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Crédito: Pedro Paz
por Pedro Paz*
A legislação brasileira permite voto apenas para maiores de 16 anos, mas se tivessem esse direito, Renan e Miguel, de cinco e seis anos de idade, que moram na Comunidade do Aratu, no bairro de Mangabeira VIII, na zona sul de João Pessoa, teriam escolhido votar em Luiz Inácio Lula da Silva.
“Eu vou votar em Lula. Lula vai ganhar. Bolsonaro vai perder, porque Bolsonaro tá caindo. Tá caindo. Lula dá dinheiro pra gente, dá comida, dá sorvete, dá tudo. Dá até casa. Lula vai ganhar. Vai ser presidente”, disse Miguel, com convicção, três semanas antes da votação, em 7 de outubro.
Na ocasião, Renan completou: “Eu também vou votar em Lula, porque é o melhor de todos. É Lula que vai ganhar a partida, Lula vai ganhar. Eu acho que ele vai ganhar. Lula vai pegar e amarrar o Bolsonaro. Ele é muito massa. Bolsonaro é muito ruim, não é, Miguel? Tem um negócio no mar chamado Lula, eu gosto. Não tem nenhum um animal que se chama Bolsonaro. Nós já vota, não é, Miguel? Eu já fui votar. Fui com a minha mãe. E até com o meu pai. Meu pai levou nós na moto”.
Sara Souza, 32 anos, uma das idealizadoras e gestoras da Associação Amigas Solidarias, em atividade na Comunidade do Aratu desde os primeiros meses da pandemia de covid-19 e onde os meninos passam a tarde, de segunda à sexta-feira, no contraturno da escola regular, reforçara a preferência política. “Lula com certeza. Lula com certeza. Todo mundo aqui. Renan falou que o pai dele disse brincando, que está com Bolsonaro. Renan respondeu: “Pois pegue suas coisas e vá-se embora. Você não vai morar mais aqui não, porque a gente só aceita Lula aqui. ‘Ele’ não”, relatou a também educadora do local onde o nosso encontro ocorreu.
Assim como os meninos, Sara queria que Lula novamente presidente para que a realidade brasileira mude. “A gente não aguenta mais sofrer. É muita fome, é muita falta na educação, é muita falta na saúde, é falta em tudo, sabe? E a gente não aguenta mais sofrer. É Lula com certeza”, enfatizou.
O Brasil tinha saído do Mapa da Fome, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2014, por meio de estratégias de segurança alimentar e nutricional aplicadas desde a década de 1990. Voltou a figurar o mapa em 2015, situação agravada na pandemia de covid-19, a partir de 2020. Neste ano, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil mostrou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer. Isso representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.
Proposta do governo federal para o Orçamento da União em 2023, enviada ao Congresso, traz cortes de quase 15% nas despesas e investimentos. Saúde, educação, assistência social e segurança pública foram os setores mais prejudicados. O orçamento de 2023 proposto por Bolsonaro chega a cortar 97,5% dos recursos para novas creches. Só haveria dinheiro para cinco escolas. O projeto do governo prevê R$ 2,5 milhões para o próximo ano. Em 2022, foi de R$ 100 milhões. Em 2021, eram R$ 220 milhões.
No início do mês passado, o governo Jair Bolsonaro bloqueou R$ 2,4 bilhões do orçamento do Ministério da Educação (MEC), afetando as atividades da pasta, sobretudo de universidades e institutos federais de educação, que têm passado por enxugamentos. Todas essas medidas serão revistas neste momento de transição, garantem aliados de Lula.
Renan e Miguel não elaboraram ainda que vivem na Comunidade do Aratu, no bairro de Mangabeira VIII, na Zona Sul de João Pessoa, no Estado da Paraíba. Para eles, o Aratu é o Brasil. Eu acrescentaria que o Brasil de Bolsonaro, por esses meninos terem vivido a maior parte de suas primeiras infâncias durante um governo responsável pela piora das nossas desigualdades.
Na ocupação cuja principal via de acesso se chama Avenida Brasil e que tem a Rua Morta como uma de suas transversais, caminho sem saída onde cadáveres são emborcados, a maioria das famílias vive de reciclagem. Muitos dos moradores estão desempregados e dependem de bicos e do Auxílio Brasil, o programa eleitoreiro de transferência de Bolsonaro.
