Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Foto: Fran Silva/RENFA
Radical, segundo o dicionário Michaelis, é aquilo que pertence ou é relativo à raiz. Outros significados disponíveis dão conta daquilo que “pretende reformas absolutas na política, na economia e na sociedade” ou, ainda, “que é seguidor do radicalismo”. Juliana Borges, autora do livro O que é encarceramento em massa – terceiro volume da coleção Feminismos Plurais da editora Letramento – não titubeia ao defender a radicalidade e a urgência do antipunitivismo e antiproibicionismo na sociedade brasileira.
É preciso libertar pessoas. E, talvez, possa existir uma sociedade sem prisões. As questões que levanta provocam até mesmo a esquerda – a quem faz um alerta e chamado à construção – que ainda engatinha na discussão sobre desencarceramento. De outro lado, não nega o avanço conservador e autoritário alimentado pelo racismo e violência que, segundo ela, são mitos fundadores da sociedade brasileira.
No Recife para o lançamento do livro, a pensadora e ativista conversou com exclusividade com a Marco Zero Conteúdo sobre as formulações teóricas que têm apresentado ao movimento pelo desencarceramento para transformar o cenário das prisões brasileiras. Atualmente, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial – atrás dos Estados Unidos e China – com uma população prisional de 726.712 mil pessoas, segundo dados do InfoPen.
Feminista negra interseccional, é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – onde cursa Sociologia e Política – colunista dos sites Justificando, Blog da Boitempo, Fundação Perseu Abramo e Revista Fórum, e integrou como articuladora política a Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas (INNPD).
“A gente não vai ter libertação real da população negra enquanto existir uma pessoa presa, encarcerada. A prisão é esse instrumento de controle, de tortura e é uma parte importante do genocídio da população negra no Brasil. Quem eles não conseguem matar, eles aprisionam”, explica. O feminismo negro,defende, está na linha de frente das reflexões e propondo ações de transformação sobre o racismo e encarceramento em massa que precisam ganhar o debate público.
“A radicalidade da transformação da sociedade está em nós, na construção e na formulação que mulheres negras estão fazendo. Por mais que muito homem branco, socialista, de esquerda, fique chateado. Essa sociedade que a gente quer é livre de racismo, de machismo, de lgbtfobia. A gente quer um mundo em que as pessoas possam ser livres, mas não apenas livres no sentido liberal, mas livres em todas as condições, com cidadania, sem vidas precárias”.
Confira a entrevista:
Marco Zero: Não podemos deixar de enxergar a sociedade brasileira como racista, classista e com viés punitivista muito forte. Como você enxerga possibilidade real de diálogo com essa sociedade?
Juliana Borges: É difícil falar em dicotomias, mas acho que existem dois públicos: um, em que o conservadorismo é baseado no senso comum da sociedade, e tem aquele que alimenta esse senso comum – esse conservadorismo eu acho que é o quase fascista. Com esse é difícil dialogar. Eu gosto muito da provocação que Márcia Tiburi faz sobre como conversar com um fascista e ele se fechar. De modo diferente, uma parte importante da sociedade dá respostas conservadoras, mas quando você vai conversando com essas pessoas, colocando alguns argumentos, isso leva a algumas reflexões.
Lembro de uma campanha, há uns dois anos, sobre aborto. Quandose fez uma pesquisa, várias pessoas eram contra o aborto. Elas (os pesquisadores) perguntavam se as pessoas eram contra ou a favor do aborto e as pessoas respondiam que eram contra. Mas aí perguntavam se conhecia alguém que fez aborto e as pessoas respondiam que sim. E então perguntavam se achavam que essas pessoas deveriam estar presas. E aí as pessoas paravam. Porque elas iam pensar “ah, essa pessoa é minha filha, minha tia, minha mãe” e então respondiam que não achavam que tinham que ser presas. Porque a gente tem uma legislação que criminaliza o aborto. Então, quando você consegue passar da pergunta um para a pergunta dois e provocar uma reflexão, eu acho que a gente tem condição de fazer algumas discussões.
Uma coisa é a gente trabalhar com crimes de atentado à vida ou de crimes violentos. Outra coisa é você achar que uma mãe que não tem nenhum histórico de violência, não é violenta para a sociedade, por ter furtado uma lâmpada de led deve estar presa. Quando a gente consegue estabelecer essas relações, a gente consegue ir avançando, consegue fazer reflexões com as pessoas.
De fato é difícil, mas acho que a gente tem que ir tentando achar brechas. É claro que nesse momento vai ser difícil porque o avanço conservador está muito forte.
