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Crédito: Tribunal de Justiça do Amazonas
Por Rosália Vasconcelos
A reportagem da Marco Zero Conteúdo chegou à comunidade da Linha Férrea, localizada no bairro de São José, área central do Recife, por volta das 11h. Ana Paula da Silva, 33, aguardava em frente à sua casa, enquanto os gêmeos Paulo e Silas, de dois anos, tomavam banho de balde e brincavam com a água. Quando perceberam que dividiriam a atenção da mãe com os jornalistas, os irmãos usaram as estratégias típicas dos “terrible two” (termo utilizado para identificar a fase em que as crianças começam a tomar decisões que contrariam os adultos, normalmente aos 2 anos de idade): subiram e desceram no sofá diversas vezes, correram, choraram, pediram chupeta, brincaram com as lentes da câmera do fotógrafo e disputaram entre si o colo da mãe até pegarem no sono.
Paulo e Silas são duas crianças saudáveis, que vivem 100% do tempo sob os cuidados e a proteção da mãe Ana Paula. Mas a história dos três poderia ter tido desdobramentos bem diferentes. Em 2020, quando os gêmeos completaram um mês de nascidos, a Polícia Civil bateu na porta de Ana Paula com um mandado de prisão, alegando que ela estaria envolvida com o tráfico de drogas no bairro da Mangueira, onde morava na época. Mulher negra e de pouco estudo, ex-presidiária sentenciada por tráfico de drogas e moradora de uma das áreas mais pobres do Recife, Ana Paula carregava na pele todos os estigmas possíveis para o encarceramento no sistema prisional brasileiro.
Como os gêmeos nasceram prematuramente e ainda mamavam, a mãe conseguiu obter a prisão domiciliar antes mesmo de ser encaminhada para a unidade de detenção. O direito dos recém-nascidos foi amparado por três legislações principais: o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) – que prevê que mulheres gestantes, responsáveis por pessoas com deficiência ou com filhos de até 12 anos podem ter a prisão domiciliar concedida -, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo Habeas Corpus Coletivo nº 143.641 de 2018, concedido pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas as horas que se passaram entre Ana Paula ser levada para a delegacia e sair de lá com uma tornozeleira eletrônica, foram de terror, segundo ela relata. Enquanto esperava a audiência de custódia, os recém-nascidos permaneceram com a avó materna, que precisou levá-los até a delegacia para que mamassem. “Fiquei desesperada, porque além de não estar envolvida com o tráfico, meus meninos eram muito pequenos. Meu pensamento era de que eles pudessem ir para o conselho tutelar porque minha mãe já tinha 60 anos. Se eu já sofro o que sofro, imagina o que eles poderiam sofrer”, conta.
E ela sabia bem sobre o que estava falando. O rompimento materno atravessado pelo cárcere foi uma dor que Ana Paula já havia vivenciado antes, com consequências que duram até hoje. Em 2013, ela foi presa por tráfico de drogas quando sua primogênita Safira tinha apenas um ano de idade. Na época, os únicos instrumentos legais que versavam sobre o direito da criança em situações de privação de liberdade da mãe eram os artigos 227 e 318 da Constituição Federal, mas eles não definiam, por exemplo, quais as condições para a concessão de uma prisão domiciliar.
Assim, Ana Paula passou sete anos na prisão, entre a Colônia Prisional Feminina de Abreu e Lima (CPFAL, mais conhecida como Cotela) e a Colônia Penal Feminina do Recife (Bom Pastor). Durante todo esse tempo, ela só conseguia ver a filha uma vez por mês, quando a avó de Safira conseguia levar a menina até o presídio. “É muito triste deixar sua filha de um ano e ir parar num lugar daqueles. Perdi muita coisa da vida dela. Por isso, hoje ela não é muito apegada a mim. Ela diz que me ama, mas é como se eu fosse a irmã dela. Eu tento me reaproximar, chamo minha filha para dormir na minha casa, mas o negócio dela é com a minha mãe”, conta.
