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Com seios à mostra e uma máscara de vaca cobrindo o rosto, Dandara Pagu, produtora cultural, saiu às ruas de Olinda para brincar o Carnaval. O ano era 2015. Enfrentou sozinha os olhares condenatórios, as piadas machistas e até confrontou um policial que queria prendê-la por atentado ao pudor. Mas toda a hostilidade contra seu ato libertário só potencializou a mensagem. No ano seguinte, uniu-se a outras “vacas de divinas tetas” para criar o bloco feminista Vaca Profana, cujo nome faz referência a uma música de Caetano Veloso, e que arrasta foliãs pelas ruas da cidade patrimônio em um grito pela autonomia das mulheres sobre os seus corpos.
“Em 2018, o Carnaval será feminista – ou não será!”, dizem as que levantam o estandarte dos direitos iguais. O espaço plural da festa é, para elas, um terreno propício para dar visibilidade a questões sérias como a liberdade sexual e a violência contra as mulheres. Amparados pela efervescência atual do debate de gênero, blocos feministas conquistam território promovendo engajamento político e consciência social numa festa onde a imagem feminina é hiperssexualizada e onde os assédios ainda são frequentes. Nesses grupos, o protagonismo delas se faz presente no discurso, nas atividades e até na música que embala as festas, geralmente executadas por bandas femininas. E novos grupos continuam surgindo a cada ano em Pernambuco.
O bloco Anárquico Libertário Boceta Voadora fará seu primeiro voo carnavalesco este ano, no Poço da Panela, Zona Norte do Recife. Numa mistura de mitologia, lirismo e consciência social, a agremiação celebra o prazer feminino e questiona representações que colocam a mulher em um lugar de repressão, como Pandora. A primeira mulher do mundo para a mitologia grega é também responsável por liberar todos os males da humanidade. “Nosso bloco convida as mulheres para se libertarem dessa imagem de mulher desobediente, reprimida que repercute negativamente na imagem do corpo feminino e no seu prazer. A mulher pode abrir as asas, voar e gozar”, explica uma das fundadoras da agremiação e sexóloga Magali Marino.
Contrapor o simbolismo de figuras associadas à subserviência feminina também é um dos motes do Grêmio Anárquico Feminístico Essa Fada, criado em 2015. Nele, a figura sexista da fada como imagem de uma mulher meiga e perfeita, sempre pronta a atender os desejos dos outros é ressignificada. O trocadilho do “essa fada” com “és safada” manifesta, na verdade, a liberdade da realização dos próprios desejos, durante e depois do Carnaval.
“É uma forma de dizer que a mulher pode ser do jeito que ela quiser e não sofrer assédio por isso”, argumenta a jornalista Geisa Agrício, uma das organizadoras da agremiação, que no ano passado reuniu cerca de 300 pessoas em seu desfile. Mestra em Antropologia e co-autora do livro “Sem elas não haveria Carnaval”, Ester Monteiro de Souza, considera que as manifestações culturais populares oferecem a abertura propícia para visibilizar debates como o direito ao prazer e à liberdade sexual, o fim da cultura do estupro, a erradicação do machismo e a luta por direitos iguais, algumas das principais reivindicações dos blocos feministas.
“São espaços democráticos, de visibilidade, de sociabilidade dos mais diversos segmentos da sociedade. E os blocos carnavalescos que trazem ideais feministas também levam essas temáticas para além Carnaval”, analisa.
Acerto de marcha
Assim como os movimentos por igualdade de gênero seguem progredindo, o discurso, as ideias e as estratégias dos blocos feministas também continuam em evolução. “No primeiro ano, nosso estandarte mostrava uma fada agarrada ao obelisco de Brennand, um símbolo fálico. Depois entendemos que essa imagem não representava as mulheres lésbicas, por exemplo, então, na edição seguinte o símbolo já passou a ser uma fada fazendo mágica com ela mesma. No último desfile, a fada do estandarte era uma mulher negra”, narra Geisa Agrício do Essa Fada.
Mas, se de um lado as manifestações feministas ganham força, os números da violência contra a mulher também se evidenciam. No ano passado, dados do Governo Federal mostraram que as denúncias de violência sexual registradas pelo telefone 180 cresceram 90% nos quatro dias de festa, no comparativo com o mesmo período do ano anterior. E quem está no front da batalha pelo direito das mulheres de brincarem o Carnaval sem sofrer assédio sabe o preço dessa luta. “A gente acha que tem liberdade, mas quando sai no Carnaval ouve piadas, falas pesadas. Em São Paulo, um cara me ofereceu até dinheiro. Sair no Carnaval com os seios à mostra é um ato de muita coragem, as mulheres vêm falar comigo chorando após o desfile porque a gente realmente acredita nessa liberdade do corpo da mulher. Essa missão tem um peso muito grande porque é algo que a gente está construindo”, diz Dandara Pagu, do Vaca Profana.
Agenda dos blocos feministas Desfile do Vaca Profana 12 de fevereiro – 14h às 16h20 Praça do Jacaré – Olinda Desfile do Boceta Voadora 3 de fevereiro – 10h Rua Engenheiro Bandeira de Melo – Poço da Panela Essa Fada 7 de fevereiro – 17h às 23h Casa Astral – Rua Joaquim Xavier de Andrade, 104, Poço da Panela
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).