Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Crédito: Day Louisee
por Jorge Cavalcanti* e Julia Bueno**
“Ontem sofri uma represália. Estou na delegacia, mas pode falar”.
Foi assim que Fernanda Falcão, 28 anos, respondeu ao contato da reportagem enquanto tentava prestar uma queixa de violência, na tarde da última sexta-feira, 9 de julho, algumas horas depois do Hospital da Restauração (HR) confirmar que teve fim a via crucis de Roberta Nascimento Silva, 33 anos. Após internação de 16 dias em estado gravíssimo por ter tido o corpo queimado enquanto dormia, Roberta passou a fazer parte das estatísticas, tendo seu nome somado à lista das 80 pessoas trans assassinadas no País no primeiro semestre do ano. Não foi a primeira vez que Fernanda vivenciou risco de morte. Numa delas, foi atingida por disparo de arma de fogo no peito. Sobreviveu!
Roberta e Fernanda, mulheres trans negras e pobres, caçadas pelo sistema no Brasil machista, racista e “terrivelmente evangélico” de Jair Bolsonaro, critério que o presidente anunciou que usou para indicar o próximo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
No momento em que foram registrados em Pernambuco quatro crimes violentos letais intencionais e quatro tentativas de homicídio por transfobia num período de pouco mais de um mês – CVLI é a terminologia técnica utilizada para designar esses crimes nos dados oficiais, “transfeminicído” ainda não está tipificado na legislação -, a Marco Zero Conteúdo conversou com quatro mulheres trans – . Cibelle, Dália, Fabiana e Fernanda.
Elas são referências, ao lado de outras pessoas trans, na defesa da garantia e promoção dos direitos humanos. Todas são firmes em dizer que a “demonização” dos corpos trans é antiga e estrutural, estimulada por religiões e igrejas; e que as violências praticadas por homens ficaram mais intensas e constantes desde que Bolsonaro subiu a rampa do Palácio do Planalto.
Da impossibilidade do cuidado da saúde mental, da empregabilidade nos espaços de trabalho ao papel das famílias no acolhimento de parentes trans, a educação sem transfobia de crianças e jovens. E de como envelhecer é um privilégio das pessoas de identidade “cisgênera” – condição de quem tem a identidade de gênero correspondente ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento.
Se você ainda não as conhece, aí estão elas. A reportagem solicitou que cada uma escolhesse a foto com a qual gostaria de ser retratada. As entrevistas tiveram início a partir da pergunta: “como vai você?”
Pesquisadora de dados na Rede de Observatório da Segurança, Dália Celeste, 30, atualmente realiza o monitoramento de 16 indicadores para o banco de informações qualificadas organizado no Estado pelo Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), incluindo ocorrências de violência contra a população LGBTQI+, feminicídio e abuso policial fazem parte do seu cotidiano. É a vida delas!
“Eu sempre pontuo bastante: não são casos isolados, sabe? Isso é a cultura do extermínio. Nós tivemos oito casos dentro de menos de 25 dias. Que foram quatro casos de transfeminicídio, com o resultado da Roberta ontem, e quatro casos de tentativa. Então, assim, não são casos que são emblemáticos por ser num contexto de ser uma vez ou outra. Mas são casos que sempre estão acontecendo e que, hoje, está se tomando uma repercussão no estado porque a gente tem trabalhado de forma bastante potente na divulgação.
Então, por muitas das vezes, Jorge, eu sempre gosto muito de definir que o transfeminicídio, por exemplo, é ocasionado por esse sistema, pelo contexto do homem no sentido dele não ter vergonha do desejo que sente por pessoas trans e travestis. Ele não tem essa vergonha do desejo, tanto que buscam esses corpos, mas eles matam porque não sabem lidar com o corpo que foram ensinados desde criança a odiar.
A gente está num processo que é um processo muito de urgência. A gente precisa urgentemente debater e conversar sobre a responsabilidade da transfobia, sabe? A responsabilidade da transfobia, quando falo nesse sentido, não é das pessoas trans e travestis. É uma responsabilidade da cisgeneridade. E a cisgeneridade precisa começar a dialogar sobre isso. Precisa conversar sobre isso entre si. Porque essa responsabilidade não é nossa. A gente precisa educar, inclusive, os nossos filhos. A cisgeneridade precisa educar seus filhos no sentido de também fazer com que crianças cresçam respeitando o outro. A gente sabe que a transfobia é estrutural, mas o caso da Roberta foi cometido por um adolescente. Então, perceba, um adolescente queimou uma mulher trans, uma travesti viva no Centro da cidade.”
