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Hipertensa desde a adolescência, mãe de três, na quarta gestação, Maria* (nome fictício) morreu aos 29 anos sem saber que a lei garantiria a realização do aborto legal em função do alto risco que sua vida corria. A morte, que poderia ter sido evitada, é um caso em que a legislação em vigor garante a vida. No entanto, o despreparo e o tabu são desafios para quem defende o direito ao aborto seguro e legal como o direito à vida.
Evitar mortes como a de Maria pode tornar-se ainda mais difícil.
A PEC 29/2015 , que iria entrar em discussão no Senado Federal, mas foi retirado de pauta, é a nova batalha travada entre movimentos e grupos pró e contra a descriminalização da prática do aborto.
Chamada de “PEC da Vida” por movimentos contra o aborto e encampada pela Frente Parlamentar em Defesa da Vida, a PEC 29 é, originalmente, de autoria do ex-senador Magno Malta, que previa a “inviolabilidade da vida desde a concepção”. A proposta abre margem para a proibição do aborto inclusive nos três casos que hoje são legais no Brasil: quando a gestação é fruto de um estupro, quando há risco de vida para a mulher e em casos de anencefalia.
No entanto, a recente movimentação para requentar a PEC fez a relatora, a senadora Juíza Selma (PSL-MT), incluir duas exceções, garantindo o aborto ainda para casos de estupro e de risco à vida. A jogada, no entanto, provocou um racha dentro dos próprios congressistas que defendem a PEC. A ala mais radical não admite sequer essas duas opções, como explica Paula Viana, da organização de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres Grupo Curumim:
“Eles estão rachados. Tem setores mais radicais que não queriam as permissões até para casos de aborto quando há perigo de vida para a mulher. A questão da anencefalia nem está presente. A PEC do Magno Malta trazia apenas a questão da inviolabilidade da vida desde a concepção. Ainda é uma ameaça grande, pois talvez a gente tenha que lutar para garantir o que já era um direito nosso conquistado”, diz.
O racha, no entanto, não retira o perigo que essa proposta representa para os direitos das mulheres. Paula Viana alerta para o risco de chegar a um cenário como o da Guatemala, onde mulheres que sofrem abortos espontâneos chegam a ser investigadas pela desconfiança de que tenha sido fruto de um aborto provocado – naquele país da América Central todo e qualquer tipo de interrupção da gravidez é proibido. “Na cabeça desses caras, quando engravidamos somos criminosas em potencial”, critica.
No final de maio, em razão das mobilizações para conscientização e prevenção da mortalidade materna, as Frentes Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto em Pernambuco realizam o Festival pela Vida das Mulheres – de 27 de Maio a 2 de Junho de 2019. A data chave é o 28 de maio, quando é celebrado o Dia Internacional pela Saúde Integral da Mulher e, no Brasil, desde o início da década de 90 os movimentos voltam a data para o Dia Nacional Contra a Mortalidade Materna. “A mobilização é importante porque trabalha a questão das mortes evitáveis”, explica Paula.
O principal argumento dessas entidades está no fato de que muitas mortes maternas poderiam ser evitadas com o aborto seguro e com o planejamento familiar. De acordo com Paula, ao contrário do que argumentam os setores contra o aborto, estatísticas e estudos de outros países compravam que, na verdade, a oferta de aborto legal faz caírem os números de abortos realizados. O caso de Portugal, por exemplo, é referência. Em 2008, um referente aprovou a “despenalização do aborto” e, dez anos depois, os números de abortos caiu de 18.050 para 15.800. Um aspecto importante é que de 2008 a 2012 apenas uma mulher morreu e, de 2012 a 2015 não foi registrada nenhuma morte. Os dados são da Direção-Geral de Saúde de Portugal.
Os dados do relatório da Situação da Mortalidade Materna no Recife de 2014 a 2017, que identificou que a morte materna tem chances de ser evitada ou “provavelmente evitada” em mais de 50% dos casos, reforçam esses argumentos. Em 2017, no Recife, 16 mulheres faleceram até um ano após o parto – tempo limite em que se considera a morta materna. Aproximadamente 92% das mortes maternas por causas evitáveis ocorrem, principalmente, por hipertensão, hemorragia ou infecções. Os dados são do Ministério da Saúde (2018) e refletem a realidade pernambucana e do Recife.
Ainda segundo Paula Viana, estudos apontam que evitar a morte materna em decorrência de abortos poderia representar uma redução de 11% do total de mortes. A garantia de informação e do acesso ao aborto legal ajudariam a prevenir a mortalidade materna.
Enquanto no Congresso Federal a quebra de braço continua, com 35 projetos que, de alguma forma, retrocedem na legislação referente ao aborto, o lobby a contra o aborto avança para bancadas que historicamente não tomavam a frente dessa questão. Além da bancada da Bíblia, hoje as bancadas da Bala e do Boi se somam. Uma das razões é o aumento e fortalecimento do lobby organizado, com financiamento – apesar de nebuloso, como matéria do El País apontou – e disposição para conseguir adesão de parlamentares.