“A maioria recebe auxílio. Do que era Bolsa Família, agora virou Auxílio Brasil. A maioria recebe. E, assim, segurança alimentar quando numa casa tem mais de cinco pessoas vivendo com R$ 600? Tem segurança alimentar nisso? R$ 600 acho que não cobre despesa de uma pessoa vivendo sozinha, durante um mês. Imagine de cinco pessoas, seis pessoas. Tem famílias aqui que têm seis, sete pessoas dentro de casa”, observa Sara. O Ministério da Cidadania incluiu 2 milhões de famílias no Auxílio Brasil, em agosto, fazendo com que o programa chegasse a 20,2 milhões de beneficiários e atingindo, no referido mês, o maior patamar da história dos programas de transferência de renda do Governo Federal.
Com poucos recursos financeiros e falta de oportunidades de trabalho e de gerar renda, as famílias do Aratu dependem de projetos sociais para comer e perambulam pelas ruas da cidade para catar lixo e conseguir algum dinheiro com reciclagem. Outras recorrem à comercialização de drogas.
Nesse cenário de vulnerabilidades, não são incomuns situações de abuso sexual e de violência envolvendo as crianças. “Muitas crianças nossas já passaram por abuso. Muitas crianças passaram por violência. A criminalidade aqui dentro é demais, demais. Tem de tudo, entendeu? E a maioria tem envolvimento com drogas. Infelizmente. Mas é uma realidade, sabe? E, às vezes, a gente sente muita falta dos pais no cotidiano das crianças. Falta participação das famílias nas atividades da associação”, desabafa Sara.
Sara recebe crianças com idade a partir dos seis anos. As menores ficam em creches, como o Centro de Referência em Educação Infantil (Crei) Márcia Suênia Madruga Alves da Silva e em outra próxima da Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental Afonso Pereira da Silva, ambas no bairro Cidade Verde II, próximo da Ocupação Aratu. Mas quando, por algum motivo, uma das creches não tem atividade, algumas crianças como o Renan são recebidas de braços abertos.
“Eles são muito carentes de conversa, sabe? Eles vêm pra cá e sentem como se isso aqui fosse um espaço onde têm liberdade. Aqui, eles podem se expressar, podem ter o momento deles de lazer. Podem ter uma comida melhor, onde em casa não tem. Se não tiver lanche, a gente não tem atividade, porque muitas crianças vêm pra cá por conta da comida”, relata a educadora.
Para muitas crianças do Aratu, o lanche oferecido pela Associação Amigas Solidárias é a única refeição do dia. Por isso, repetem duas, três vezes, quando possível. “Eu digo: meu Deus! Esse menino vai passar mal. A gente fica com medo. Mas não fala nada e deixa. Porque eu sei que, quando ele chegar em casa, ele não vai ter nada pra comer”, afirma Sara.
A escola pública e gratuita mais perto da Comunidade do Aratu é a Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental em Tempo Integral Professora Ana Cristina Rolim Machado, que está superlotada. Por isso, muitas crianças têm que se deslocar bastante para estudar, alguns até à praia da Penha ou à Escola Municipal de Ensino Fundamental Índio Piragibe, a alguns quilômetros.
A Prefeitura Municipal de João Pessoa oferece ônibus escolar, mas sem segurança alguma. Sara critica o desleixo: “O ônibus da prefeitura vem, mas o ônibus é aquela coisa, é um caos dentro do ônibus que, às vezes, os pais mandam, mas mandam com o coração na mão, sabe? Sem segurança nenhuma. Sem segurança nenhuma. Muitas vezes não vem monitor dentro do ônibus, então as crianças ficam soltas lá sozinha”.
Segundo Karla Mendonça, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que realiza pesquisa com crianças e adolescentes no Aratu, o contexto socioeconômico da comunidade é marcado por vulnerabilidades sociais causadas por desigualdades socioeconômicas que impossibilitam o acesso a direitos fundamentais na infância, legitimados em documentos protetivos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990.
“As crianças procuram a associação com aparente ‘autonomia’, buscando acesso a encontros de cuidado e lazer que parecem apreciar, como também possibilidades de socialização. Para as famílias, principalmente as mães, frequentar tal espaço é importante como colaboração à educação das crianças, principalmente ao avaliarem que seus filhos/filhas apresentam muitas dificuldades relacionadas à alfabetização/letramento. As mães possuem ocupações diversas, nas misturas dos trabalhos domésticos, com carrinhos de reciclagem e trabalhos em casas de família como diaristas”, conta a pesquisadora.
Na infraestrutura da comunidade, permeiam a falta de acessos a transportes, ruas esburacadas e sem pavimentação. “A ocupação não possui unidade de saúde e escola, tendo que depender do ônibus escolar municipal para acessar a escola localizada na Penha, bem como outras unidades no bairro de Mangabeira. As violências marcam o cotidiano dessas famílias, tanto por questões da falta de acessos a direitos sociais, como as próprias ações criminais que crescem por entre os becos pela pouca “vigilância” do Estado e que limitam os moradores através do “medo” das ruas”, analisa Mendonça.