Safira hoje tem 11 anos e nunca morou com Ana Paula. “Ela disse que prefere ficar com a avó porque foi a avó que criou ela. Às vezes, peço à minha mãe pra ir buscar ela na escola, mas como eu uso a tornozeleira, ela prefere que eu não vá. Eu já perdi o amor da minha filha e sei como é triste passar por isso”, lamenta.
O relatório Mulheres presas e adolescentes em regime de internação que estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até seis anos de idade, lançado este ano pelo Diagnóstico Nacional da Primeira Infância, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que a preocupação de Ana Paula tem razão de ser. Entre 2018 e 2020, 839 crianças foram acolhidas pelo Sistema Nacional de Adoção (SNA) porque a mãe foi presa, especialmente aquelas com idades de 1 a 6 anos.
Quanto mais tempo a criança fica longe da mãe, ou seja, quanto mais tempo a mulher passa encarcerada, maior é o risco de se quebrar o vínculo entre elas, incluindo o de perder a guarda dos filhos. Segundo o documento do CNJ, das crianças que são acolhidas pelo SNA, 66,7% voltam à família biológica, mas 8% delas são encaminhadas para a adoção, especialmente as que têm entre 0 e 1 de idade.
“O juiz, ao negar o direito à prisão domiciliar, acaba também transferindo a responsabilidade pelo cuidado com os filhos para outras mulheres que não fazem parte do processo, que não foram ouvidas, que sequer estão lá para dizer se querem ou podem cuidar da criança”, pontua a pesquisadora Sofia Fromer, do Programa Justiça Sem Muros, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
Infográfico 2 de Marco Zero
Mesmo as crianças que conseguem permanecer no ambiente familiar biológico – sendo tuteladas normalmente por outras mulheres, como avós, tias ou irmãs – podem desenvolver dificuldades na manutenção dos vínculos afetivos e familiares com a mãe, a depender do tempo do afastamento entre elas e das condições que os parentes permitem a convivência no pós-cárcere. Isso porque, pelo estigma e pelos preconceitos que se criam em torno de uma mulher que foi presa, muitas vezes levam seus parentes a afastá-la das crianças.
Foi o que aconteceu com Milande da Silva. Hoje com 44 anos, sua vida foi atravessada diversas vezes pelo cárcere. Mas a privação do contato com os filhos teve início quando o seu esposo e pai das crianças foi preso. Na época, a mais velha tinha um ano e seis meses e o mais novo tinha quatro meses de vida.
“Naquele momento, eu quis acabar o relacionamento com ele. Ele não aceitava, me ameaçou de morte e fez chegar nos ouvidos da minha mãe. Com medo de que algo acontecesse com meus filhos, ela me expulsou de casa. Quando eu estava com saudade, ia pra frente da casa dela brincar com eles através da grade. Eles começavam a chorar porque sentiam minha falta e, quando minha mãe percebia que eu estava lá, ela colocava eles pra dentro de casa”, conta Milande.
Depois disso, ela tentou se reestruturar, mas diversas situações acabaram lhe empurrando para o tráfico de drogas. Ela teve três passagens por unidades prisionais. Na primeira vez, em 2003, os filhos tinham seis e sete anos. “Quando eles chegavam lá para me visitar, via no rosto deles muita tristeza. Eles sabiam que algo de ruim estava acontecendo comigo e acho que se sentiam impotentes por não poderem fazer nada. Quando saí da prisão e voltei pra casa, eles não queriam que eu saísse pra nenhum lugar sozinha. Eles tinham medo de que eu não voltasse novamente pra casa. Quando a gente sai da prisão, não é algo que simplesmente eles esquecem”, relata Milande.