Para Paula Viana, que atua como ativista desde a década de 90, desde o início dos anos 2000, quando os movimentos de mulheres conseguiram alguns avanços, a reação das bancadas religiosas vem aumentando. Esses grupos eram, por volta de 2003, formados por espíritas e católicos em maior número, mas vem aumentando consideravelmente com a presença da bancada evangélica no legislativo. Para ela, é possível identificar que ainda são os mesmos grupos que agora tomam volume na pauta anti aborto, com o agravante de uma ala extremamente radical. “É o mesmo grupo de médicos reacionários que em 92, por exemplo, eram contra o termo humanização na medicina. É de um egocentrismo imenso, mas eles são muitos e tem o poder. As ações da frente vem acelerando muito. É uma pauta eleitoral que muitos usam para impulsionar as eleições deles mesmos. Fica cada vez mais escancarado. Hoje tem deputados que são contra até o planejamento familiar”, conta.
No início de março, a ONU realizou o mais importante evento dedicado exclusivamente à saúde das mulheres. A Comissão sobre a Situação de Mulheres CSW63 (em inglês, Commission on the Status of Women) teve como tema desta edição o acesso de mulheres e meninas a sistemas de proteção social, serviços públicos e infraestrutura sustentável. De acordo com a ONU, é o segundo maior evento anual no calendário da organização, logo depois da Assembleia Geral.
A participação foi especialmente reconhecida pela mudança na postura adotada nos outros encontros. A comissão brasileira, encabeçada pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, foi considerada como agressiva e fechada ao diálogo. Durante a CSW, a postura que a delegação brasileira foi de fugir aos debates políticos e apostar no tecnicismo para defender ou rejeitar ideias. os bastidores retrataram a face do governo Bolsonaro que não defende os direitos das mulheres.
De modo concreto, o Brasil voltou atrás e se recusou a assinar a carta final do encontro integralmente. Ao assinar o documento com ressalvas, o governo sinalizou um retrocesso na postura que a diplomacia construiu nos últimos anos. O asepecto mais polêmico, no entanto, teve como protagonista ministro Ernesto Araújo que afirmou que a defesa integral do acesso à saúde pelas mulheres, por exemplo, poderia ser, nas palavras do ministro, um “contrabando do aborto” para o Brasil.
A cena constrangedora protagonizada pelo ministro aconteceu já de volta ao Brasil, em audiência pública da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, no dia 27 de março. Questionado pela deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP), ele gaguejou e respondeu timidamente que a razão do veto era que o texto poderia trazer “no contrabando, a promoção do aborto – coisa que é contra a legislação brasileira”.
Confrontado pela deputada, ele sequer argumentou novamente. O ministro talvez ignorou que, em edições anteriores e tratados diferentes, o Brasil já assinou documentos em que garante os mesmos direitos às mulheres. Agora, o país volta atrás de algo já pactuado de modo vergonhoso e furtivo.
Além de trechos referentes à saúde reprodutiva que, na argumentação dos representantes do Brasil, poderiam abrir garantir ou ampliar o direito ao aborto, o país também se opôs a questões relativas às mudanças climáticas e o tema das migrações. A delegação afirmou que questões climáticas não teriam a ver o objetivo de debate do evento.
O trecho considerado problemático prevê que o Estado passe a “reconhecer a importância das mulheres trabalhadoras migrantes com todos os níveis de habilidades, independente de seu status migratório”. Segundo o posicionamento do Brasil, a expressão “independente de seu status migratório” poderia “incentivar a prática de imigração ilegal e questionar o direito dos Estados de regular suas leis e políticas migratórias, como publicado por matéria da BBC.
No encerramento do evento, inclusive, um diplomata brasileiro leu um posicionamento que elencou diversas insatisfações do governo com os resultados da Comissão. “Durante as negociações do rascunho, a delegação brasileira buscou, de boa-fé, atingir um texto justo e equilibrado, que reflita nossas visões comuns sobre os temas desafiadores em discussão. Mas devo enfatizar que não estamos satisfeitos com o resultado”, leu o representante do Brasil.
Ainda assim, ao assinar as conclusões o Brasil fez questão de reforçar que considerada o documento uma “solução de compromisso, que não reflete bem as posições de todos os Estados-membro, incluindo o nosso (Brasil)”.
Chamou atenção também a crítica ao uso de termos como “gênero” e “sexo” feita pelo governo brasileiro. “Nós também nos preocupamos com o desvio de pontos-chave do texto, que buscam estimular uma agenda com a qual não concordamos. O governo brasileiro não vai mais apoiar o uso de termos e expressões dúbios que causaram confusão e desentendimentos”, diz o posicionamento. Além de ir na contramão dos debates globais e de posições anteriores, mais uma vez o governo de Bolsonaro bate o pé sobre algo que sequer é de responsabilidade do Estado, enquanto ignora pautas políticas que dizem respeito à vida de pessoas.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.