“Nessa conjuntura atual, nós não podemos dizer que estamos bem. No momento, eu estou buscando me manter viva, estou resistindo. Eu não gosto de utilizar essa palavra, resistir. Acho que termina sendo… Dá uma sensação de que a gente está aguentando o peso para poder tentar viver, quando o correto seria existir, apenas. Dentro desse processo, venho adoecido bastante psicologicamente, mas ao mesmo tempo buscando o autocuidado e ressignificar meus afetos e buscar estratégias de sobrevivência.”
“Falar de empregabilidade, no Brasil, ainda é tão sintomático visto que pessoas trans e travestis não possuem emprego formal, não são contratadas. A gente está dentro de um sistema que, realmente, nos exclui desses espaços. Até falar de empregabilidade, a gente precisa ter um debate educacional, que ainda existe essa dificuldade dentro desse debate. Eu sempre pontuo a importância de pessoas cis-aliadas, por exemplo, contratarem pessoas trans para trabalhar dentro de seus mercados. E, quando a gente percebe a negação dessa empregabilidade, isso só reforça o processo da transfobia, que é a exclusão dentro dos espaços formais de trabalho e o lançamento desses corpos, mais uma vez, na marginalização. Isso é como o sistema funciona e trabalha: para excluir.”
* * *
As memórias de Fernanda Falcão, 28 anos, são intensas o suficiente para render um livro sobre suas vivências. Coordenadora de articulação política do GTP+ (Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo) e da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, ela é enfermeira e tem no peito a marca da transfobia letal que quase custou-lhe a vida, há quatro anos. A tentativa de homicídio por arma de fogo não aconteceu numa esquina enquanto Fernanda fazia programa, mas dentro de uma instituição do Estado, quando ela exercia a função de mediadora de conflito dentro do sistema prisional de Pernambuco.
“O sentimento que mais está presente em mim é o de repulsa, de ódio do que vem acontecendo. Não que venha acontecendo de agora. E não que isso venha acontecendo só no governo Bolsonaro. Se propagou. Esse governo trouxe clareza para os pensamentos que estavam escondidos, guardados. Isso é muito pesado. Porque, se a gente refletir, desde a própria Inquisição, ela tinha esse trabalho de gerenciar e de tratar essas questões sexuais ou de qualquer outro tipo. Então não tem como estar bem com isso ou dizer que isso é algo que vem começando agora. Ou é só a partir desse governo, né? Até porque é inconcebível pensar que esse presidente se elegeu. Realmente, é inconcebível, em todas as formas, pensar que a nossa nação brasileira, de forma legítima, elegeu essa pessoa.
Claro, tendo em vista que a nossa população é formada, por sua grande maioria, de pessoas que são marginalizadas dentro do processo, da própria sociedade. Ainda somos colocados enquanto minoria como mulher, mas somos maioria, enquanto população negra, mas somos maioria. E o que eu venho vendo é que o reflexo do ontem está se posicionando e se fortalecendo hoje, como trouxe a própria Inquisição. E a gente vivencia, mais uma vez, isso, né? Nossos gêneros, nossa identidade de gênero, nossa orientação sexual sendo, mais uma vez, massacradas.
E a resposta, ela vem como no próprio tempo da Inquisição. As pessoas estão sendo queimadas. Nossos corpos, eles são demonizados dentro desse contexto. E a gente vê que isso se transversaliza muito com a religião. A religião tem um papel muito potente na morte de todas essas pessoas. Quando se queima… Se você for buscar relatos, não foram só aqui em Pernambuco. Quando se queima uma pessoa trans, quando se queima um ser humano, se traz muito aquela referência das bruxas, da demonização daquele ser.” ,
Não tem como se ter uma vida digna se você não consegue se autosubsistir, se você não consegue acessar os espaços. E espaços de prestígio, não só espaços marginalizados, não, como os espaços que a gente ocupa hoje, como o da prostituição. Agora, para mim, é algo muito perigoso. Para que a gente esteja se colocando em espaços de poder como lideranças, dentro de empresas ou, senão, dentro da própria gestão de algum espaço, seja ele público ou privado.
