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“É melhor ter uma polícia menor e controlada do que uma polícia grande descontrolada”, diz Bruno Paes Manso

Crédito: Emiliano Hagge/Fecomercio SP

Até a publicação do livro A República das Milícias, em outubro de 2020, o uso das palavras “milícias” para designar as quadrilhas de policiais que dominam territórios de comunidades no Rio de Janeiro parecia algo de significado incerto ou ambíguo. A obra, resultado de anos de pesquisa em documentos oficiais, entrevistas e trabalho de campo do jornalista e cientista político Bruno Paes Manso lançou luzes sobre nomes, fatos, circunstâncias e crimes reais, ajudando a compreender as milícias como um fenômeno concreto e não um conceito quase abstrato.

Mais do que identificar policiais assassinos, ladrões, extorsionários e traficantes e listar seus crimes, Paes Manso aponta com clareza as relações políticas e sociais que possibilitaram o surgimento das milícias e ajudam a fortalecê-las. E, em contrapartida, como a corrupção das polícias militar e civil do Rio de Janeiro impulsionam carreiras de políticos. Não é à toa que o subtítulo do livro é Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro.

Paes Manso está longe de ser um novato nos estudos das causas e consequências da violência. Trabalhou como repórter nos principais jornais paulistas, na revista Veja e foi um dos fundadores do site Ponte Jornalismo, que amplia o debate dos direitos humanos realizando coberturas de temas ligados à segurança pública e à justiça. A formação acadêmica do mestrado ao pós-doutorado em Ciência Política correu paralela à carreira profissional como jornalista.

Nesta entrevista para a Marco Zero Conteúdo, Paes Manso, que faz parte do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), alertou que não há motivos para acreditar que as gangues armadas irão ficar distantes do processo eleitoral em 2022. Segundo ele, não é de hoje que as milícias financiam campanhas e elegem candidatos que, eleitos, garantem as condições para que continuem a enriquecer com atividades criminosas.

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Marco Zero Conteúdo – Nas últimas chacinas e ações violentas da Polícia Militar em comunidades do Rio de Janeiro, como em São Gonçalo, Vila Cruzeiro, Jacarezinho, alguns colunistas de portais e telejornais afirmaram que os ataques seriam uma provocação ao Supremo Tribunal Federal, que proibiu a realização de operações policiais nas comunidades durante a pandemia. O senhor acredita que essas operações da PM são realmente provocações ao STF? E até onde uma queda de braço dessas pode chegar?

Bruno Paes Manso – No caso de Jacarezinho ficou mais evidente que foi uma provocação ou um teste. Logo depois da incursão da polícia por lá, naquela época o que se discutiu e o que se imaginou foi o fato de um policial ter sido atingido, ter sido o que provocou a reação desproporcional e emocional da polícia, levando à morte de mais de 25 pessoas [foram 29 mortos a tiros em 6 de maio de 2021]. Quando houve a coletiva de imprensa, eles logo começaram a falar a respeito da justificativa, que eles tinham justificação legal para fazer aquilo. Assim, a incursão meio que desafiou o STF a proibir aquilo, mas decisão não proibia as incursões, mas sim exigia que elas fossem justificadas, que tivessem um motivo estratégico explícito para que ocorressem. E isso levou a uma diminuição das incursões da polícia e essa diminuição produziu uma queda nos homicídios e uma queda nos crimes de uma forma geral. E isso se deu depois dessa intervenção da Justiça, do STF, provocando redução da entrada das polícias nos morros.

Crédito: Brasil de Fato

Reduziram-se os homicídios, reduziram-se os roubos e começou a se perceber que essas incursões, longe de ser uma solução, era um problema propriamente dito., pois de alguma forma jogava dúvidas sobre essa estratégia que por anos tem sido replicada e que não levam a nada, pelo contrário, muitas vezes permite que a polícia faça uma série de negócios quando apreendem armas. Existem inúmeros casos nos quais, depois dessas incursões, os policiais revendem para as facções as armas e as drogas apreendidas. Eles produzem mortes aleatórias, provocam tragédias nas comunidades e só contribuem para aumentar a bagunça, o caos, e o descontrole da polícia.

É uma política estrutural da segurança pública, do crime e da desordem que permite que muitos desses grupos ganhem dinheiro. E isso estava sendo colocado em xeque, então era necessário contestar, era necessária essa queda de braço, tinha muita coisa em jogo. Realmente havia uma disputa política.

