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Em ação inédita, pescadores e pescadoras vão ao STF contra Suape e CPRH

Raíssa Ebrahim / 29/11/2021

Crédito Inês Campelo/MZ Conteúdo

Demildo Heleno do Nascimento, “seu Dedé”, 67 anos, é pescador e tem na ponta da língua a conta do impacto socioambiental das dragagens do Porto de Suape, litoral sul de Pernambuco. Há dez anos, ele ia para o mar com os companheiros, jogava três mil metros de rede e voltava para casa com até 300 quilos de peixe. Hoje, volta com apenas 30 kg.

Suape, no entanto, não reconhece esse – e outros fatos – como prova da existência e resistência secular da pesca artesanal na região e dos danos causados pelas obras de dragagem, que incluíram dinamites para explodir rochas e arrecifes, provocando a destruição do ambiente pesqueiro e a morte de animais, com destaque para o mero, um peixe de grande porte ameaçado de extinção.

A Colônia de Pescadores do Cabo de Santo Agostinho (Z-08), que representa Suape, Gaibu, Xaréu, Pontezinha e Itapuama, está desde 2011 – portanto, há uma década – brigando na Justiça por reconhecimento, contra o Complexo Industrial e Portuário de Suape e também a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH).

A Z-08 teve sentença favorável na primeira e na segunda instâncias, que atestaram os prejuízos socioambientais causados por Suape e pela omissão da CPRH ao emitir licença autorizando dragagens sem que os estudos apresentados pela empresa fossem suficientes, dessem qualquer visibilidade à existência da pesca artesanal e previssem os possíveis danos e medidas mitigadoras ou compensatórias.

A dragagem é reconhecidamente de potencial degradador e é uma atividade permanente, que ocorre de tempos em tempos para manter a navegabilidade do canal de acesso externo ao porto. Isso reforça que esses impactos devem estar previstos, compensados e mitigados para que o ambiente marinho e a pesca artesanal possam ser preservados.

Mas Suape discorda e resolveu levar o caso a Brasília, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por isso, neste mês de novembro, em ação inédita, homens e mulheres das águas resolveram apelar para o Supremo Tribunal Federal (STF). O grupo é representado por quatro advogadas que atuam como assessoras jurídicas, sendo uma do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e três do Fórum Suape, organização que defende os direitos territoriais e socioambientais das comunidades atingidas por Suape.

A comunidade pede que as licenças ambientais para expedição e renovação de dragagem sejam dadas somente mediante estudos prévios criteriosos sobre as chamadas áreas de “bota-fora oceânico” e também mediante apresentação e execução de medidas mitigadoras dos impactos, além de medidas compensatórias, de natureza ambiental, financeira e social.

“Até o rio berçário de peixe, camarão, siri e caranguejo foi impactado. Destruíram o manguezal. Foi muito prejuízo ao estuário e ao ‘mar de fora’ (onde passam os navios, depois dos arrecifes)”, relata seu Dedé.

A batalha na Justiça

A Colônia Z-08 ganhou em primeira instância, através de uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal (MPF). Suape recorreu. A segunda instância, o Tribunal Regional Federal 5ª Região (TRF-5), confirmou a sentença e ainda disse que a empresa deveria fornecer auxílio emergencial aos pescadores e às pescadoras, além de indenização pelos danos causados. Suape recorreu de novo.

A empresa levou o caso ao STJ, que alegou não haver provas suficientes no processo. Só então a decisão foi favorável à Suape, após voto emitido pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que acatou a argumentação dos advogados da empresa e determinou que a ação fosse devolvida ao TRF-5. Semanas depois, Maia aposentou-se. A decisão foi recebida com espanto pela comunidade pesqueira e pelas assessorias jurídicas envolvidas no caso.

Para seu Dedé, não há dúvida alguma quanto aos impactos. O caso, porém, terminou virando uma queda de braço técnico jurídica. Isso porque, além de alegar haver provas técnicas suficientes – já analisadas e também aceitas em duas instâncias -, as organizações argumentam que não é função constitucional do STJ reexaminar provas e fatos, mas sim apreciar a matéria.

Suape entrou com recurso para que fosse declarada a ausência de nexo de causalidade, uma espécie “causa e efeito”, entre as atividades de dragagem e derrocagem e os prejuízos socioambientais apresentados desde o início nos autos do processo. Suape requereu também a revisão de uma das medidas mitigadoras impostas e o interrompimento da obrigação de continuar pagando o auxílio mensal aos pescadores e às pescadoras.

Na prática, Suape e CPRH já vêm adotando medidas previstas nas sentenças e o provimento de cestas básicas e auxílio em dinheiro (saiba mais ao final da matéria). Apesar disso, a empresa segue travando a batalha para não ser derrotada juridicamente. A comunidade pesqueira também reclama que, ao realizar tais medidas por conta própria, a empresa tem usado os próprios parâmetros, no tempo e no jeito dela, sem participação ativa dos pescadores e das pescadoras nem do MPF.

“Esse auxílio que Suape dá é complementar, uma cesta básica e R$ 400. É só para a gente não passar necessidade mesmo”, relata seu Dedé, frisando que auxílio nenhum valeria a pena para compensar os danos causados na última década. Os prejuízos incluem também o adoecimento mental da população e a falta de interesse dos mais jovens pela pesca, comprometendo não só a soberania alimentar, mas a tradição cultural e a própria vida.