A gente sabe que a nossa vida está muito direcionada à retirada do direito, à retirada da credibilidade, da possibilidade de qualificação da pessoa. Ter acesso ao trabalho é dizer que você precisa, inicialmente, criar uma política pública que seja estratégica, que mantenha e reconheça essas pessoas inicialmente na escola. Antes disso, se forme uma sociedade em que pais e mães não coloquem seus filhos ou suas filhas trans ou travestis para fora de casa sempre muito jovens. Ou, no caso dos homens trans, um primo, um irmão ou um pai não estupre no intuito de corrigir. A gente está extremamente infectado com todo o contexto social.
Não consigo pensar, hoje, como dizer ‘vamos dar emprego à população trans’ que não seja, mais uma vez, de forma a marginalizar a mesma, a colocar mais uma vez o corpo transsexual e travesti dentro de salões de beleza ou no escuro, na prostituição. É complicado todo esse contexto porque o trabalho, aí principalmente o trabalho que te faça feliz, o trabalho em que você se reconheça, vem a partir de um contexto geral, né? Todo esse processo de estigma está arraigado na nossa cultura. O nosso corpo já foi marginalizado a um ponto, que eu volto a dizer, eles veem nosso corpo de forma extremamente demonizada. Não seria diferente isso dentro do trabalho, até porque eu coloco por mim mesma. Já estive gestora no governo desse estado e trabalhei um tempo na mediação de conflitos no sistema prisional. O meu pago foi um tiro no centro do peito, onde os demais não aceitavam e não entendiam o meu corpo enquanto um corpo de liderança.
* * *
Natural de Tacaimbó, município do Agreste pernambucano, Cibelle Gracielle da Silva chegou ao Recife em 1985. À época, fazia mais de uma década que não se sentia bem com o corpo, mas ali não havia qualquer possibilidade de redefinir a identidade de gênero. A cirurgia de redesignação sexual só seria oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às mulheres trans em 2008. No Recife, o Espaço Trans foi aberto no Hospital das Clínicas. Cibelle fez a inscrição e deu início ao processo. Nasceu, de novo, no dia 7 de agosto de 2019. Hoje, aos 60 anos, ela é comunicadora popular, com um canal no Youtube, e parceira da Escola Livre de Redução de Danos.
Nos outros governos, a gente tinha uma perspectiva de mais apoio, de mais segurança. A gente tinha uma confiabilidade bem maior, né? Nos últimos dias, a gente vem passando por muitas dificuldades, principalmente porque a escalada da violência está muito forte. E a gente sente com isso. Com idade de 60 anos, a gente que é trans já ultrapassou da idade. Porque é considerada uma pessoa idosa uma pessoa trans com 35 anos. Eu ultrapassei essa idade de 35 anos e minha perspectiva é que a gente precisa ir para a rua, defender a bandeira da igualdade social, apesar de a gente enfrentar ainda muitas questões homofóbicas e transfóbicas. Que, no passado, era ruim o preconceito e a discriminação, mas hoje a coisa está se agravando mais. Até porque, no meu ponto de vista, as pessoas transsexuais precisam ocupar espaço na sociedade com cargos. Então é importante que a gente faça um trabalho de conscientização para as pessoas entrarem na política, nos movimentos sociais para a gente, juntos, levar essa bandeira da igualdade para a rua.
(…)
A cada dia que a gente tem um parlamentar fazendo discurso homofóbico, a cada dia que a gente assiste nas igrejas um pastor evangélico fazendo discurso homofóbico nas suas pregações, isso aumenta mais a ira das pessoas contra as travestis e transsexuais. Então a gente precisa levantar essa bandeira, ir para as ruas dizer que somos gente. Nós pagamos impostos e que nós não somos diferentes de ninguém. Nós somos iguais. Cis ou trans, nós somos iguais.
* * *
Fabiana Oliveira, 42 anos, faz parte da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de PE (Amotrans) e vai concluir um curso superior. O diploma tem simbolismo e começou a ser construído há mais de 20 anos, quando Fabi entrou na faculdade pela primeira vez e viu-se forçada a abandonar os estudos por conta de transfobia. Viveu em São Paulo, fora do Brasil e, com as voltas que o mundo dá, retornou ao curso que um dia precisou largar. Hoje está a dois períodos de se formar psicóloga.
Marco Zero – O que fazer para cuidar da saúde mental sendo uma pessoa trans?