O Brasil e, consequentemente, o mundo ideal de Miguel são representados por uma cama colorida, ilustrada no seu desenho. “Cama é boa pra deitar. E pra ficar relaxando com o celular. Na minha casa tem duas camas. Uma que é do meu quarto, outra que é do quarto da minha mãe. Durmo com meu irmão. Minha mãe fez o quarto pra quê? Pra dormir junto. Uma é pequena e a outra é grande”. Renan dorme com sua mãe. “Meu pai dormia mais minha mãe, mas ela expulsou ele de casa”.
Aparentemente insignificante, a cama colorida do Miguel simboliza possivelmente o direito à moradia, porque Miguel e Renan são crianças que estão crescendo em uma ocupação constantemente sob ameaça de despejo e cujas experiências familiares se assemelham às narradas emQuarto de despejo: diário de uma favelada (1960), livro autobiográfico de Carolina Maria de Jesus, onde ela relata sua vivência como moradora de favela, mãe e catadora de papel.
Uma das últimas intimidações que Renan, Miguel e seus pares sofreram se deu em abril de 2019, alguns meses antes da pandemia de covid-19, quando moradores da Comunidade do Aratu receberam 72 horas para saírem das suas casas, mesmo morando na localidade há quase 15 anos e as residências sendo de alvenaria. Na época, ninguém teve acesso à ordem de reintegração de posse e só tiveram conhecimento dela quando o prazo iria se expirar.
A Comunidade do Aratu existe porque as pessoas que vivem nela tiveram e ainda têm o direito à moradia violado pelo Estado brasileiro, embora garantido na Constituição de 1988. Atualmente, o déficit habitacional no país é estimado pela Fundação João Pinheiro em 5,8 milhões de moradias.
Devido à pandemia da covid-19 e à crise econômica brasileira que se arrasta há anos, existem ainda aquelas famílias que deixaram de poder pagar aluguel ou prestação da casa própria. O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, por maioria de votos, no último dia 5 de agosto, liminar concedida em junho, pelo ministro Luís Roberto Barroso, para suspender despejos e desocupações até esta última segunda-feira, 31 de outubro, um dia após o segundo turno das eleições.
De acordo com a campanha nacional #DespejoZero, mais de 35.285 famílias foram despejadas no Brasil durante a pandemia de covid-19, de março de 2020 a outubro de 2022. E mais de 188.621 estão sob ameaça de remoção. O resultado deste segundo turno para o cargo de presidente renovou a esperança dessas pessoas. De gente como o Miguel, que ganhou a cama que tem de uma doação. O lugar onde ele pode se abrigar para deitar e dormir ainda não é colorido como no seu desenho, mas, agora, haverá mais chances de ser.
Já no Brasil e no mundo ideal do Renan, há comunidades vivendo pacificamente, sob um céu azul claro, e um sorvete gigante, que provavelmente representa a doçura que a vida necessita ter, característica presente na sobremesa gelada à base de lacticínios como leite ou nata, à qual é adicionada fruta ou outros ingredientes e sabores.
Os meninos gostam de consumir itens que constam na cesta básica brasileira, como feijão e arroz. Mas eles também apreciam e reivindicam o direito de desfrutar de outros alimentos. Miguel, por exemplo, suspira ao lembrar de lasanha e de bolo. “Cuscuz com ovo e um cafezinho bem quentinho”, descreve entusiasmado.
Renan prefere feijoada com muito bacon e arroz. “Minha mãe trabalha de cozinhar. Fazendo um monte de coisa deliciosa. E faz em casa pra mim. Ela fez macarrão com molho de tomate. Fica bem gostoso. Minha mãe faz lasanha. Faz bolo de qualquer sabor”, ostenta Renan. Eles comentam, aparentemente envergonhados, que já aconteceu de faltar comida em casa. “Faltou por que minha mãe não tinha mais”, diz Renan.
Evidentemente, crianças como Renan e Miguel também são alvo da publicidade desenfreada, do consumismo, sobretudo na era da rede social digital TikTok. A pesquisa Tic Kids Online Brasil deste ano ressalta que nove em cada dez crianças utilizam internet no Brasil. Ao todo, são aproximadamente 22,3 milhões nessa faixa etária. O estudo indica que o acesso ainda é desigual no país e pode trazer riscos à saúde, como ansiedade, depressão e até mesmo dependência.
