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Por Juliana Romão*
A história de Pernambuco ganhou um novo capítulo político e linguístico em 2022. As eleições moveram para o feminino as forças políticas mais importantes no estado, com Raquel Lyra (PSDB) a primeira governadora ao lado da vice Priscila Krause (Cidadania), após uma igualmente inédita disputa feminina contra Marília Arraes (Solidariedade) e a vitória da primeira senadora do estado, Teresa Leitão (PT). Uma guinada ao mesmo tempo conservadora e progressista.
Contrariando as projeções, foram as mulheres que reconduziram a direita tradicional ao comando estadual após 16 anos de gestão do PSB. A vitória de Raquel e Priscila, aliançada ao centro e à extrema-direita pernambucanas, nova oposição ao Governo Federal com Lula na presidência, redesenha as forças políticas locais. A dupla feminina – nunca no Brasil uma chapa só de mulheres venceu no executivo, encontrará apoio numa Assembleia Legislativa mais conservadora e extremista, tendo nomes do PP e do PL de Bolsonaro como os mais votados, e uma bancada pernambucana na Câmara Federal com três mulheres, a maior da história, embora ainda mínima em relação aos 22 homens eleitos, a maioria nomes de famílias tradicionais da política. A esquerda estadual só terá maioria no Senado Federal.
Além da orientação ideológica dos próprios partidos das eleitas, a correlação de forças tende a endireitar mais o governo de Raquel, só não se sabe o quanto e de que forma a agenda conservadora se manifestará nos nomes para as pastas, na estrutura e endereçamento de prioridades. O tom da relação com o governo federal modulará as animosidades locais e é ponto de muita expectativa pela declaração de “não declarar” voto à presidência ressoada por Raquel durante a campanha.
É certo que a inédita lente de gênero no topo da hierarquia estadual impactará a gestão, ao trazer outros pontos de vista e interesses ao debate público. O fato de ser mulher, no entanto, não representa necessariamente avanços nos direitos sociais ou das próprias mulheres. O gênero importa, mas é insuficiente sozinho. Para transformar as estruturas e promover mudanças reais, deve estar compromissado com uma agenda de justiça social, que enfrente as desigualdades raciais (tema ausente da campanha) e econômicas, centrando as políticas na população feminina, a maior e mais vulnerável do estado. Melhorar a vida delas é qualificar exponencialmente todo o entorno. Neste sentido, a presença de mulheres realmente diversas na gestão e a abertura para uma ainda distante aproximação com os movimentos sociais e de mulheres seria uma sinalização bastante importante, apesar de improvável. A ver.
Do ponto de vista linguístico, a reviravolta foi mais progressista. O processo eleitoral reverteu temporariamente a invisibilidade narrativa que acompanha as mulheres políticas por sua baixíssima participação nos espaços de poder. Pernambuco proporcionou um momento raro na cena política de um país em que a maioria da população (52%) e do eleitorado (53%) é minoria nos espaços de decisão. Raquel agora se soma à governadora reeleita do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), e serão as únicas em todo o país.
Enquanto forem poucas, o feminino estará ocultado na fala cotidiana. Vale lembrar a primeira e até agora única presidenta da história do Brasil, Dilma Rousseff (PT), que teve o pedido para ser chamada de presidentA desprezado pela grande mídia e pela elite. Não era uma rejeição à palavra, mas ao poder que ela significa – uma mulher na cadeira máxima.
A linguagem emoldura as relações de poder, por isso nossa fala serve para manipular e emudecer, abastecendo posições de mundo dominantes, mas pode ser ferramenta de mudança e democratização, quando ativada em outra direção. A campanha local e os resultados das urnas promoveram esse contramovimento, empurrando em sentido “anti-horário” as engrenagens da língua para reconhecer e visibilizar as mulheres políticas nas narrativas. Não todas, como sabemos, mas de forma suficientemente contundente a evidenciar que o apoio político-partidário real torna candidatas tão competitivas quanto qualquer candidato.
A presença de mais mulheres, sobretudo as negras, indígenas, PCDs, LBTs altera o ecossistema ao redistribuir poder, reconfigurando agendas, demandas e prioridades. Não é trivial. A representatividade diversa reverbera na forma como falamos e pensamos, o que por sua vez ativa novos símbolos e, num círculo positivo de transformação, amplia a semelhança entre a foto do poder e a da população.
Estas eleições não apresentaram a diversidade necessária, apenas as mulheres brancas, com herança política de família competiram com chances de vitória. Ainda assim, houve a mobilização de um imaginário pouco acessado pelo eleitorado, de protagonismo feminino no poder executivo, o que se via não correspondia às palavras habitualmente usadas no masculino: “os candidatos”, “os entrevistados”, “os eleitores”.