Eu sei que elas [as operações] estão acontecendo, elas seguem acontecendo, mas eu não sei em que proporção. Existe uma questão política, uma disputa política pelo controle da polícia do Rio, que se caracteriza pelo fato de ter um protagonismo no crime muito grande pelo seu descontrole. Hoje, a polícia tem uma ascendência muito grande no estado. A própria prisão sucessiva de governadores, a fragilidade do governo atual, que surge depois de um impeachment do governador, vem um vice-governador muito fragilizado, permite que a polícia tenha uma força como nunca teve. E ela não quer ser controlada, então bater de frente com o STF é uma questão importante para esses policiais.

Considerando que esse poder das milícias está chegando ou chegou a Brasília, quais são os pontos em comum da organização das milícias nesses territórios, do ponto de vista cultural, do discurso ou até da gestão econômica e política, com a gestão do governo Bolsonaro, com o fazer política do governo Bolsonaro? A gente pode dizer que há traços no modus operandi que aproxima o governo Bolsonaro do sentido da atuação das milícias nos territórios do Rio de Janeiro?

Acho que sim. São duas coisas, uma é a milícia no território; outra coisa é o governo Bolsonaro e a relação dele com as milícias. Apesar de existirem relações concretas entre milicianos e a família Bolsonaro, acho que, sobretudo, essa relação é ideológica. De certa forma isso o Bolsonaro nunca escondeu e faz parte do discurso dele. Ele ganhou força e peso na política desacreditando a Nova República como um candidato antissistema, dizendo que a política era feita por corruptos. Então, ele de alguma forma ganha força em 2018 com esse discurso de guerra contra a corrupção, contra a política, contra a política tradicional. Ao mesmo tempo, com todo arcabouço ideológico que vinha sendo formado contra os comunistas, contra aqueles representantes que querem acabar com a família. É um discurso do conflito e da guerra.

Ao mesmo tempo, ele colocava a guerra e o uso instrumental da violência como uma solução para levar a uma nova ordem. E essa nova ordem dependia do descrédito da Constituição de 1988, que, segundo ele, era feita por comunistas e por globalistas. Por tudo isso, de alguma forma é uma pessoa que acredita no papel da guerra para exercer poder, para exercer sua autoridade e desacredita no Estado Democrático de Direito. Isso é de alguma maneira o que aconteceu no Rio, o que permitiu a expansão das milícias no Rio de Janeiro porque os grupos milicianos eram formados por policiais que, a partir dos anos 2000, começaram a fazer o discurso de autodefesa comunitária como um antídoto à expansão dos grupos de traficantes para a Zona Oeste da cidade.

Apesar de existirem relações concretas entre milicianos e a família Bolsonaro, acho que, sobretudo, essa relação é ideológica.

Essa guerra contra o crime contra os traficantes, de alguma maneira se justificava a partir daí, com eles passaram a exercer o domínio territorial e a ganhar dinheiro para sustentar seus negócios. Tudo que eram receitas possíveis a partir do controle territorial armado passou a ser feito, desde cobrança de taxas aos moradores, a empresas, grilagem de terra, construção de prédios, organização de venda de cigarros piratas. Tudo foi feito para sustentar o poder deles e, ao mesmo tempo, eles passaram a ter uma ascendência muito grande dentro do Estado e dentro da política, conseguindo inclusive influenciar a eleição de vários candidatos, criando uma espécie de repúblicas isoladas e separadas do governo central que não respondiam ao Estado de Direito, como o resto da cidade.

Com o tráfico acontece a mesma coisa: são tiranias armadas, grupos armados que se estabelecem ali nos seus territórios para ganhar mais dinheiro, para ficar mais ricos e para poder fazer seus próprios negócios. São pessoas e visões de mundo parecidas que o Bolsonaro leva para o Planalto Central, que leva ao Governo Federal, que desacredita no Estado de Direito e nas garantias dos interesses coletivos. Por exemplo, no caso da floresta amazônica e da Amazônia Legal, as leis, os fiscais, a proteção ao meio ambiente, tudo isso que vem sendo discutido pela coletividade no mundo, mas são empecilhos para que pessoas possam ganhar dinheiro, extraindo ouro, vendendo madeira, porque o que vale para eles é o empreendedorismo, mesmo que seja criminal, é a vontade de ganhar dinheiro, como se dinheiro representasse modernidade. O Estado é visto como um empecilho para isso. A legislação é vista como um empecilho.