Você fala em dois tipos de conservadorismo. Você acredita que realmente existe um avanço conservador, que retorna também com um fascismo, hoje no Brasil? Ou existe uma projeção maior do que de fato acontece?
Acho que sim. A Djamila Ribeiro (filósofa) faz uma provocação que acho bem interessante. Ela fala que, na verdade, a sociedade sempre foi conservadora e que a gente teve alguns períodos de avanços progressistas. Mas que, na verdade, a gente estaria retornando ao que se convencionou na sociedade brasileira como conservadorismo. Agora, a gente acaba dialogando com uma visão mais cíclica das coisas. Também não gosto dessa visão evolutiva da história. Mas quando vamos olhar alguns cenários fica a reflexão: quais foram os vácuos que a gente teve nesse ciclo progressista na América Latina? O que fez com que a gente não conseguisse chegar nem ao estado de bem estar social, com garantias mínimas de dignidade e cidadania para as pessoas?
Quando a gente vai olhar o cenário da América Latina, a gente vai vendo que os governos progressistas vão perdendo espaço. Seja com golpes, seja a partir de processos democráticos. Eu sinto que tem um momento que pode ser que a sociedade esteja retomando uma característica conservadora, mas ao mesmo tempo existe um avanço de um conservadorismo. Nos anos 50, 60, 70 tivemos ditaduras militares. Foi uma imposição para se estabelecer um conservadorismo casado a um autoritarismo.
[pullquote]”Eu sinto que tem um momento que pode ser que a sociedade esteja retomando uma característica conservadora, mas ao mesmo tempo existe um avanço de um conservadorismo”[/pullquote]
O que a gente tem visto hoje são conservadores ou neoliberais ganhando em eleições diretas, ganhando por vias democráticas também, não só a partir de golpes. Essa é uma característica nova. O que a gente começa a ver é que antes o sistema financeiro, os grandes operadores do sistema neoliberal ainda entendiam a importância de uma classe política para servir a seus interesses. Agora são os próprios empresários, os articuladores, que estão indo para a disputa pelas vias democráticas. Não a toa temos Trump nos Estados Unidos, o Macron, na França. Tudo bem que ele (Macron) é um liberal que defende direitos individuais, mas para a gente que é de esquerda, não basta ser liberal. Ele é um empresário que vem do mercado. Então não existe mais uma mediação de uma classe política que tem essa compreensão de mediação de interesses. Agora, basicamente, é o interesse do mercado e pronto. E a gente tem a possibilidade de ter um autoritário no poder aqui no Brasil que é o Bolsonaro. E as opções em torno dele também são muito ruins.
Acredito que há um avanço porque tem uma mudança, um reordenamento sistêmico. Um reordenamento que vem para aprofundar. A gente não vai retornar a um conservadorismo que a gente já viveu. Existe um aprofundamento do que é essa compreensão de conservadorismo e autoritarismo. Por isso, eu continuo no time dos sociólogos que fazem uma análise de que a gente tem passado por um processo de avanço conservador. E é um processo bem mais complexo que não envolve só mudança econômica, mas também uma mudança cultural, comportamental. Enfim, eu acho que é caminhando para barbárie.
No livro você fala sobre como as esquerdas tivesse uma resistência à pauta do desencarceramento e cita exemplos que foram negativos para o movimento – a exemplo da Lei de Drogas (2006), que aconteceu em um governo de esquerda, considerado progressista. Como você enxerga o cenário das plataformas de esquerda para as eleição de 2018? E como está o diálogo com as candidaturas de esquerda à presidência?
Acho que está sendo difícil ainda. Quando a gente fala que temos uma sociedade punitiva a gente não pode esquecer que a gente também tem uma esquerda punitiva. A esquerda é muito ruim no tema da violência e da segurança. Então, as respostas que a esquerda dá acabam sendo sempre a criação de leis que criminalizam alguma coisa ao invés de a gente propor discussões mais alternativas na sociedade, como uma justiça restaurativa e de reparação, que é o que a Angela Davis vai falar. E, quando a gente vai falar de justiça reparativa, a gente confunde tudo. Precisamos partir sabendo que tem uma parcela da esquerda que também reproduz o punitivismo.
Eu sei que há uma série de entidades, de pesquisadores e ativistas que têm se reunido desde o ano passado para tentar construir uma proposta que case o debate de segurança com o debate sobre política de drogas. É uma iniciativa bem legal porque é a primeira vez que muita gente está sentando para construir algo. Claro que todo mundo se conhece, mas sentar para construir proposta conjunta é a primeira vez. Está rolando esse esforço para construir uma proposta mais sistêmica na área de segurança que será apresentada para todas as candidaturas.