Direcionar publicidade ao público infantil, de qualquer produto ou serviço, em qualquer meio de comunicação ou espaço de convivência da criança, é considerada uma prática abusiva e, portanto, ilegal, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, lei de 1990. A gente sabe que, sobretudo nas redes sociais digitais, isso acontece. Além disso, as práticas de consumo podem definir e redefinir muitas relações sociais, provocando desejos, tensões, frustrações. Contudo, o caminho não seria educação para o consumo consciente e uso saudável de telas, tecnologias e mídias, conforme orienta a Sociedade Brasileira de Pediatria?
Renan se gaba ao dizer que tem um celular só seu e conta que sua mãe possui um iPhone. “Minha vó comprou lá no shopping. Jogo videogame no celular porque não tenho Playstation”. Miguel retruca e manifesta que tem um iphone também. Depois desmente e narra que um tio comprou uma piscina, igual às dos condomínios de luxo nas imediações, no litoral sul de João Pessoa.
“Deus me livre, não é a de plástico. É daquela que fica funda. A casa do meu tio é em um prédio. Meu tio não mora em nenhuma casa, ele mora em um apartamento. Minha mãe trabalha lá. Traz lasanha de lá. Fica lá no Cristo. E é muito longe. Trabalha de faxina, lavando. De vez em quando. Domingo. Sábado”, expõe o garoto. Na casa do Renan tem caderno, lápis, brinquedo, um monte de brinquedo, caminhonete. Na do Miguel, tinha televisão, mas seu tio mandou devolver. “A gente tinha videogame, mas só que quebrou. Era do meu tio também. A minha mãe não tem dinheiro pra comprar outro”.
Renan e Miguel expressam que gostam de ir ao Shopping Mangabeira, que fica perto da Comunidade do Aratu, e ao Parque da Lagoa, no Centro de João Pessoa, para brincar, mas pontuam que é preciso pagar. “Tem que comprar ingresso. Aqui [na associação] não precisa não, porque aqui a gente brinca na hora que a tia quer, não é Miguel?”, pergunta Renan, referindo-se ao balanço, cama elástica e demais brinquedos que estão disponíveis na Associação Amigas Solidárias.
Na procura por explicações para o impeachment de Dilma Rousseff, consumado em 31 de agosto de 2016, um dos argumentos, principalmente no espectro ideológico de esquerda, foi o de que a inclusão pelo consumo da era PT causou despolitização das classes mais pobres, assim como pode ser interpretado os discursos de Renan e de Miguel sobre consumo.
Baseando-se em uma pesquisa de dez anos, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado publicou artigo, mais outros pesquisadores, em abril deste ano, com uma análise sobre este debate mal resolvido no país, no Journal of Consumer Culture, um dos periódicos científicos de maior prestígio e impacto acerca de estudos sobre consumo.
Aos discutir os impactos políticos na subjetividade de pessoas pobres, provocados por políticas neoliberais como a inclusão pelo consumo no Brasil do século XXI, a pesquisa etnográfica realizada de 2009 a 2014, com novos consumidores em um bairro de baixa renda – Morro da Cruz – na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, concluiu que o consumo não necessariamente despolitiza a experiência humana, como é amplamente assumido na literatura acadêmica sobre o neoliberalismo.
“Em uma sociedade em que os pobres obtêm bens por meio de relações hierárquicas e servis, a possibilidade de comprar fornece uma microesfera de reconhecimento, mas não em termos de ação coletiva clássica ou até mesmo de subversão oculta. Juntamente com o impulso para uma “emergência econômica” nacional, os bens de status tornaram-se veículos de uma subjetividade emergente”, diz o resumo do trabalho, em tradução minha. Os pesquisadores conceituaram essa dinâmica como “o direito de brilhar”. Para eles, o direito de brilhar são formas sutis de autoestima de classe e racial, e empoderamento individual e interpessoal frente ao desafio interclasses, que tem relação direta com a desigualdade social brasileira.
Além dos 13 alimentos da cesta básica brasileira – carne, leite, feijão, arroz, farinha, batata, tomate, pão, café, banana, açúcar, óleo e manteiga –, de preparações mais complexas que elaboram com eles e de outros que estão fora dessa lista e que fazem os olhinhos de crianças do Aratu como Renan e Miguel brilharem, há ainda os brincantes, um deles descoberto por Karla Mendonça, que também é professora de Educação de Jovens e Adultos (EJA) em escola pública da Rede Municipal de João Pessoa.