Se essa expansão dos empreendedores extrativistas vai destruir a floresta, não interessa. O que interessa é que a gente dê condições para eles ganharem dinheiro, ou seja, é uma nova ordem criminosa.

No final das contas, o que passou a vigorar no Rio de Janeiro, é o que vigora de alguma forma hoje no Brasil com o desmonte do Estado que está permitindo o avanço desses grupos que estão destruindo o patrimônio nacional e que não respeitam as leis para ganhar dinheiro, São visões muito, muito parecidas que permitiram a expansão das milícias com esse discurso da guerra ao crime e que está permitindo a força desse governo atual que também promove a sua autoridade num discurso de guerra contra aqueles inimigos que são apontados como responsáveis pelo atraso nacional. Acho que tem muitas afinidades, a leitura de mundo é muito parecida. por isso que no artigo que escrevi para a Serrote eu mencionei a República Federativa de Rio das Pedras [comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro cuja ocupação pelos policiais milicianos serviu de modelo para outras milícias] e por isso o livro se chama A República das Milícias.

Será que depois da Nova República é nessa distopia que a gente vai viver? No ocaso da Nova República, com a mudança de sistema de institucionalidade que vigorava até agora, será que a gente vai passar a viver nessa distopia miliciana? É por aí que fiz os paralelos.

O senhor já comentou que a teologia da prosperidade aproxima evangélicos da perspectiva das milícias. Os grupos evangélicos, no caos da violência urbana, tendem a buscar lugares de acomodação digna e de proteção. Há diálogo entre esses dois fenômenos e até que ponto eles estão próximos, inclusive no apoio ao governo Bolsonaro?

Eles surgem do mesmo ambiente de miséria. No caso aqui em São Paulo, por exemplo, tem o PCC [Primeiro Comando da Capital, quadrilha que controla o mundo do crime em São Paulo e outros estados a partir do sistema prisional], que é um caminho, e tem os evangélicos que surgem mais ou menos na mesma época de confusão e de crescimento das cidades, de uma molecada partindo para o crime em cidades ficando tomadas pelo medo. Ao mesmo tempo, uma sociedade muito marcada pelos valores do mercado, onde ter dinheiro e bens é muito importante para ser respeitado, para não ser humilhado, com a polícia atuando nos territórios pobres.

Em toda aquela situação de pensão muito grande, uma molecada partiu para um caminho que é o seguinte ‘olha, a polícia quer nos dizimar, quer nos matar ou nos prender nos trancafiar em masmorras medievais. Vamos bater de frente com a polícia e não vamos baixar a cabeça para esse sistema’. É um discurso antissistema, quase suicida, para de alguma forma fazer frente a esse mundo de consumo e violento, que humilha principalmente as masculinidades jovens. É o que acontece em vários centros urbanos. De dentro das prisões surge o PCC para organizar esse mercado em outra dinâmica.

No caso dos evangélicos, eles surgem também diante desse mesmo desafio em meio a miséria numa sociedade que valoriza o consumo e, ao mesmo tempo, não oferece oportunidades para essas pessoas fazerem parte da sociedade. Porque eles têm pouca educação, tem pouco treinamento para trabalho, são violentadas, são humilhadas e são menosprezadas por não terem dinheiro. Então começa a ser construída uma espécie de rede, uma espécie de ‘maçonaria de pobres’. A partir das igrejas se forma uma rede de apoio e uma nova forma de ler o mundo, repleta de símbolos que também trabalhavam a autoestima dessas pessoas e falavam que, a partir do esforço, do empreendedorismo e da vontade própria, pelo fato dela acreditar, de estar abençoada pelo espírito santo, elas conseguiriam prosperar nessa sociedade. E isso foi ganhando muito adeptos também.

A semelhança é que ambas surgem de baixo para cima, não vêm de cima para baixo. Não foi um Estado que os criou ou obrigou certos grupos a seguirem determinadas religiões. Eles foram inventando esses próprios caminhos e construindo suas próprias igrejas. Para lidar com uma miséria e para integrar a sociedade de alguma forma também. Pelo consumo, principalmente, mas também pela construção de uma rede de apoio e pela construção de uma ideia que desse para eles autoconfiança, a crença de que eram abençoados e de que estavam no caminho certo. Que que desse um certo propósito, mas seguem caminhos distintos.

Muitos evangélicos tiram a galera do crime. A gente que é jornalista acompanha isso muito fortemente. São muitos casos de conversão. Eles estão atuando nas periferias, estão atuando nas prisões, tentando dar um novo caminho para essa galera do crime também. Isso é muito presente.