“Suape não procurava a colônia, falava que não existia pescador ali. Como não existia? Não era nem do meu tempo ainda e já existia pescador ali”, sentencia o pescador. “Suape quando se senta na mesa, nunca tem proposta boa para os pescadores. Hoje a Z-08 não senta com Suape a não ser com a presença do Ministério Público. Porque Suape só quer o lado dela, não vê o outro lado, o lado dos atingidos”, complementa.

Violações de direitos

A assessora jurídica do Conselho Pastoral dos Pescadores, Ornela Fortes, lembra que, em 2021, Suape completou 43 anos, mas somente em 2016 saiu a primeira sentença, no âmbito da Ação Civil Pública, reconhecendo os impactos nocivos do porto para o meio ambiente e as comunidades da região. “Ou seja, somente 38 anos depois da instalação do porto é que o Estado brasileiro, através do Judiciário, reconheceu parte dos danos socioambientais causados pelo Complexo Industrial”.

Na avaliação dela, é importante que se diga o porquê de “parte dos danos”, já que essa ACP se refere tão somente aos impactos das dragagens de acesso ao canal externo do porto e aos “bota-fora oceânicos” em que foram descartados os rejeitos das dragagens.

“Sabemos que o Complexo Industrial e Portuário de Suape produziu e produz outros inúmeros impactos socioambientais”, reafirma Ornela, rememorando que, em 2010, a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) autorizou a supressão de grandes áreas de mangue, restinga e mata atlântica para a expansão do complexo.

“É gritante a dimensão dos impactos socioambientais. Então ter ao menos parte deles reconhecidos é de suma relevância, especialmente quando Suape se coloca como empreendimento sustentável a partir do slogan ‘Suape sustentável’ e outras campanhas nesse sentido”, defende.

Pescadores garantem que Suape prejudicou a pesca artesanal. Crédito Inês Campelo/MZ Conteúdo

Para Luísa Duque, uma das assessoras jurídicas do Fórum Suape, a ação da Colônia Z-08 mostra que “os pescadores e as pescadoras artesanais estão organizados e organizadas e muito conscientes de seus direitos, das violações e de quem é o violador”. Ela destaca também que todo esse imbróglio terminou virando “uma grande batalha de pontos técnicos, o que tornou o processo muito complexo”.

As assessoras jurídicas comentam da “surpresa” quanto ao julgamento do STJ sobre a falta de provas, cujo relator do recurso foi o ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Esse foi o último julgamento dele antes de se aposentar. “Por reconhecer omissões no exame de provas”, determinou o retorno do caso ao TRF5.

“O STJ deu uma decisão que vai na contramão de toda a jurisprudência do próprio STJ”, diz Luísa. Existe uma súmula, a Súmula 7/STJ, que proíbe a interposição de recurso judicial para reexame de fatos e provas. Em outras palavras, veda a possibilidade de o STJ funcionar como uma espécie de “terceira instância”.

Apesar disso, o ministro Napoleão não só recebeu como acolheu o recurso de Suape. “O processo já estava recheado de provas técnicas. O acórdão do STJ foi muito problemático. Além disso, parece não ter analisado nenhum dos argumentos que a defesa dos pescadores e das pescadoras apresentou”, detalha.

Através do Fórum Suape e do CPP, a Colônia Z-08 sustenta que Suape errou quando deixou de adotar medidas mitigadoras e errou quando produziu o dano. As organizações alegam que a Constituição foi ferida em vários pontos, incluindo o princípio da precaução e prevenção, acarretando violações de direitos.

Suape não reconhece nexo de causa e efeito

Entre as medidas que já vêm sendo adotadas por Suape, mesmo a empresa insistindo na batalha judicial, estão ações de proteção do peixe mero, boto-cinza e outras espécies da fauna impactadas, a fim de proteger e monitorar o habitat e promover a recuperação das populações. Há um projeto chamado Megamar para promover pesquisas de monitoramento da megafauna marinha na área portuária.

Também há projeto para proteção dos cavalos-marinhos. Suape informa que vem tomando ainda uma medida de sazonalidade das operações de dragagem, realizando-as somente durante os meses de inverno (de maio a agosto).

Procurada pelo Marco Zero, os representantes de Suape disseram estar cientes da interposição de Recurso Extraordinário no STF contra a decisão do STJ e informou que têm prazo até o dia 3 de dezembro para apresentação de contrarrazões.

Em nota, disse que “A decisão atualmente existente reconhece a necessidade de que a matéria seja melhor analisada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª da Região, vez que, ‘sem a comprovação inequívoca do nexo de causalidade, não é possível atribuir a responsabilidade pelo suposto dano ambiental às atividades do Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros, empresa pública mais conhecida como Suape’”. A empresa avalia que isso “se mostra acertado e justo”.

E reforça: “Conforme decisão da Primeira Turma do STJ não há comprovação do nexo de causalidade entre os fatos alegados na ação civil pública e qualquer conduta praticada por Suape”.

Sobre as medidas que vem adotando ao mesmo tempo que dá sequência à briga na Justiça, a empresa afirmou que “tem por política a preservação e proteção ao meio ambiente. Medidas que porventura estejam sendo cumpridas decorrem de decisão liminar vigente ou ação julgada pelo corpo administrador como importante para somar a outras ações que a administração entende como pertinentes às suas políticas ambientais”.

Questionada a respeito do diálogo sobre ações, parâmetros e prazos com pescadores e pescadoras, Suape diz, sem citar detalhes, que “tem instituído um Comitê de Diálogo Territorial, com reuniões periódicas junto às lideranças que debatem as prioridades, desafios e oportunidades do território”.

Procurada pela reportagem na quarta-feira, 24 de novembro, a CPRH até o momento não se posicionou.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com