Pela UFPB, Karla pesquisa especificamente as vivências cotidianas das crianças nas intimidades de suas casas e da comunidade, observando as práticas compreendidas em sentidos de “bem estar”. Dessa forma, propõe-se esboçar os movimentos da(s) infância(s) que crescem nos territórios Sul da capital paraibana.
O estudo começou em março de 2021, através de uma pesquisa qualitativa inspirada no método etnográfico e cartográfico por entre quatro comunidades situadas nas proximidades do litoral sul de João Pessoa (Penha, Aratu, Jacarapé, Portal do Sol).
Ao chegar à Associação Amigas Solidárias, na Comunidade do Aratu, para realizar uma observação participante junto às crianças que frequentam o espaço no contraturno da escola regular, uma das crianças lhe ofereceu um galhinho para que comesse. Ela não reconheceu a planta e a criança disse que era “bem bom tia”, mas não sabia nomeá-la.
Outras crianças se aproximaram e indicaram a árvore de seriguela, de onde a criança teria retirado o raminho. Elas diziam ser azedinho e outra revelou “que se deixasse, comia o dia inteiro”. Retiraram outro galhinho e lhe pediram para experimentar, o que fez e achou realmente azedinho. Por demonstrar apreciar o gosto, em outros encontros, foi presenteada novamente por outras crianças com o raminho de folha de seriguela.
“Aparentemente, as crianças apreciam o sabor e o graveto azedinho parece ser consumido como um alimento “brincante”, talvez por ser associado, por exemplo, ao consumo de doces acessíveis como pirulitos e bombons. O consumo do raminho parece também ser hábito das infâncias das gerações anteriores, de suas mães, por exemplo. Então essa coleta se movimenta por entre laços em sabores afetivos e de brincadeiras coletivas”, avalia a pesquisadora.
Na tentativa de saber se haveria alguma explicação científica para esse consumo de raminhos de seriguela, resolvi procurar a Silvanda de Melo Silva, professora titular do Centro de Ciências Agrárias (CCA) da UFPB, em Areia, no Brejo paraibano. De acordo com ela, a cirigueleira, nomeada assim na fruticultura, é uma frutífera do gênero Spondias, assim como o cajá, umbu, umbú-cajá, cajarana, umbuguela, cajarana, entre outras espécies deste gênero.
Silvanda de Melo Silva explica que a cirigueleira é uma frutífera cujos ramos jovens apresentam sabor agridoce (açúcar/ácido), muito apreciado. “Na composição desses tecidos jovens, estão presentes açucares, ácidos, pectinas, celulose, vitaminas (C e do complexo B, predominantemente), compostos fenólicos, que comprovadamente promovem benefícios à saúde pela captura de radicais livres, também referido como atividade antioxidante”, afirma.
Segundo a cientista, os compostos antioxidantes são relatados como componentes importantes para a prevenção de doenças crônicas, como cardiovasculares e câncer. As folhas, tecidos jovens, cascas e sucos de frutos das spondias têm sido, inclusive, amplamente utilizados para fins medicinais e não medicinais.
“Todas as partes da árvore são importantes. Um chá de flores e folhas é útil para aliviar várias condições inflamatórias, dores de estômago e tem potencial de cicatrização de feridas”, conta a docente.
Silvanda de Melo Silva recupera que, por exemplo, sobre o cajá, são relatadas na literatura diversas atividades farmacológicas de folhas e caules, que incluem antibacteriana, antiviral, antimicrobiano, antimalárico, anti-helmíntico, antidiarreico, anti-inflamatório, abortivo, cicatrizante, antioxidante, entre outros. Quanto aos frutos das spondias, a coloração pode variar de verde para o amarelo (umbu) e de amarelo para alaranjado (umbu-cajá, cajá e a cajarana do Sertão, respectivamente).
Conforme a pesquisadora, os frutos de casca mais amarelada ou alaranjado são fontes importantes de alfa-caroteno e de beta-caroteno, carotenoides percussores da vitamina A, como o cajá e o umbu-cajá. Frutos de casca de coloração de verde para amarelo, quando maduros, como o umbu, apresentam maior aporte de flavonoides, metabólitos secundários da classe dos polifenóis, componentes de baixo peso molecular encontrados em diversas espécies vegetais
Os carotenoides são importantes pigmentos lipossolúveis responsáveis pelas cores laranja, amarela e vermelha presentes em bactérias, algas, fungos e vegetais. Nos organismos fotossintetizantes, participam como coadjuvantes no processo de fotossíntese e ajudam a proteger contra os possíveis danos causados pela luz.