Mas existem também confusões sobre isso. No caso do Rio de Janeiro, em especial, existem traficantes que passaram a ter um discurso evangélico, um discurso de que a guerra que eles faziam eram sagradas, em especial do Terceiro Comando Puro [facção criminosa rival do Comando Vermelho] na comunidade de Vigário Geral e Parada de Lucas, que eles chamam de Complexo de Israel, controlado por um traficante convertido, quer dizer, não é convertido: ele se diz religioso, mas continua no tráfico. É o Peixão. Isso me parece algo muito excepcional, não me parece a regra. A regra me parece justamente evangélicos trabalhando para tirar a galera do crime. mas no caso do Rio de Janeiro é interessante porque mostra a confusão que o estado vive, afinal a polícia é, hoje, no Rio de Janeiro, protagonista da cena criminal pelas milícias.

O que é certo e o que é errado? O que é o bem? O que é o mal, né? Essa confusão é tamanha que até a religião foi alvo e foi palco dessa confusão.

Apesar de surgiram do mesmo grupo social diante dos mesmos desafios sociais, materiais e políticos e econômicos. Só que inventam soluções diferentes para ingressar nessa sociedade muito desigual, cruel e injusta. Aí vão inventando formas de entrar.

Muito se fala da ligação entre o atual governador do Rio de Janeiro com as milícias, mas as referências a isso costuma ser genéricas. Qual seria essa ligação e como ela se dá no dia a dia? E com um governador ligado a elas e com um Governo Federal com afinidade pelo menos ideológica, como será o comportamento das milícias nas eleições de 2022? Qual papel elas terão nesse nesse processo eleitoral?

Essa é uma eleição muito importante porque tem muitos políticos vinculados à milícia que permitem negócios cada vez mais rendosos em toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Várias cidades hoje vivem esse problema: há empreendimentos criminosos de extração de areia, muambas entrando em portos, construção de galpões em áreas protegidas ambientalmente, isso tudo movimenta muito dinheiro. E essas atividades não são fiscalizadas porque os prefeitos dessas fazem vistas grossas porque, muitas vezes, os responsáveis são pessoas que vão apoiá-los nas eleições. Muitos condomínios estão sendo criados em áreas protegidas ambientalmente, mas depois recebem anistia dos vereadores que, muitas vezes, foram financiados pelos grupos milicianos.

A gente vive hoje um desafio muito grande, no Brasil e no mundo inteiro de forma geral, a gente vive uma crise no emprego e da indústria muito ampla e, por causa disso, o mercado ilegal e informal está cada vez está mais forte e mais importante na economia. Os criminosos têm entrado para gerir para organizar esses mercados muito rentáveis e muito lucrativos, com cacife para investir em campanhas de candidatos que, depois no legislativo, os apoiam.

“Fingir que a interferência das milícias nas eleições e na campanha eleitoral não existe já é uma maneira de se posicionar”

O fato de você fingir que isso não existe já é uma maneira de se posicionar, mesmo que não tenha necessariamente um vínculo direto, claramente identificado. Mais uma vez vou citar o exemplo da Amazônia, que é um escândalo: a gente vê um desmatamento imenso provocado pela exportação ilegal de madeira, pelo garimpo ilegal em terras indígenas. E a gente vê um presidente que, além de desmontar as instituições de fiscalização desse tipo de crime, sabota o tempo inteiro qualquer esforço é possível a ponto mudar o nome do garimpo para “extração manual” ou “mineração artesanal”, alguma coisa assim. Na verdade, ele dá o recado de que, olha, eu estou do lado de vocês, vocês façam o que vocês quiserem.

A partir daí, o dinheiro que é movimentado no tráfico de drogas, para fazer o capital de giro se movimentar, vai para esses negócios também, porque é uma oportunidade a mais. E esse dinheiro do mercado informal acaba aumentando.

Outro aspecto que ajuda a entender um pouco esse estado de coisas é que a polícia do Rio e o governo do Rio, ao longo dessa história, aprenderam muito bem a lidar com a imprensa, usando a imprensa para dar a entender que estão trabalhando, que estão fazendo algum tipo de serviço. Um exemplo: no final de 2020 houve uma chacina com 17 milicianos mortos, número grande de milicianos de uma determinada milícia. Há mortes, sai na imprensa e a impressão que a gente tem é que o governo está combatendo as milícias. Só que tem outros grupos milicianos mais próximos das autoridades que não são enfrentados, há casos que vão sendo acobertados, vão sendo deixados na gaveta até serem esquecidos quando o grupo investigado tem alguma influência política ou tem alguma influência na polícia.