E a gente vai tentando conversar com candidatos que achamos que são mais permeáveis. Tem uma conversa acontecendo com o PSOL, com o Guilherme Boulos e a Sônia Guajajara, que talvez seja a candidatura mais permeável para isso, que consiga aceitar as pautas mais avançadas, sem tantas mediações, porque também não tem que fazer algumas alianças pragmáticas que acabam sendo parte da política. Não estou em momento algum criminalizando isso. Acho que a vida é dura, tem que fazer em alguns momentos. Mas eu sei também que tem uma turma de ativistas conversando com a Manuela D’Ávila (PCdoB), ajudando a pensar o plano de segurança pública. Eu, particularmente, tenho conversado bastante com o Fernando Haddad (PT) porque ele coordena o programa de governo do PT, do Lula. Tenho levado alguns ativistas e pesquisadores para conversar com ele.
[pullquote]Eu, pelo menos, tenho uma perspectiva abolicionista, antipunitivista. Acho que a gente não pode se comprometer a construir prisão. Esse é um ponto fundamental: tentar garantir que nenhum desses candidatos tenha no seu plano construção de prisão.[/pullquote]
É muito difícil bancar uma pauta pelo desencarceramento, que é um tema muito difícil da sociedade absorver. Mas eu acho que se não vai utilizar esse termo tem que se pensar em alternativas de como isso vai entrar na dinâmica do programa de governo, quais ações que vão entrar e que vão ter impacto direto no desencarceramento. É um pouco esse o cenário, mas é muito difícil porque quando você vai falar de um mundo sem prisão, quando a gente vai falar de estratégias para não ter prisão, o povo acha que a gente está sonhando. E, infelizmente, a esquerda ainda vê, também como a direita, a prisão como uma solução para conflitos.
Quando você fala na radicalidade da pauta do desencarceramento, o que seria isso na prática? Como conceitos citados por você como, por exemplo, a justiça restaurativa e de reparação seriam materializados?
A radicalidade da pauta é enfrentar esse tema, enfrentar que nós temos que desencarcerar pessoas. Nós temos que soltar pessoas, libertar pessoas. Essa radicalidade começa daí. É difícil garantir essa agenda do desencarceramento.
Uns dias atrás me perguntaram num debate quais são as respostas radicais e objetivas que eu daria para isso. Eu diria a legalização das drogas, a descriminalização do tráfico e a desmilitarização das polícias. Essas são as três pautas urgentes que a esquerda precisaria enfrentar.
A discussão da justiça restaurativa e de reparação é uma maneira de buscar mediações e não entender conflitos necessariamente como violências. Eu gosto muito de uma antropóloga, que é a Alba Zaluar, que enquanto sociólogos discutiam o conceito de violência, muitos usando a palavra “conflito”, ela chama atenção para dizer que não: a divergência e os conflitos são partes da sociedade, são parte do que nós somos. Sempre vamos divergir, ter pontos de tensão. Ela fala que o problema é quando o conflito é exercido com a violência, seja física ou psicológica ou qualquer tipo, quando a resposta a esse conflito é violenta.
Nós somos uma sociedade que tem muita dificuldade de tratar os conflitos como conflitos. Para dar noção objetiva do que seria uma justiça restaurativa e reparatória a você, eu pegaria o caso de duas meninas que vi em um documentário que roubaram uma câmera fotográfica de um turista. Depois que roubaram elas devolveram – devem ter avaliado que fizeram uma bobagem – mas a nossa resposta foi a prisão das duas jovens. Quando, na verdade, a gente teria que perceber uma série de vulnerabilidades que elas têm e que as levaram a essa situação extrema de achar que elas tinham que furtar uma máquina fotográfica de alguém. Então o que seria uma restauração desse processo? Encaminhamento ao sistema de assistência social, avaliar que tipo de riscos essas meninas ofereceram de fato para a sociedade – elas furtaram e a abordagem sequer foi violenta – então é levar em conta uma série de processos que fazem com que a gente não veja a prisão como solução para essas meninas. Como a gente pode encaminhar de fato saídas para que elas não precisem de novo recorrer a esse expediente para resolver problemas que elas estão vivendo?
Quando vamos defender um mundo sem prisões, a gente vai falar dessas alternativas para resolução de conflitos. Mas muita gente acha que estamos defendendo que se a pessoa cometer uma infração nós vamos falar ‘tudo bem, vamos ser amigos’. Não é isso. Mas é preciso pensar quais são as respostas que a gente tem dado a essas supostas quebras de contratos sociais. O que a gente criminalizou no caso dessas duas meninas foi a precariedade da vida delas. A gente criminalizou a situação de extrema pobreza que elas estavam vivendo. A gente criminaliza a pobreza. Isso acontece porque a maioria dos que são pobres são negros.