“Os frutos de Spondias de casca com tons avermelhados, quando maduros (ciriguela, umbuguela), apresentam elevados conteúdos de ácido ascórbico, além de compostos fenólicos, principalmente antocianinas, como quercitrina e miricetina, compostos com reconhecido potencial antioxidante. Além disso, frutos da cirigueleira e da umbugueleira são muito saborosos. Por serem ricos em açucares solúveis e apresentarem um perfeito balanço açúcar/ácidos, sempre nos deixa com saudades do sabor e na expectativa pela próxima safra”, finaliza a explicação a cientista.
Pode-se dizer que a Associação Amigas Solidárias funciona como uma segunda casa para as crianças da Comunidade do Aratu. O trabalho começou no meio do primeiro ano da pandemia de covid-19, em 2020, quando todo mundo teve que ficar em casa e a fome aumentou no país.
Sara e Lili iniciaram as ações oferecendo refeições prontas e roupas para as famílias da comunidade. Às vezes, entregavam cestas básicas que conseguiam com doadores. E aí foi começando o trabalho. Especificamente, com as crianças, as atividades foram desenvolvidas um pouquinho depois, com uma colônia de férias que reuniu, de pronto, dez crianças. Naquele momento, perceberam que estavam muito defasadas com relação à educação formal.
“Não sabiam ler, escrever, pegar num lápis, numa tesoura. E aí despertou na gente aquela vontade. Vamos botar um reforço escolar? Vamos! E aí a gente resolveu colocar um reforço escolar!”, conta Sara. Quando abriram as matrículas, as mães se interessaram. Nas primeiras semanas, identificaram um problema pior: as crianças estavam sem ir à escola.
“É, estavam naquela questão remota e aí as crianças de quinto ano, sexto ano, sétimo ano, nono ano sem saber ler e escrever. A cabeça ficou fervendo. Liliane, a gente tem que fazer alguma coisa pra poder mudar essa realidade, eu disse. E aí a gente começou a fazer campanha atrás de professor, falava com amigos, postava no Instagram que estamos precisando de voluntários”.
Duas professoras abraçaram a causa e ficaram durante o ano passado todinho com elas. O prédio da associação fica no quintal da casa delas. “A casa de Lili é aqui atrás e a minha aqui do outro lado. Chegamos antes da pandemia”, reitera Sara.
Sara e Lili não têm diploma de Ensino Superior, mas isso não é um problema para elas. “Não, formada não. Só temos a pedagogia do coração. Porque nós não somos formadas, a gente passa pras crianças o que a gente sabe, tá entendendo? Então, assim, tudo que a gente sabe, eu acho que, às vezes, eles aprendem mais do que estar numa escola com uma professora formada, porque a gente traz a vivência, a convivência familiar, sabe? O amor, o respeito. Então a gente vai além da educação em si, do saber ler e escrever”, afirma.
Sara foi uma criança que participou de uma associação como a que tem hoje. Ela frequentou a Casa Pequeno Davi, no bairro Baixo Roger, também em João Pessoa, só que próximo do Centro Histórico da cidade. Essa ONG existe há mais de 30 anos.
“Eu tive uma vivência lá, sabe? O meu primeiro emprego eu conquistei porque eu estava na casa Pequeno Davi. Eu fiz um curso de informática na época e conquistei meu primeiro emprego, sabe? Eu tive essa oportunidade que as crianças daqui estão tendo. Então eu acho que é muito mais fácil quando você conhece uma realidade e você consegue entender o que está acontecendo hoje com essas crianças. Além do amor que eu tenho, eu acho que é dom também”.
O edifício inacabado da Associação Amigas Solidárias foi erguido com a ajuda de um brasileiro que mora nos Estados Unidos, chamado Ademar. “Ele não conhece a gente pessoalmente, nunca veio aqui. Às vezes a gente conta e as pessoas acha que é mentira”. O doador conheceu a Sara por intermédio de um amigo dela que também tem projeto social em João Pessoa.
“E aí ele ligou pra mim e perguntou como era o projeto, perguntou como é que se dava as atividades, se tinha lanche, se não tinha. Eu disse que a gente faz aula de recreação, mas que a gente não tinha um espaço adequado pra poder garantir uma segurança melhor pras crianças. E aí ele disse: mas vocês têm um espaço? Tem um local onde a gente possa construir? Aí eu disse tem. Está no papel. Eu já tinha tudo, porque trabalho com CorelDraw, sabe? Design gráfico. E aí eu já tinha a planta da associação”.
Ademar, então, garantiu que construiria o prédio da associação. “Meu Deus do céu, eu chorei tanto nesse dia, chorei tanto, Lili também. Foi muito emocionante pra gente de saber que uma pessoa lá do outro lado do mundo, que não conhece a gente, o nosso trabalho, faria isso por nós, enquanto existem pessoas aqui que não dá esse valor, sabe?”.
