Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Em nome da Filha, uma história para desnaturalizar o “amor” que mata

Débora Britto / 21/03/2019

Em 1991, o assassinato de uma jovem chocou a imprensa e a sociedade pernambucanas, mas não acabou ali. Mônica Francisca da Silva Lima tinha 20 anos, boa parte da vida perseguida pelo cabo Carlos Antônio de Assis Callou, condenado pelo assassinato a 17 anos de prisão. Ainda que o termo feminicídio não existisse na época, Gercina Francisca, mãe de Mônica, sabia, no íntimo, que a filha teve a vida aterrorizada pelo fato de ser uma mulher. Depois do crime, a briga para conseguir a punição do culpado consumiu a família, que sofreu perseguições ao longo dos anos.

O romance reportagem Em nome da Filha, da jornalista mineira Sulamita Esteliam, reconstrói a história de Mônica e a saga por justiça da mãe da vítima. A autora conheceu Gercina sete anos depois do crime, quando ela batia de porta em porta em sindicatos, movimentos sociais e organizações para pedir ajuda e apoio à sua luta. Na época, Sulamita era assessora de comunicação no Sindicato dos Bancários de Pernambuco e foi no jornal da entidade que publicou uma entrevista com Gercina.

“Mônica tinha 13 anos quando ele começou a persegui-la. A mãe, quando percebeu, tentou impedir. A menina se casou cedo com outra pessoa. Mas, mesmo casada, ele continuou perseguindo. O cabo não deu sossego, ele a perseguiu a vida inteira. Era uma relação de amor e medo. Ela chegou a ter uma relação com Carlos Antônio. Uma história maluca. A mãe dela era feminista, líder comunitária, de pensamento mais aberto. Aquela história de sempre, até que um dia ele botou fogo em Mônica”, relembra Sulamita.

Captura de Tela 2019-03-21 às 00.45.34

Sulamita Esteliam, jornalista, autora de Em Nome da Filha e Estação Ferrugem (98)

Durante vinte anos, a jornalista pesquisou, acompanhou a família e escreveu sobre o caso e seus desdobramentos. A proposta de escrever o livro veio de Gercina, no primeiro encontro com a jornalista. “Ela perguntou: ‘Tá arrepiada aí, né? Isso dá um livro’. E perguntou se eu queria escrever. Ela disse que achava que era a filha soprando no ouvido”, conta Sulamita. Foram 5 anos entre pesquisa e escrita. O livro foi finalizado em 2005, mas precisou de 14 anos para ser publicado.

A única condição da jornalista foi tentar ouvir o Cabo Callou, como era conhecido, mas ele se negou a conceder entrevista. Apesar disso, Sulamita escreve um livro a partir das duas mulheres – Mônica, silenciada brutalmente, e Gercina, que tomou como missão da própria vida fazer justiça pela filha. Além das batalhas pela condenação, Gercina precisou estar na linha de frente do caso e cuidar da família traumatiza, em especial dos dois netos. O mais novo testemunhou o assassinato da mãe e carregou o trauma consigo.

À época, o crime foi chamado de “tragédia anunciada”. O livro aponta as fragilidades dessa narrativa e questiona as instituições que foram denunciadas pela negligência com o caso. “Foram tantas denúncias na Polícia, nos Bombeiros, pelo rapto, os espancamentos. Tudo foi registrado, os BOs. E não foi tomada nenhuma providência. Na época a repercussão foi de apoio à vítima, mas com cuidado para não atingir a corporação [Bombeiros, onde o cabo servia]. Mas a Gercina colocava a boca no trombone sem medo. No princípio ela tinha medo, mas viu que ou falava de vez ou tudo poderia ser pior. Acho que no fundo ela sabia que ia ter um desfecho trágico”, conta.

A partir dessa história, Sulamita provoca a sociedade a pensar em situações que continuam acontecendo até os dias de hoje. No Brasil, 13 mulheres são vítimas de mortes violentas por dia, aponta o Atlas da Violência 2018. Falar em tragédia não é suficiente para explicar a realidade do que acontece às mulheres assassinadas pelo fato de serem mulheres.


Acervo: Jornal dos Bancários, Ed. 46 e 49. Ano: 1998. 

O romance reportagem Em nome da Filha é mais do que do uma história sobre um crime. Para Sulamita, é um alerta a toda a sociedade e o resultado da luta de uma mãe que buscou justiça e a preservação da memória de Mônica. “Sempre tem uma desculpa para o algoz e sempre tem um dedo apontado para a vítima, mesmo morta. Mônica foi julgada pelo comportamento dela”, conta Sulamita. “Essa história precisa ser contada porque elas foram pioneiras, Gercina na luta e Mônica porque foi uma menina que resolver encarar a própria vida, se achando dona da própria vida, mas não era dona da própria alma”, reflete.

Até os últimos dias de vida, Gercina esteve engajada em contar a história da filha. A autora não pôde apresentar o trabalho à mãe, que morreu logo depois que o livro ficou pronto. Mas vê na publicação da história o cumprimento do compromisso com Gercina. “Eu tinha uma experiência em lidar com assuntos dessa natureza, e da própria vivência como repórter. Eu cobri os casos de onde surgiu o movimento Quem ama não mata, nos anos 1980, em Belo Horizonte. A partir daí, eu posso dizer que me aproximei do feminismo”, reflete. “No princípio eu iria contar a história de Mônica, mas no processo o livro se transformou e ficou na perspectiva de Gercina. Ela deixou de existir, ela viveu para isso. Minha tristeza é ela não estar aqui para ver”, conta emocionada.

Morta pelas mãos de um bombeiro militar, Mônica foi consumida pelo fogo, que tirou sua vida, e pela omissão de parte significativa da sociedade que silencia diante de casos de violência contra a mulher. Como se passou com Mônica, ainda hoje 66% dos casos de feminicídio acontecem dentro da casa das vítimas, durante a semana, de segunda a sexta-feira. Os dados são de levantamento do Ministério Público de São Paulo realizado em 2018.

Captura de Tela 2019-03-21 às 15.30.33Serviço
Lançamento do livro “Em nome da Filha”, de Sulamita Esteliam
Data: 23/03/2019 – sábado
Horário: 20h
Local: Vila Ritinha. Rua da Soledade, 35 – Boa Vista
Apresentação poética: Zé de Guedes

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.