Flávia Ribeiro de Castro, fundadora da ong Casa Flores, que atua na defesa de mulheres em situação de vulnerabilidade, afirma que a primeira infância (entre 0 e 6 anos) é uma das fases mais importantes na construção física e emocional do ser humano. Os traumas vividos nesse período deixam cicatrizes muitas vezes difíceis de serem absorvidas ou apagadas.
O perfil da mulher encarcerada no Brasil é, em sua maioria, o de mães jovens, pobres e negras, que criam seus filhos sozinhas, em famílias mono-maternais, sem a convivência ou sequer o conhecimento do pai. Quando acontece encarceramento materno, muitas vezes a criança vivencia um total abandono, destaca Flávia, incluindo também a insegurança alimentar, já que na maior parte das vezes são essas mulheres que provêm o sustento dos filhos.
“As consequências são, quase sempre, uma autoestima completamente massacrada, o convívio constante com a insegurança e o medo, a falta de amor e cuidado, uma infância interrompida. O distanciamento que acontece durante o encarceramento de alguma forma se eterniza na criança, colaborando para relações turbulentas. Essa vida de filhos sem pais, e abandonados involuntariamente pelas mães, é um convite para que a história de encarceramento, violações e violências se repita”, lista a fundadora da Casa Flores.
Milande perdeu seu filho em 2020, quando ele tinha 24 anos, após ele se envolver com uma mulher mais velha e casada, a contragosto da família.
Além dos impactos emocionais, o trauma vivido pela criança pode surgir através de doenças físicas. Quando Alane Pereira Bezerra de Melo, 26, foi presa em 2017, Dafyne Alice – hoje com seis anos – tinha apenas um ano e um mês de idade. No período de um ano e oito meses em que Alane estava na Colônia Penal Bom Pastor, a imunidade da filha baixou e ela precisou ser internada em hospital quatro vezes. “Ela teve crise de asma, que se tornou crônica até hoje. Pegou uma bactéria no olho, depois pegou uma bactéria na coxa e ainda chegou a quebrar a perna. Eu não podia fazer nada. Ficava desesperada”, conta a mãe.
Quando a mãe estava na unidade, Dafyne ficou sob os cuidados do avô materno e da irmã de Alane, que na época tinha 17 anos, e precisou parar a escola para cuidar da sobrinha. “Foi um período muito ruim. Sempre que elas iam me visitar, na hora de ir embora, minha filha entrava em desespero. Quando saí da prisão, ela já tinha três anos. Perdi a fase em que ela começou a falar, a andar… E ela já estava chamando minha irmã de mamãe. Hoje, acho que ela tem algumas sequelas. Por exemplo, ela é muito chorona, porque meu pai sempre tentou compensar minha ausência durante esses quase dois anos”, lembra Alane.
“O que nós sabemos é que, independente da idade, a ausência da mãe vai ser sentida, porque sempre é um vínculo quebrado de forma abrupta. Quando a criança já está na escola ou socializada, pode passar por algumas outras situações, até de constrangimento, como pessoas dizendo que a mãe dela foi encarcerada. Geram muitos traumas”, pontua o advogado Pedro Mendes, do Instituto Alana.
O encarceramento de mulheres mães de crianças na primeira infância provoca ainda um outro lado perverso: a permanência de bebês nos primeiros seis meses de vida dentro das unidades penitenciárias, muitas vezes mistas (quando recebem homens e mulheres) e sem estrutura adequada para acolher recém-nascidos. Segundo o coletivo pernambucano Liberta Elas, que atua no apoio jurídico e psicossocial a mulheres que tiveram a vida atravessada pelo cárcere, 1.111 bebês moravam nas colônias penais femininas do estado com suas mães, em 2018.
De lá pra cá, acredita-se que graças ao avanço normativo refletido especialmente nas recentes decisões do STF, com dois habeas corpus coletivos, o número de crianças menores de um ano dentro dos presídios possa ter reduzido consideravelmente. Ou, em último caso, há um “apagão de dados”. Segundo a Secretaria de Ressocialização de Pernambuco (Seres-PE), atualmente o sistema prisional possui registro de apenas três bebês de até seis meses de vida convivendo com a mãe dentro do cárcere.