É necessária uma certa malandragem para observar esses movimentos de comunicação da polícia porque no Rio eles são muito sofisticados para lidar com a opinião pública, para parecer que estão trabalhando para continuar com as coisas, como sempre continuam. Não é à toa que eles estão aí desde os anos 1950, 1960, ganhando muito dinheiro com o crime.

No caso específico do Rio, a gente tem a candidatura de Marcelo Freixo, que há muitos se contrapõe às milícias, inclusive presidiu uma CPI das Milícias e outra sobre o tráfico de armas. Marielle Franco era da equipe do gabinete dele. O quanto você acha que os Bolsonaro teriam capacidade de mobilizar milicianos e paramilitares no Rio de Janeiro para ameaças a campanha de um político como Freixo? E qual a capacidade do presidente mobilizar esses paramilitares e os policiais dos demais estados para um golpe ou para tumultuar o processo eleitoral?

A eleição no Rio é muito delicada, muito tensa. A gente vê o que aconteceu com a Marielle Franco, então é sempre muito importante estar atento, mas justamente por isso ele está fazendo um movimento de arregimentar um apoio muito mais amplo do que fez em estratégias de eleições anteriores, quando concorreu pelo PSOL e ficava um pouco mais isolado com um discurso mais à esquerda. Agora, ele faz um movimento de mudança de partido, vai para o PSB, começa a dialogar com uma série de pessoas desde o Armínio Fraga até o André Lara Rezende, passando pelo Raul Jungmann, um espectro muito mais amplo de apoio para sinalizar que é uma luta da civilização contra a barbárie. Aqueles compromissados com a democracia e com o estado de direito no Rio precisam estar juntos nesse esforço para restituir a institucionalidade no Rio de Janeiro.

Claro que vai chegando a eleição e a política é sempre um ‘pega pra capar’, as coisas tendem a ficar acirradas, mas eu acho que esse movimento é certo. Ele precisa de uma ampla base de apoio para não ser um mártir. Esse risco existe e se ele tiver isolado e frágil, corre o risco de ser o Dom Quixote lutando contra os moinhos. E é justamente essa imagem que não dá para passar e habilmente ele vem tentando costurar para ter uma base de apoio mais forte. Agora, óbvio que a gente sempre precisa ficar muito atento e muito alerta. E a gente está cansado de ver tragédias se repetirem. É sempre muito delicado esse momento que a gente vai viver.

No caso do Bolsonaro, acho que essa é a aposta dele, disso não tenho a menor dúvida. Ele tem a expectativa e sempre teve, nunca negou isso, de mobilizar grupos de apoio para essa guerra contra o ‘comunismo’, contra o ‘globalismo’, contra a corrupção, contra tudo. Faz parte desse discurso meio moralista, meio reacionário, esse discurso de guerra contra certos inimigos que são apontados como bodes expiatórios. Para isso, ele arma a população, amplia a possibilidade de compras de fuzis e de armamentos pesados para uma série de grupos que têm afinidades com ele. Ao mesmo tempo, começa a trabalhar para fragilizar os controles sobre a violência policial com uma série de tentativas de medidas de fragilização desse controle policial, do tipo pode matar sob forte emoção e aquelas coisas todas que não conseguiu aprovar, mas tentou.

Não tenho dúvida que essa é uma expectativa que ele tem, isso é algo que ele vai tentar. Só que eu não acho que ele vai conseguir. Ele não vai conseguir, porque primeiro ele é muito ruim, ele é muito fraco, ele é muito incompetente, ele é muito falastrão, ele é muito ignorante. Ele tem dado demonstração de incompetência, de falta de seriedade, com uma série de escândalos de corrupção. Ele quer ganhar dinheiro com a política. Já comprou 10 apartamentos. Tem os esquemas das raspadinhas, abriu as pernas para o centrão, liberou para que o centrão ganhasse uma série de emendas. É o louco antivacina, foi de um protagonismo na pandemia que, com o tempo, foi minando sua credibilidade, com o tempo, foi perdendo apoio. O próprio centrão, que realmente está ganhando muito dinheiro e muito poder político com a fragilidade do presidente, não o leva a sério porque é um cara em que você não pode confiar. A qualquer momento, ele pode fazer um ato tresloucado, é imprevisível.