Já no primeiro turno, as candidaturas de Teresa leitão e Marília Arraes mantiveram liderança estável nas diversas pesquisas de intenção de voto, tendo necessariamente que ser citadas e consideradas prioritárias nas coberturas, análises sobre o pleito e nas estratégias de campanha de todas as outras candidaturas, a maioria masculinas.
Essa presença demandou um suave deslocamento narrativo, começando pela flexão de gênero – senadora/senador, governadora/governador, candidata/candidato – e avançando em outras searas. Para conversar sobre as eleições, eleitoras, eleitores, imprensa, equipes de campanha, analistas, instituições, todo mundo foi instado a corresponder gênero e cargo em disputa.
A flexão é a ponta visível de toda uma metamorfose que acontece na mente, passando por um chacoalhar das expectativas quanto à capacidade das mulheres, da ambição política de outras mulheres e meninas, de reforço à superação das desigualdades, desmonte de estereótipos e de reparação da trajetória de desvantagens que o feminino plural e o diverso enfrentam para acessar as estruturas institucionais. Falar é fazer.
No segundo turno, o protagonismo inevitável das duas candidatas travou a tendência da fala perspectivada no masculino. Se a disputa fosse entre uma candidata e um candidato, a força centrífuga da hegemonia social dominaria as sentenças: “os candidatos em disputa”, “eles debaterão hoje”.
Não houve atalho para ausentar da linguagem o marcador feminino que dominou o processo: duas mulheres em campanha pelo comando do executivo estadual, visíveis e ativas em debates públicos, explicando propostas, articulando, concedendo entrevistas, sendo as falas mais aguardadas nos espaços, notícia diária nos jornais, rádios, tvs, redes sociais, vocalizando a si mesmas como políticas, em primeira pessoa e com o próprio timbre de voz.
O outro lado da moeda, no entanto, indica que não estamos num novo tempo, apenas demos um passo na jornada de enfrentamento às desigualdades, lembremos que o Brasil segura a lanterna dos indicadores mundiais de representação feminina na política. Além da ausência de mulheres negras no debate, inúmeras situações preconceituosas e sexistas tiveram palco ao longo da campanha, com reforço a estereótipos e cobranças desproporcionais, desconectadas da política e nunca direcionada a candidatos.
Foram recorrentes as especulações em torno do uso eleitoral do infarto fulminante do marido de Raquel, patrulhamento de roupas, cabelos e estética em geral. A demanda popular incorporada nas estratégias das campanhas garantiu o lugar de esposa-mãe negritado nas posturas e nos discursos, como uma autorização social para que ambas possam estar na política, sem falar nos questionamentos sobre como se daria a licença-maternidade caso Marília, grávida, fosse eleita.
A postura mais contida das candidatas muitas vezes tentou neutralizar o próprio feminino, talvez como estratégia preventiva às recorrentes associações a destemperos, “agressividade”, “pouca firmeza”, muito isso, pouco aquilo, num julgamento implacável ao gênero, que pesa nos ombros de toda e qualquer mulher na cena pública, mais ainda se ela for negra, periférica, trans. E a política? vem depois do julgamento. É caro o pedágio para estar na vida pública.
Elas transpuseram violências intrapartidárias e inúmeras barreiras até tornarem-se “socialmente” visíveis, conquistando o direito de “existir” na correlação de forças políticas e nas referências de fala. Não aleatoriamente, e por isso mesmo a visibilidade pontual não esteve franqueada às demais. As candidatas negras, LBTs e periféricas em geral receberam menos recursos, vivenciaram mais violências, usaram menos o microfone.
Raquel Lyra, Teresa Leitão e Marília Arraes participaram das eleições com estrutura e financiamento, o contrário da usual prática partidária de baixíssimo apoio real às candidatas. Atuaram em posição de destaque, ocupando a mesa principal e o centro do debate público. Estiveram no poder com poder.
Essa diferença é premissa das cotas eleitorais de gênero e raça, exigir dos partidos candidaturas femininas diversas e competitivas – presença, recursos e visibilidade – para equilibrar minimamente a disputa desigual e superar a sub-representação. Vem daí a imensa resistência partidária em cumprir a lei: mulheres plurais competitivas são eleitas, se multiplicam e impõem a distribuição do poder político e linguístico.
*Juliana Romão pesquisa a interseção entre gênero, linguagem e política. Consultora em comunicação política, jornalista e mestra em Comunicação (UnB). É cofundadora e cogestora do projeto-ação Meu Voto Será Feminista, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política e da Frente Pelo Avanço dos Direitos das Mulheres. julianagromao@gmail.com
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