“Dois dos estabelecimentos penais, a Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR), no Engenho do Meio, e a Colônia Penal Feminina de Buíque (CPFB), no Sertão – onde estão as três crianças em companhia das mães – dispõem de berçário para acomodação das mulheres com seus bebês, sala de aleitamento e brinquedoteca”, informou a Seres-PE. Atualmente, o sistema prisional ainda mantém dez gestantes presas.
No entanto, o Liberta Elas, que faz o acompanhamento da situação das mulheres nas unidades prisionais, pondera que em Buíque, por exemplo, o espaço é improvisado. “Eles juntaram três celas e reservaram para as mulheres gestantes e puérperas. No Bom Pastor, existe berçário”, rebate Clarissa Trevas, uma das fundadoras do coletivo.
Ainda que tenha havido uma notória redução dos números – e exista espaço dentro de alguns presídios dedicado a receber recém-nascidos, por exemplo -, especialistas ressaltam que uma criança não pode viver encarcerada por crimes cometidos pelos seus responsáveis. Sendo assim, e em todo caso, a mulher deve ter o direito à prisão domiciliar. “O sistema não pode prender um filho, porque a mãe está presa. E a prioridade absoluta é da criança”, reforçou Sofia Fromer, pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
“A decisão do STF tornou-se paradigmática porque reconhece, ao mesmo tempo, que o cárcere não é um local sadio para o desenvolvimento integral de crianças e que a separação delas de suas mães também não é uma opção viável. As condições hostis e insalubres do sistema penitenciário brasileiro, já declaradas como um estado de coisas inconstitucional, afetam de forma mais prejudicial e desproporcional crianças, principalmente crianças na primeira infância, de 0 a 6 anos, que estão em fase de peculiar estágio de desenvolvimento biopsicossocial”, defende o advogado do Instituto Alana, Pedro Mendes.
Pernambuco contabiliza hoje 1.496 mulheres em situação de privação de liberdade. Dessas, 485 mulheres estão gestantes ou são mães de crianças de até 12 anos, sendo que 351 delas têm filhos ainda na primeira infância (0 a 6 anos). Segundo o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Pernambuco é o terceiro estado brasileiro com maiores índices de mulheres que permanecem em situação de prisão preventiva, mesmo quando atendem os requisitos para o Marco Legal da Primeira Infância.
O relatório do ITTC Implementação da prisão domiciliar para mulheres no Brasil à luz da Lei de Acesso à Informação, divulgado em dezembro do ano passado, indicava que 973 mulheres estavam presas de forma preventiva em Pernambuco, ficando atrás apenas de Minas Gerais, com 1.238 mulheres, e de São Paulo, com 6.357 mulheres presas.
“Vale salientar que a população geral de Pernambuco é muito menor – 9,6 milhões de habitantes (2020) – se comparada com Minas Gerais – 21,2 milhões de habitantes (2020) – e São Paulo – 46,2 milhões de habitantes (2020). Assim, as informações obtidas revelam um dado preocupante, observa-se que o estado tem encarcerado muitas mulheres se comparado com os demais estados em que a população é muito maior, o que reforça a necessidade de cumprimento do Marco Legal da Primeira Infância como medida desencarceradora”, sugere o estudo.