Na política você precisa de uma certa previsibilidade. Um certo grau de confiança, por isso acho que ele vai falar sozinho, vai ser o louco falando sozinho. Óbvio que é sempre difícil também prever: eu caí do cavalo quando apostava que o Bolsonaro não seria eleito em 2018, porque eu achava que as pessoas não iriam votar nele. Caí do cavalo.

A gente escorrega na casca de banana, mas acho que os próprios policiais têm uma certa estabilidade no emprego, eles levam a sério o salário que recebem e o poder que eles têm nas ruas, mesmo que seja para ganhar dinheiro no crime. Se expor dessa forma para uma liderança frágil como Bolsonaro pode sujeitá-los a punições. Não sei até que ponto eles vão bancar essa aposta? Creio que não, mas é sempre muito difícil de de prever.

Como é que é possível enfrentar essas forças em ascensão das milícias? E impedir que se reproduza em outros estados. Qual é a política ou o conjunto de políticas que tornaria possível enfrentar isso? Afinal, seu livro deixa claro que as polícias não fazem parte da solução, elas fazem parte do problema por fazer parte da cena criminosa.

O desafio é controlar as polícias sob um governo forte, com legitimidade, que consiga retomar o controle das polícias. Se a gente for pensar nos últimos 10 anos, o Brasil passou de 2.000 homicídios praticados pela polícia, que se concentravam basicamente no Rio e em São Paulo, para mais de 6.000 homicídios por ano nos últimos três anos. São Paulo já foi o estado mais violento do Brasil em termos de violência policial, hoje, segundo os dados do Monitor da Violência que a gente faz aqui na USP junto com o G1 [portal da Rede Globo], está entre o 14ª e a 15ª na lista. Não que a polícia de São Paulo tenha se tornado menos violenta, ela segue violenta. Só que existem 13, 14 polícias no Brasil que se tornaram mais violentas.

O passo seguinte – e isso aconteceu no Rio de Janeiro -, é que elas passem a usar essa liberdade, essa carta branca para matar, para ganhar dinheiro no crime, pois é um poder muito grande que os policiais têm para ameaçar, para para vencer os rivais, para impor o medo e, se matar, não ser punido. A quantidade elevada de homicídios é a semente das milícias e é um sintoma do descontrole das polícias.

Crédito: Divulgação

Em primeiro lugar é preciso consciência do papel que os governos têm para exercer o controle sobre as polícias. No podcast A República das Milícias eu converso com alguns policiais do Rio e eles me falaram uma coisa que eu nunca tinha pensado e faz todo o sentido: É melhor você ter uma polícia menor e controlada do que uma polícia grande descontrolada. Uma polícia grande, você começa a contratar, e se você não tem condições de exercer o controle sobre essas polícias, eles vão virar parte do problema, porque eles vão usar a sua carteira, o seu distintivo, para ganhar dinheiro no crime. Governar com capacidade de exercer o controle sobre a polícia, saber o que está acontecendo, é fundamental para a estabilidade política de de uma cena. Essa retomada da compreensão do papel que os políticos e os governos têm de exercer esse controle é fundamental.

Você pode discutir as técnicas de como é que você vai fazer para retomar as rédeas. Demitindo uma série de policiais? contratando novos? Colocando pessoas de confiança nos postos de comando? O Hélio Luz, por exemplo, que também é entrevistado no meu podcast, foi chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro nos anos 1990. Ele conseguiu chefiar a polícia e resolver o problema do sequestro com a autoridade que soube exercer sem grandes traumas. Foi uma medida de de liderança mesmo com que ele conseguiu anular a força daqueles que organizavam o crime, conseguiu tirar de circulação o poder desses grupos. Há uma série de discussões técnicas, mas eu acho que a dimensão do papel que o controle sobre as polícias tem é fundamental, não só no Rio de Janeiro, mas também no Brasil.

No Rio de Janeiro tem outros problemas: como tirar os fuzis de circulação. Há grande quantidade de fuzis e esses fuzis têm um papel nos controles territoriais que tanto o tráfico quanto as milícias exercem. Como é que vai tirar esses fuzis de circulação? Como é que vai lidar com grupos que tem tantos fuzis nas mãos? Como é que vai fazer acordos com esses grupos? Porque não vai adiantar ir para a guerra. A guerra não é a solução. Não adianta você assumir o governo e fala ‘agora a gente vai ganhar, vai para a guerra e vai vencer’. Não é assim. Vai ser política, vai ser acordo, vai ser diplomacia, vai ser costura, vai ser identificação de lideranças que consigam lidar com isso, porque não vai ser pelo confronto. São soluções complexas e que exigem muita habilidade política.