Ademar deu dinheiro para levantar as paredes, teto e cobri-los de cimento. Foi isso que disse que faria e fez. A construção ainda está em fase de acabamento. “Porque a gente está fazendo aos poucos, entendeu? A gente, tipo eu e Liliane, a gente não trabalha. Desde quando a gente iniciou esse projeto, eu não trabalho, eu não recebo nada de doações pra mim. E a gente cata reciclagem, muita das vezes a gente catou a reciclagem pra poder botar aqui dentro do projeto e até hoje a gente cata a reciclagem”.
O carro de Sara, que serve ao projeto, está quebrado. “Tá pra sair da oficina, graças a Deus. Deus mandou pessoas pra nos ajudar, sabe? Mas foi bem assim, a dificuldade foi tremenda, três semanas já na oficina e a gente sem carro, perdeu de pegar doações, porque tava sem carro, sabe? Hoje a gente tava sem lanche para as crianças. Mas aí o telefone tocou, vem pegar a banana e a laranja aqui. A gente foi de moto mesmo e já garantiu o lanche das crianças. Então é assim, sabe? É acreditando em Deus que a gente tá fazendo o bem”.
Para Sara, quando ela morrer, levará nada desta vida. Dela ficarão as lembranças das pessoas que ajudou. Ela ainda não tem filhos. Lili tem Victor Hugo e um casal de gêmeos. São mais de 50 inscritos na associação. No horário da manhã, Sara e Lili correm atrás de doações, fazem reuniões. Ainda estão em processo de legalização. Oferecem aulas de capoeira, de karatê, de inglês. No primeiro semestre deste ano, foi ofertada oficina de percussão de maracatu, em parceria com a Associação Maracatu Nação Pé de Elefante, cuja sede fica no Varadouro, no centro histórico de João Pessoa.
Antes de seguir para o Aratu, Sara morava com a mãe. A Lili, de aluguel. E foi no Aratu que viram uma oportunidade de estar em um canto fixo, sem pagar aluguel. “Aqui é uma ocupação. A gente não paga água, nem luz, é tudo clandestino. A gente trabalhava com festa, eu e Lili. E aí na pandemia a gente ficou desempregada. Entendeu?”. Sara diz que ela e Lili são quase irmãs de almas. Se conhecem há mais de oito anos. Sara morou um tempinho na casa de Lili, assim que se separou do ex-marido.
A chegada de moradores da Comunidade de Dubai, no final do ano passado, aumentou a tensão na localidade. “Não mudou nada, pelo contrário. E eu acho que as pessoas todas as noites vão dormir com medo de acontecer a mesma coisa que aconteceu com Dubai. Por que qual a segurança que a gente tem aqui? Nenhuma. A gente não tem regularização fundiária. Agora a segurança que a gente tem, que eu e Lili acredita, primeiramente Deus, e a gente acredita que a associação ela tem um peso aqui dentro”.
Na concepção de Sara, nenhum juiz terá coragem de mandar derrubar uma associação que está atendendo mais de cinquenta crianças. “Então a gente sabe que a gente faz um peso aqui dentro. A gente tem um peso dentro da comunidade. Mas isso não quer dizer que não corre o risco de derrubar”.
Segundo Sara, o vice-prefeito de João Pessoa, Léo Bezerra, já esteve na comunidade. A vice-governadora, “doutora Lígia”, como denomina, também, assim como “o deputado estadual doutor Damião”. “Veio aqui, tiraram fotos, conheceram, perguntaram comé que a gente mantém isso aqui e voltou. E na época das eleições veio muitos. Muitos. Muitos, muitos, muitos. Ah, porque aqui é uma associação, aí vem tirar foto e vai embora”.
A Comunidade do Dubai foi desocupada em novembro do ano passado, após decisão judicial. Mais de 400 famílias ocupavam o local, que fica em uma área de preservação ambiental, com 15 hectares de Mata Atlântica, na mesma região do Aratu. Muitos dos moradores de Dubai foram para a Comunidade do Aratu. Eles são migrantes na própria cidade.
“A comunidade do Aratu é antigona, é enorme. Se você for andar por aqui, você vai dizer meu Deus do céu isso aqui é Aratu, isso aqui é Aratu, isso aqui é Aratu, é infinito assim, sabe. A Comunidade do Aratu é praticamente um bairro. Quando a gente chegou aqui nessa área onde a gente está, a primeira casa de alvenaria que foi construída foi a casa de Lili. O resto era tudo barraco por aqui”.
