
Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa)
Coletivo Intercambiantes PE
Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco
Universidade de Pernambuco (UPE)
Fórum de Trabalhadores de Saúde Mental do Recife
Movimento de Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades

Parlamentares que votaram a favor do PL de Collins na Comissão de Constituição, Legislação e Justiça:
Waldemar Borges (PSB) – presidente da comissão
Tony Gel (MSB)
Isaltino Nascimento (PSB)
Priscila Krause (DEM)
Alberto Feitosa (Solidariedade)
João Paulo Costa (Avante)
Romário Dias (PSD)
Antônio Moraes (PP)
Romero Sales Filho (PTB)

O embate de legislações

O grupo contrário ao projeto de lei argumenta que, apesar do movimento nacional, existe uma lei estadual sobre política de drogas (14.561/2011) que já reconhece, como um de seus eixos, as Comunidades Terapêuticas como entidades da sociedade civil organizada na condição de rede complementar. “Por que então uma lei específica focada em apenas um dispositivo dentro da oferta de serviços já previstos na lei de drogas?”, questiona Marcela Lucena, psicóloga, sanitarista, militante da redução de danos e integrante do movimento Libertando Subjetividades.

Além disso, a Lei 11.064, de 16 de maio de 1994, da reforma estadual psiquiátrica, descreve uma rede de serviços em que não constam Comunidades Terapêuticas nem hospitais psiquiátricos. Qualquer dispositivo que não esteja listado na lei teria que passar pelo Conselho Estadual de Saúde.

O grupo de articulação também aponta outro choque entre legislações: Pernambuco conta com uma resolução (747/2018) do Conselho Estadual de Saúde que, em 2018, aprovou uma remodelagem da Raps nas 12 regionais de saúde que não reconhece as Comunidades Terapêuticas.

Por fim, já existe um documento (RDC 29 de 2011) que regulamenta, por meio da vigilância sanitária, as CTs quando elas prestam serviços no âmbito da saúde, o que, como explicado acima, não é o caso de Pernambuco.

“As entidades não são contra as organizações da sociedade civil, desde que elas respeitem os direitos humanos. Mas não com financiamento público porque isso significa retirar recursos do serviço público, enquanto o financiamento da Rede de Rede de Atenção Psicossocial está congelado”, explica Marcela.

“Na Rede de Atenção Psicossocial, além da presença do Programa Atitude, viemos, ao longo dos últimos anos, construindo a ideia de que a abstinência pode ser resultado de um processo, a partir das possibilidades e desejos do usuário, mas não a única condição de tratamento. Porque a questão não é a droga em si, é a relação que cada sujeito estabelece com a droga. E isso tem a ver com contexto, histórico de vida, vulnerabilidade social”, acrescenta.

Por dentro das Comunidades Terapêuticas

FOTO ANDRE BORGES AGÊNCIA BRASÍLIA

As CTs não são consideradas equipamentos da rede pública de saúde nem contam com regulamentação federal. No governo Jair Bolsonaro (PSL), elas passaram a fazer parte do Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas. Num contexto de congelamento de gastos públicos com saúde e educação (Emenda Constitucional do Teto de Gastos), o governo federal vem, através do ministro da Cidadania, Osmar Terra, apoiando abertamente esse modelo e aumentando os volumes de financiamento.

O modelo das Comunidades Terapêuticas vai de encontro ao processo de desospitalização, iniciado no Brasil no começo dos anos 2000 e previsto na Lei da Reforma Psiquiátrica. Sem a presença constante de uma equipe multidisciplinar de saúde, essas instituições muitas vezes atuam com trabalho forçado, a chamada “laborterapia”, e impõem rotinas rígidas de orações. Também costumam ser promotoras de exclusão e de maus-tratos e veem na abstinência o único caminho possível de tratamento.

Um relatório do Ministério Público Federal publicado em 2018 inspecionou 28 CTs nas cinco regiões do Brasil, duas delas em Pernambuco, e o resultado foi alarmante: em todas elas, foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos.

A reforma administrativa do governador Paulo Câmara (PSB), no início do ano, quando assumiu o segundo mandato, trouxe como uma das principais novidades a criação da Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas. Quem assumiu a pasta, com um orçamento de R$ 37,6 milhões, foi o então secretário de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, o mineiro Cloves Benevides. Ele é filiado ao PP e indicação de Eduardo da Fonte, deputado federal e presidente estadual do partido que tem no Pastor Cleiton Collins uma das suas principais lideranças e detém a segunda maior bancada da Alepe, com 10 deputados eleitos em 2018.

Principais pontos críticos do PL de Collins

A pedido da Marco Zero Conteúdo, Iris Maria, representando o Fórum de Trabalhadores de Saúde Mental do Estado de Pernambuco, elencou os principais pontos críticos do Projeto de Lei para regulamentar as Comunidades Terapêuticas em Pernambuco. Iris também faz parte do Conselho Municipal de Saúde e trabalha na Raps Recife. Atuou na saúde mental durante 14 anos e foi gerente clínica do Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPs AD) Vicente Araújo, em Campo Grande; e do CAPs AD CPTRA (Centro de Prevenção, Tratamento e Reabilitação de Alcoolismo), na Tamarineira.

1. A política nacional vigente em Pernambuco aprovada em pleno ordinário do Conselho Estadual de Saúde tem como diretrizes a redução de danos. A diretriz da clínica não está apresentado no PL;

2. O artigo 2º é contraditório no que se refere às práticas de cuidado que vêm sendo desenvolvidas nas CTs, sem considerar a saúde integral dos usuários, prevista pela Lei Orgânica da Saúde. Se as CTs pressupõem acolhimento e cuidado, ele precisa ser universal e igualitário, e não apenas atender demandas sociais. O artigo nega o princípio da equidade, previsto tanto no SUS quanto no SUAS (Serviço Único de Assistência Social);

3. O PL usa o termo “drogas”. Mas é importante definir a que drogas o projeto se refere e sua base legal. Levando em consideração que o uso de drogas é multifatorial e, em função disso, a intervenção não pode ser parcial. As CTs não levam em consideração o cuidado integral;

4. Se as CTs são dispositivo do SUAS, então suas obrigações não competem aos conselhos de saúde. Pois a política da assistência social possui seus dispositivos específicos de controle pela sociedade;

5. A inclusão das CTs na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) não cabe ao “poder público”, como é citado no PL. Ela teria que estar em concordância com o controle social, órgão máximo e deliberativo composto pelo governo, trabalhadores e sociedade civil. Se não for assim, fere do princípio da participação social, sendo portanto inconstitucional;

6. O PL não fala sobre as internações compulsórias (por medida judicial), deixando lacuna para uma interpretação subjetiva, inclusive de familiares, que muitas vezes não entendem a situação. Existe outra normativa, a Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216), que direciona como isso acontece.

Atualizado em 1/8/19, às 8h00

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com