Como é que você vê a condução da polícia na investigação do assassinato de Marielle Franco? É um caso tão emblemático, mobilizou tanta opinião pública no Brasil, e mesmo assim a gente não tem a solução depois de tantos anos. Como é que tudo isso que a gente tem conversado nesta entrevista se entrelaça com o caso Marielle?

Nos primeiros 6 meses, a polícia ficou girando em falso e chegou em um determinado momento que até tentaram incriminar dois falsos culpados, um vereador do Rio de Janeiro e um miliciano da área de Gardênia Azul, o Orlando Curicica. Eles foram falsamente acusados de serem autor e o mandante do crime. A gente veio saber depois, conforme as investigações foram avançando e foram mudando as peças da polícia que estavam investigando, é que, desde que o assassinato aconteceu, já existia uma suspeita sobre os poucos que poderiam ter cometido aquele crime. E já se sabia há muito tempo quem eram os principais suspeitos de terem atuado naquela cena. Eram justamente as pessoas que, com os depoimentos que vieram à tona, pagavam para não serem investigadas pela delegacia de homicídio.

Um dos depoimentos, que foi bastante importante para esse caso foi o do Orlando Curicica, falsamente acusado de ser autor do do assassinato da Marielle. Quando foi acusado, ele percebeu que estavam armando uma ‘casa de caboclo’ para ele, estavam fazendo uma armadilha pra ele ser condenado, pra ser acusado do crime. Ele falou: ‘vou vou ter de falar. Essa é a minha estratégia’. Ficou durante um tempo no limbo, ninguém queria ouvi-lo, mas aí vieram as promotoras, a Simone Sibilio e o grupo dela, comprometidas com a investigação e foram ouvi-lo. A partir daí, ele começou a contar essa cena da história da relação do jogo do bicho e do crime com a polícia, com as milícias, destampando um caldeirão do submundo, trouxe muita informação que ficava escondida até então.

A gente soube, por exemplo, da formação de um escritório de matadores composto por policiais e organizados pelo capitão Adriano da Nóbrega, que era próximo da família Bolsonaro, que matava para bicheiros, um assassino 2.0 porque tinha treinamento no Bope e tudo mais. Ele matava para bicheiros que também bancavam para que os matadores não fossem investigados e seguissem impunes na guerra que existia entre os rivais do jogo do bicho, que desde o final dos anos 90 começou a acontecer no Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo, eles eram sócios de milicianos. Empreendimentos como o dos prédios que tinham sido construídos em Muzema e desabaram. Foi por causa da ligação com a construção desses prédios que o Adriano teve que fugir para a Bahia, porque foi acusado no inquérito do Ministério Público na operação Os Intocáveis, cujo próprio nome já dizia, envolvia pessoas que estavam há muito tempo atuando no crime, mas nunca eram investigados. E um monte de coisa veio à tona, principalmente a existência desses matadores ligados à polícia, associados à bicheiros e a um grupo de milicianos. E o papel que eles tinham, a influência que eles exerciam historicamente sobre as polícias e, por isso, não eram investigados.

E permitiu também que se soubesse que o Ronnie Lessa e o Élcio Queiroz eram os principais suspeitos de terem matado a Marielle, de serem os autores do disparo, apesar de não terem sido julgados quatro anos depois. E ficou ainda com essa dificuldade de se saber quem eram os mandantes do crime. Em algum momento se chegou a suspeitar mais de um ex-vereador, o Cristiano Girão, muito próximo da família Garotinho e que chegou a ser preso pela CPI das Milícia, que era sócio do Ronnie Lessa. Juntos eles tinham sido acusados de praticar um homicídio. Mas essa investigação se soltou, essa suspeita não se desenvolveu.

E o fato é que, desde que as promotoras saíram do caso, houve trocas sucessivas. Já estamos no quinto delegado responsável pela investigação e, ao que parece, houve um grande retrocesso, pois a polícia parou de compartilhar as informações com a família e com os amigos. Antes, eles estavam muito próximos. As próprias promotoras eram próximas, falavam dos passos que elas davam, chegaram a prender também um outro miliciano, que era o braço direito do braço direito do Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de uma série de homicídios, e vinham avançando, com uma série de prisões. Mas, desde que as promotoras saíram, medidas foram tomadas sem que elas fossem consultadas, a coisa parece ter retroagido. Vai fazer quatro anos em março sem grandes expectativas de que uma solução apareça, fora o fato de que o próprio júri não foi marcado, o que é um absurdo.

