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Crédito: Mayara Barbosa
Que minha cor
Não seja motivo de xingamento
E emudeçam os tons pejorativos
Que me causam sofrimentoQue meu passado
Não me plante na escravidão
E nunca esqueçam
Que fui escravizada
Mas escrava: NÃOQue as chibatadas só
Nos livros de História
Sejam lembradas
E junto também venham
Os heróis e as vitórias:
Zumbi, Dandara, Malês,
José do Patrínio, Benguela, Mahin, a glóriaTrecho do poema “Clamor Negro” de Odailta Alves
Os versos que abrem o poema Clamor Negro se apresentam como guia de uma trajetória de vida condicionada pelo racismo e pela escravidão. É o desabafo e também o levante de uma mulher negra que descobriu a força de seus antepassados e cansou de viver sob o olhar estigmatizante do patriarcado colonial branco. Esta mulher negra é Odailta Alves, poetisa e escritora da comunidade do Campo do Onze, no bairro de Santo Amaro, no Recife.
Primeira pessoa da família a aprender a ler, Odailta fez das palavras a sua principal ferramenta política e cultural: “Eu tive um processo de leitura e escrita muito social. Eu sou de uma geração que não tinha internet, então, era a partir das cartas que eu me expressava e me comunicava. Eu escrevia muitas cartas na comunidade e lia muitas cartas porque o índice de analfabetismo, quando eu era criança, era muito alto”.
Apaixonada por literatura e poesia, o processo de escrita de Odailta iniciou ainda na adolescência, mas foi após o seu contato com o poeta, ator, cineasta e militante do Movimento Negro, Solano Trindade, que a moradora de uma das maiores favelas do Recife decidiu que queria ser escritora e teria a experiência de vida das pessoas negras como sua principal fonte de inspiração. “Me tornei uma leitora muito voraz, mas eu não lia literatura negra porque não chegava até mim. O primeiro que me chegou foi Solano Trindade, li um poema dele num livro e fiquei encantada em me ver retratada”, revelou a poetisa.
Daí em diante, Odailta resolveu escrever poemas que pudessem fortalecer sua identidade e de todas as pessoas negras, sobretudo as mulheres. Foi então que surgiu o poema Clamor Negro, que depois se expandiu e virou um livro de poemas com o mesmo nome, lançado de forma independente por Odailta em 2016, e que já vendeu mais de três mil exemplares.
“O Clamor Negro me inspirou a trazer minha identidade preta para esse lugar da escrita, que é um lugar de conquista para o povo negro e muito importante para fortalecere nossa identidade. A gente demora a ter letramento racial, não é fácil, e eu não venho de uma família de militantes, eu venho de uma família de pessoas que catavam materiais reciclados na rua para sobreviver”, revelou a escritora.
Enquanto trilha uma trajetória para fortalecer e expandir os espaços de escuta para o seu Clamor Negro, Odailta também ocupa a academia e trabalha com a educação formal. A poeta tornou-se mestra em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no momento está cursando o doutorado em Linguística e é professora nas redes de ensino da Prefeitura do Recife e do estado de Pernambuco.
Crescendo em um contexto social onde a alfabetização era ainda um privilégio, Odailta Alves pensou em outras formas de levar os seus escritos ao encontro do público e, com isso, passou a recitar sua poesia em eventos e espaços públicos. E a partir da recepção dos espectadores, a escritora decidiu transformar o livro em um espetáculo que mistura música, dança e poesia.
“Fui costurando os meus poemas, pegando dois poemas de outras escritoras, um é de Cristiane Sobral: Eu não vou mais lavar os pratos, e o outro é de Vitória de Santa Cruz: Gritaram-me negra. E todo o restante do texto é meu. Depois eu comecei a ensaiar”, revelou Odailta.
“Eu queria muito trazer todo um percurso histórico sobre a nossa condição de mulher preta nessa sociedade, desde o processo da escravização até as conquistas, as leis. A ideia é realmente colocar a mulher preta no centro das narrativas de maneira muito didática, para que qualquer pessoa que não possua um letramento formal possa ver e sentir o impacto das palavras”, explicou.
Neste mês, em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, no dia 25 de julho, o espetáculo Clamor Negro realizou duas apresentações no Recife, na sede do grupo teatral O Poste. Durante as sessões, a equipe do espetáculo homenageou três mulheres negras: Elaine Cristina, co-vereadora do Recife pelo PSOL; Mônica Oliveira, comunicadora e militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco; e Mirtes Renata, mãe do menino Miguel Otávio.
A apresentação do espetáculo foi realizada por Odailta Alves e contou também com as participações da dançarina Darana e da cantora e musicista Isaar. Além dos poemas, o Clamor Negro ganhou uma nova roupagem, com letras da própria Odailta musicadas por Isaar.
“São músicas lindas e o nosso sonho é ver o povo cantando essas composições para além do espetáculo. Nessa nova roupagem, Isaar colocou toda sua musicalidade preta, potente, com a força da percussão. Já Darana vem com a dança afro para trazer todo poder do corpo preto da mulher ancestral”, contou Odailta Alves.
Enquanto mulher negra, é difícil segurar a emoção ao assistir o espetáculo, que se desdobra como um monólogo, mas com uma fluidez que impressiona, graças às suas múltiplas linguagens artísticas. Ao misturar dança e música com sua literatura efervescente, Odailta Alves nos instiga a expor as facetas do racismo, do machismo e de tantos outros sistemas de opressão que operam na vida das mulheres negras, e também nos afaga ao apresentar um mundo onde a negritude não é apenas sinônimo de dor, mas também de força, ancestralidade e beleza. Por isso, ao final da apresentação o público passa por um momento de troca junto a equipe do espetáculo para poder expor e compartilhar também suas vivências pessoais.
“Nesta temporada que fizemos no Poste, uma companheira levou a sogra, uma senhorinha que mora na mesma favela que eu nasci e me criei, em Santo Amaro. Uma senhorinha preta retinta, evangélica, estava lá com a sua saia comprida abaixo do joelho, sua blusinha de manga e essa senhora chorou o espetáculo todo. Ela chorou porque ela se viu espelhada ali e essa mulher tem tão pouco ou nenhum acesso aos discursos de empoderamentos, não é? Foi difícil manter a concentração na peça vendo aquela mulher se desmanchar o tempo inteiro”, relembrou Odailta Alves.
O espetáculo Clamor Negro estreou em 2017 e desde então já realizou mais de 50 apresentações para um público de mais de sete mil pessoas. Em 2022, o espetáculo recebeu o 3º prêmio Roberto de França Pernalonga de Teatro como “Melhor Monólogo”. Recentemente, a peça circulou pelas escolas públicas do Interior de Pernambuco apoiada por recursos do Funcultura.
Para Odailta Alves, levar a peça para as escolas é uma forma de garantir o cumprimento da Lei 10.639/2003, – determina a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo da rede de ensino -, que, segundo a escritora, ainda não foi efetivada de forma bem sucedida nas escolas.
“Sempre que apresentamos a peça a plateia reage com muita energia. Acontece realmente um reconhecimento do povo negro, as pessoas pensam ‘essa é minha história’. Isso possibilita a construção de outras narrativas de superação do racismo e é muito emocionante”, concluiu a escritora.
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.