A região onde é localizada a Ocupação do Aratu é cobiçada pela construção civil, especialmente pelas empresas do Grupo Holanda e pela Construtora Alliance.
A área foi adquirida pelo Governo do Estado da Paraíba. Em 1960, foram construídos conjuntos habitacionais. E meados dos anos 1970 e 1980, ocorreu o planejamento turístico para esse local, inicialmente como Projeto Costa do Sol e, em seguida, ficou conhecido como Polo Turístico Cabo Branco. Essa área liga João Pessoa ao Município do Conde, formando uma Região Metropolitana destinada, principalmente, a empreendimentos de veraneio de luxo.
Geralmente, a preservação e conservação do meio ambiente são deixadas de lado devido aos interesses privados, com a desculpa de que movimentará a economia e criará empregos. Enriquecer empresários parece mais importante do que garantir o direto à moradia de cidadãos como os da Comunidade do Aratu, que foram obrigados a experimentar uma ocupação irregular para terem onde morar, por conta de um defeito de cor, como diria a escritora Ana Maria Gonçalves, em um contexto de necropolítica, que faz uso do poder social e político para decretar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer.
Um indício recente da provável relação promíscua entre Estado e a iniciativa privada é o fato de o empresário Antônio Aldenor de Holanda ter recebido, na penúltima quarta-feira (26), o título de cidadania pessoense durante sessão especial da Câmara Municipal de João Pessoa, realizada na Chácara Paraíso, na avenida Beira Rio, em João Pessoa.
No mesmo dia 26 de outubro, o blog Turismo e Foco noticiou que mais três empreendimentos hoteleiros devem ser anunciados em breve, para se instalar no Polo Turístico Cabo Branco. Segundo o site, “a partir do início das obras de dois resorts no Polo Turístico Cabo Branco – Ocean Palace Jampa Eco Beach Resort e Amado Bio & Spa Hotel – haverá um incremento de mais de 1,7 mil apartamentos, porém, após a conclusão de todo o projeto, a capital paraibana passará a contar com a oferta de mais de 14 mil apartamentos”.
Os três empreendimentos hoteleiros terão aporte financeiro de R$ 450 milhões e prometem geração de 3,4 mil empregos diretos a partir do início da operação, de acordo com o site. Dois hotéis serão construídos próximos a Jacarapé e o terceiro do lado oposto, ambos, não se sabe ainda se nas dependências ou no entorno do Parque Estadual Jacarapé, situado na entre o rio Jacarapé e a Praia do Sol, justamente no Litoral Sul de João Pessoa. Serão abertos 1,2 mil apartamentos.
Ainda conforme o blog Turismo e foco, os nomes dos empreendimentos e das empresas investidoras estão em sigilo. Mas já há as informações de que somente um dos projetos abrirá 600 unidades habitacionais de alto padrão e investimento superior a R$ 200 milhões. “Todos os projetos já estão em stand by para serem apresentados ao trade turístico paraibano, o que deve ocorrer num prazo máximo de 30 dias. Um dos grupos queria acelerar essa divulgação, mas os outros dois preferiram aguardar mais um pouco”, diz o site.
Essas foram as informações mais atualizadas que identifiquei sobre o avanço da construção civil na área da Ocupação do Aratu, no Litoral Sul de João Pessoa. O atual governador João Azevêdo (PSB) se reelegeu. Seu partido tem tradição de ceder aos interesses da construção civil, a exemplo do que aconteceu anos atrás, no Recife, em Pernambuco, Estado vizinho, acerca das tentativas de vender o Cais José Estelita, na Ilha de Antônio Vaz, no coração do Recife, a construtoras.
Apesar da eleição do Lula renovar a esperança de crianças como Renan e Miguel, há certo consenso no campo progressista de que a luta continua, porque o bolsonarismo não parece ser um movimento que vai se esfarelar de uma hora para outra. A diferença é que, agora, haverá mais possibilidades de diálogo com o poder central. Na esfera do meio ambiente, são positivos, recentemente, o comprometimento do petista com carta pró-meio ambiente da Marina Silva, condição da ex-ministra para apoiar sua candidatura, e a confirmação de sua participação na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022, a COP27, que acontecerá de 6 a 18 de novembro, em Sharm El Sheikh, no Egito.
*Pedro Paz é jornalista e doutorando em Antropologia pela UFPB e produziu esta reportagem especial com uma bolsa da Formação “Primeira infância e a cobertura das eleições 2022”, uma parceria das organizações Nós, mulheres da Periferia, Alma Preta, Amazônia Real, Marco Zero e Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.
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