A República das Milícias é um raro exemplo de livro que causa algum rebuliço no Brasil contemporâneo. É um livro que foi discutido, um livro que foi falado aqui e ali, um livro comentado e indicado como leitura. O senhor acha que a repercussão deste livro pode mover algo, pode gerar algum desdobramento? Ou vai ficar só na repercussão mesmo?

A gente que é jornalista sabe, vai acompanhando a ascensão das gangues, das facções, a gente via muita coisa, mas elas ficam isoladas. Mesmo a imprensa do Rio, que é muito informada e muito combativa. e a gente sabe o tipo de notícias que eles cobrem, sabe o desafio que é trabalhar no Rio de Janeiro. E mesmo assim eles dão muita informação, eles acompanham muito de perto essas coisas. São repórteres, jornalistas muito competentes, indignados, mas falta juntar o quebra-cabeça, falta contar uma história com começo, meio e fim. E talvez esse tenha sido o método tanto para escrever o PCC [A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, livro anterior de Paes Manso, lançado em 2018] quanto para escrever o das milícias.

Claro, a gente vai a campo, pega os personagens porque às vezes certas histórias ajudam a sintetizar o que a gente quer falar. É um pouco esse esforço e essa mistura que eu faço, tenho que contar algumas histórias, mas para contar um arco narrativo que ajude a gente a juntar essas peças que vêm sendo publicadas durante décadas, a gente não tentou ainda, ou pelo menos não o jornalismo. No jornalismo, gente não tem o espaço e o tempo necessários para oferecer o quebra-cabeça já montado.

Necessariamente não vejo que esses dois livros tenham reflexos de curto prazo nem ache que vão resolver alguma coisa. A gente vai ficando mais velho, aí a gente perde um pouco essa expectativa, essa esperança, não é? Mas eu acho que vai acumulando conhecimento, vai conhecendo melhor a gente como sociedade, vai olhando para nossa história de uma outra forma. De alguma maneira, os dois livros trazem muita essa ideia da violência, como as pessoas, veem a violência como um instrumento de ordem, como algo positivo, como algo até pedagógico, para ensinar a respeitar a lei. Ou para ensinar a obedecer. E como isso vem produzindo uma série de efeitos colaterais. A gente produz mais desordem achando que a violência vai resolver alguma coisa a ponto de eleger um presidente que a vida inteira apostou no uso da violência como uma forma de levar algum tipo de ordem. Quem sabe com o tempo a gente vai formando uma autoimagem de país, de sociedade, a partir de uma análise mais crítica.

Eu faço muitas vezes um paralelo entre o jornalismo com a psicanálise. É mais ou menos assim: quando a gente vai ao psicólogo ou a um analista, a gente tem o desafio de falar sobre a gente mesmo, olhar para dentro da gente, falar sobre as nossas raivas, os nossos ódios. É uma investigação interna. E a partir do momento que a gente racionaliza sobre a gente mesmo, sobre as nossas dores e tudo isso, a gente amadurece, a gente consegue enxergar coisas que a gente não enxergava, passa a refletir de uma outra forma, enfim, amadurece. Eu acho que o jornalismo tem esse papel também, o papel de fazer essa investigação interna da sociedade: das nossas raivas coletivas, dos nossos ódios, da nossa história, dos nossos medos, para tentar verbalizá-los, racionalizá-los e, quem sabe, amadurecer. Mas acho que é uma coisa, talvez, para médio prazo.

Sabemos que nem sempre para antecipar os próximos projetos, mas já que o senhor está aqui conosco é possível dizer qual o tema do próximo livro ou da próxima pesquisa?

Até já falamos do assunto aqui. Estou muito a fim de de investigar a questão dos evangélicos pentecostais. Isso sempre me interessou muito, muito, muito. Eu sempre tive muito contato com eles, é justamente essa a minha grande curiosidade. Na verdade, a minha eterna curiosidade. Desde que eu comecei a investigar o crime, eu sempre encontrei muitos evangélicos convertidos. O que eu quero é tentar encarar e ver se eu consigo escrever sobre isso.

AUTORES
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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.

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Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República