Infográfico 1 de Marco Zero
Para entidades da sociedade civil, é a guerra às drogas, reforçada pela Lei das Drogas (Lei n. 11.343/2006), que tem aumentado a lógica que leva as mulheres ao cumprimento da prisão provisória. Mulhres que, em sua maioria, entraram em conflito com a lei por cometerem atos sem violência ou grave ameaça, geralmente ligados à complementação de renda. No Brasil, o tráfico de drogas ou associação ao tráfico encarcera a maior parte das mulheres atualmente, cerca de 62,5%, segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
“Em Pernambuco, seguramente mais de 50% das mulheres estão presas por crimes de tráfico e associação ou tráfico. A maioria dos tribunais opta pelo encarceramento, mesmo que o crime não tenha sido com violência, afastando muitas mães do convívio com seus filhos. Temos uma taxa média de 270% de ocupação nos presídios, mas a metade dessas mulheres não precisariam estar nas unidades prisionais. Vemos que a questão das drogas é um pilar bastante importante para a reprodução e manutenção desse encarceramento em massa que vivemos no Brasil”, destaca Clarissa Trevas, do Liberta Elas.
Para Sofia Fromer, pesquisadora do ITTC, a relação entre drogas e os julgamentos morais sobre o que se entende por maternidade acaba levando as mulheres a uma dupla condenação: a do suposto crime previsto em lei, e a de sua condição de exercer a maternidade. Ela explica: no crime de tráfico de drogas, por exemplo, o fato da mulher ser mãe é usado contra ela e não a favor dela, a partir da perspectiva do que juízes e juízas brancos, promotores e promotoras brancos, enxergam como maternidade.
“Frases como: ‘essa mulher não tem condições de estar com o filho’, ‘é melhor que ela não esteja porque ela estava traficando’, ‘ela é usuária de drogas’ e ‘a culpa é dela’ são argumentos que, na verdade, não têm nada de jurídicos, são abstratos. São juízos morais referentes a essas mulheres numa sociedade patriarcal. Apresentamos essa análise no Diagnóstico da Aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o Desencarceramento de Mulheres”, explica Fromer.
Segundo a pesquisadora, os números mostram essas análises. Nas audiências de custódia, por exemplo, momento em que a mulher está frente a frente ao juiz e suas condições de raça e classe social da mulher ficam evidentes, mais de 80% das mulheres têm o direito à prisão domiciliar negado. “Num segundo momento, quando o julgamento se torna abstrato e o magistrado não enxerga mais a cor e a cara da ré, ou seja, não leva em conta seus próprios preconceitos, as formulações das decisões seguem apenas a lei, aumentando o número de concessões de prisão domiciliar”, expõe Fromer..
O Tribunal de Justiça de Pernambuco afirma que, nos casos judiciais em que há crianças entre 0 e 6 anos cujas mães respondem processos criminais e são presas, os magistrados avaliam se é possível manter mães e filhos juntos, concedendo sempre que possível a prisão domiciliar para manter o vínculo familiar. “Contudo, em certas situações, a prisão domiciliar não é concedida automaticamente, pois pode haver risco para os filhos e as filhas dessas mães. Essa avaliação de cada caso cabe ao magistrado e está assegurada pela independência funcional que o cargo exige”, justifica o tribunal.
Entre os critérios que levam em conta a concessão ou não da prisão domiciliar, a assessoria do TJPE lista alguns: se a mãe é ré primária e possui endereço fixo; emprego ou ocupação formal; se oferece ou não risco às testemunhas, à sociedade e aos filhos; e a complexidade do crime indicado nos autos de prisão. “De acordo com o artigo 318-A do Código de Processo Penal, não é permitida a concessão de prisão domiciliar se a mulher tiver cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; e/ou tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente”, disse o TJPE.
A Marco Zero Conteúdo solicitou ao TJPE o quantitativo de solicitações de prisão domiciliar feitos pelas defesas de mulheres grávidas ou com filhos entre 0 a 6 anos. No entanto, o tribunal informou que não tinha esse dado.