Fabiana – É praticamente impossível ter saúde mental nesse contexto, dentro de uma sociedade que desumaniza os corpos de travestis e transsexuais, que diariamente mata e violenta toda pessoa que não esteja seguindo a identidade de gênero compulsória cisheteronormativa.
MZ – Como a transfobia se sustenta na nossa sociedade?
Fabiana – Quando você é lésbica, gay ou bissexual, ainda sim você está dentro de um status de humana e humano. Mas a gente não é percebida enquanto ser humano. Somos percebidas como bicho, monstro, aberração, diabólicas. Isso tudo não é de agora, foi construído ao longo de muito tempo, com a igreja atrelada a isso. Enquanto uma travesti branca, enfrento menos riscos do que uma travesti negra, por conta do racismo da nossa sociedade. Não uso a palavra privilégio porque é difícil falar de privilégio quando se é travesti. Está distante do nosso vocabulário.
MZ – Como você avalia o governo Bolsonaro para as pessoas trans?
Fabiana – O que se está fazendo é uma não distribuição daquilo que os serviços prestam. O governo não está financiando nenhuma pauta LGBT. E isso faz com que as políticas sejam silenciadas. A violência que ele expressa verbalmente parece que tomou conta da sociedade. Hoje, depois de mais de 20 anos de transição, eu estou passando por um momento violento novamente. Parece que voltei aos anos 1990, quando a discussão era “eu não sou ele, eu sou ela”. A violência nos persegue e vai nos perseguir por muito tempo.
MZ – Você usa com frequência as redes sociais para fomentar esse debate. O quanto exaustivo é isso?
Fabiana – Existe uma cobrança muito grande às pessoas que estão de frente nessa luta. As pessoas acham que a gente tem que estar 24 horas no ar, dispostas a bater de frente. Mas não é assim. Eu só posso cuidar da outra pessoa quando cuido de mim. E quem vai cuidar de mim? Às vezes a gente não tem ninguém. Mas nunca vou deixar de ser ativista. Nós que somos travestis somos a própria bandeira.
Métodos medievais persistem: no Brasil, primeira morte foi em 1614
A sequência de casos de violência extrema contra pessoas trans em Pernambuco trouxe à luz o relatório da Antra que documentou por transfobia, no primeiro semestre do ano no Brasil, 80 assassinatos, 33 tentativas de homicídio e 27 violações de direitos humanos, além de 9 casos de suicídios cometidos por pessoas trans. “A dinâmica do assassinato contra pessoas trans não segue o mesmo padrão dos homicídios em geral, pelo caráter que agrega o cruzamento entre o racismo, a violência de gênero e a transfobia estrutural direcionada às vítimas, assim como a forma e intensidade com que os assassinatos são cometidos”, destaca o documento.
O monitoramento da Antra ressalta como ainda persistem atuais os métodos e o nível de violência com que são perpetrados os crimes contra a vida desta população. Uma pesquisa histórica revela que o caráter medieval das mortes completou quatro séculos. No Brasil, a primeira pessoa executada por homofobia foi em 1614. Um indígena Tibira teria sido amarrado à boca de um canhão pela cintura. Com o disparo, o corpo foi dilacerado aos pés do do Forte de São Luís do Maranhão.
O motivo: o indígena seria afeminado demais para o julgo dos colonizadores europeus. À época, a pena capital era autorizada pelo papa ou pela Inquisição. Mas a execução sequer foi comunicada previamente às autoridades. O acontecido foi registrado pelo frade capuchinho Yves D’Évreux no diário Viagem ao Norte do Brasil. Em 2016, uma placa alusiva foi instalada no local para lembrar o “1º caso de homofobia do Brasil”.
*Jornalista com 16 anos de atuação profissional e interesse em narrativas decoloniais e de defesa e promoção dos direitos humanos. Acumula passagem nas redações do Jornal do Commercio e da TV Jornal e experiência em assessoria de comunicação política no Poder Legislativo (Assembleia Legislativa e Câmara do Recife)
**Formada em psicologia, especialista em Psicologia Política, Redutora de Danos da Escola Livre de Redução de Danos, também é membra da ARP-Trans PE (Associação Regional de Psicos Trans de Pernambuco), Poeta e trabalha com temas ligados a sexualidade, gênero, raça, defesa de direitos humanos e antiproibicionismo
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.