A Marco Zero Conteúdo também solicitou à Seres-PE o número atual de mulheres presas preventivamente dentro do universo de mulheres encarceradas hoje em Pernambuco, quantas cumprem pena em regime domiciliar. Ambas solicitações não foram atendidas
Um dos maiores problemas do sistema penitenciário brasileiro é o levantamento de dados, especialmente no que tange às mulheres mães e seus filhos. Em geral, os números fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, pelo Ministério da Justiça e pelos órgãos dos sistemas penitenciários de cada estado não coincidem entre si e têm intervalos de dois a quatro anos entre a coleta e a publicação, destacando-se a incongruência das informações entre diferentes fontes de dados.
No caso do CNJ, por exemplo, que divulgou este ano o Diagnóstico Nacional da Primeira Infância – Mulheres presas e adolescentes em regime de internação que estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até seis anos de idade, a maior parte das informações data de 2018 a 2020.
Já os números do Ministério da Justiça datam de junho de 2021, e foram obtidos através do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mas eles não atualizam as informações sobre maternidade. Os dados mais recentes informam que dentro dos estabelecimentos prisionais brasileiros vivem 1.043 recém-nascidos.
A carência dessas informações impossibilita medir o impacto real da aplicação da prisão domiciliar para o desencarceramento feminino. “O Marco Legal da Primeira Infância fez uma alteração no Código de Processo Penal (CPC), para que tanto no Sistema de Justiça quanto no Sistema Prisional seja feito o registro sobre a quantidade de filhos que uma mulher tem, com quem fica a guarda das crianças se a mãe está no sistema e se a criança tem alguma necessidade especial. O acesso a esses dados, e se eles existem, ninguém sabe”, critica Clarissa Trevas.
Para o Instituto Alana, ter o conhecimento desses dados em larga escala é fundamental para a elaboração, desenvolvimento e implementação de políticas públicas de assistência social, transporte, moradia, trabalho, renda e educação com foco nas mulheres em cumprimento de prisão domiciliar e seus filhos.
“As mulheres gestantes e mães, incluindo meninas do sistema socioeducativo que passam pela mesma situação, são recorrentemente invisibilizadas. Os quantitativos disponíveis são imprecisos e com baixo nível de transparência. É muito difícil de entender quem são essas mulheres e qual a realidade delas. Essa é mais uma forma de violação às garantias fundamentais das pessoas em situação de prisão e, em especial, mais um obstáculo para monitorar, fiscalizar e propor medidas para a garantia dos direitos de mulheres encarceradas, bem como daqueles e daquelas que delas dependem”, reforçou Pedro Mendes.
Legislações que garantem a proteção do convívio dos filhos e filhas com suas mães
– Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) – prevê que mulheres gestantes, responsáveis por pessoas com deficiência ou com filhos de até 12 anos possam ter a prisão domiciliar concedida.
– Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
– Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/ 2018 – o Supremo Tribunal Federal substitui a prisão preventiva pela domiciliar para os casos previstos no Marco Legal da Primeira Infância e no artigo 318 da Constituição Federal;
– Lei 13.769/2018 – estabelece condições para que mulheres que são mães, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência e que sejam sentenciadas ou presas preventivamente possam ter o regime de prisão convertido do fechado para o domiciliar.
– Artigos 227 e 318 da CF – o primeiro versa sobre a obrigação do Estado e da família de garantir o direito das crianças e adolescentes com absoluta prioridade, enquanto o segundo enuncia que um juiz pode substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando a mulher estiver gestante ou tiver filho de até 12 anos incompletos.
– Resolução nº 210/2018 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) – dispõe sobre os direitos de crianças cujas mães estejam em situação de privação de liberdade.
– Habeas corpus nº 165.704/2020 – reafirma e reconhece a necessidade de aplicar a prisão domiciliar a todas as mulheres responsáveis por crianças menores de 12 anos.
– Resolução n. 369/2021 do Conselho Nacional de Justiça – estabelece procedimentos e diretrizes para a substituição da privação de liberdade de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência.
* Este conteúdo integra a série Eleições 2022: Escolha pelas Mulheres e pelas Crianças. Uma ação do Nós, Mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
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