Há uma frase de movimentos sociais que defende que “toda prisão é política”. No caso do Brasil, falar em política e pensar a formação da sociedade brasileira é falar de racismo e do classismo também. De que forma o movimento feminista negro e pelo desencarceramento enxerga outras possibilidades de um pacto social? Como lidam com a questão de crimes contra vida? Em um cenário em que avançamos no desencarceramento, com a descriminalização das drogas e do tráfico, as prisões continuariam sendo necessárias – em que casos?
Gosto de uma frase de um amigo meu, o Gabriel Gaspar, que diz que a gente sempre tem que construir políticas sem perder as utopias. Sempre ter o horizonte utópico ali. Porque quando usamos a expressão da Angela Davis – que é uma mulher revolucionária, comunista – todo mundo fica falando que a gente é identitária. Mas a Angela Davis é uma comunista, a orientação política dela de análise do feminismo, da luta das mulheres emancipatória, foi adotada no congresso da III Internacional. São bobagens o que essas pessoas falam de ela ser identitária.
Quando elafala nessa perspectiva também envolve uma transformação total da sociedade, para que a gente não tenha uma sociedade em que as pessoas achem que elas têm que matar outras. Homens não achem que mulheres são posse e que, portanto, podem matar mulheres. Ou que você ache que pode matar uma pessoa porque você quer o iPhone dessa pessoa. São várias complexidades para construir essa proposta. É uma nova proposta de sociedade que ela está apresentando. Então a gente tem que ir construindo mecanismos, construindo projetos e ações de transformação dessa sociedade para a gente alcançar esse horizonte utópico. Não acho que utopia é tão impossível. Acho que a gente vai sempre reconstruindo novas utopias. Esse é um ponto.
Outro ponto é que se avaliarmos as pessoas que estão presas por esses crimes de atentos à vida, assassinatos e tudo mais, elas representam um número muito pequeno no universo de pessoas que estão em situação prisional. Então a gente provavelmente teria um universo de poucos milhares de pessoas encarceradas, talvez nem milhares.
E aí existem outros processos para que essas pessoas não estejam encarceradas. Isso é a transformação dessa sociedade. Nesse mesmo documentário que eu citei tem o caso de um jovem que assassinou o pai, mas a mãe dele está junto no momento da audiência, chorando, pedindo para o filho não ser preso. A juíza pergunta porque fez isso e ele responde “porque o pai batia na mãe e nele”. Então precisamos também pensar nesse processo de violência que esse menino passou durante 15 anos da vida a ponto de achar que teria que pegar uma faca e dar fim à vida do pai.
Talvez ele não precisasse fazer isso se o Estado estivesse presente para garantir que não houvesse essa violência, para garantir que não houvesse essa vulnerabilidade. Existem várias coisas que a gente pode fazer na sociedade que podem minorar esses tipos de crime. Claro que vão ter situações que não vai ter como, os seres humanos somos diversos, temos várias nuances na vida. A gente não pode achar que tudo se resolve na questão social. Não é verdade. As subjetividades são muitas, mas não podemos pautar a sociedade por exceções. A gente tem que estabelecer regras baseadas na realidade. A pessoa que for exceção [aquela que cometer crime contra a vida] nós vamos discutir numa mediação desse conflito e achar qual é a solução para isso.
As respostas para essas questões, as mulheres negras têm apresentado pela defesa cada vez maior da pauta do desencarceramento. Porque, ao fazer isso, você obriga também os órgãos públicos, as instituições, a pensarem as alternativas. E a gente vai pensar junto como fazer isso. Mas o grande foco é ter a mediação como primeira medida de compreensão do que levou àquela quebra de contrato, àquele crime. Eu sempre demoro a escolher o termo porque parece que a gente está reforçando a criminalização, entende? Quando estamos falando de questões de atentado à vida é preciso penar as transformações radicais na sociedade. Por isso que eu falo de radicalidade, vamos precisar ir na estrutura das coisas.
Com os exemplos que você cita fica claro o quanto o processo de julgamento do poder judiciário é permeado por uma ideia de moralidade que recai, principalmente, sobre as pessoas pobres, mulheres negras e pobres. Você consegue identificar de onde vem essa estrutura de relacionar justiça com punitivismo? O que fundamenta essa ideologia que vê na punição uma forma de justiça?
Quando você vai pensar sociedades que viveram a experiência colonial – é engraçado porque muitos fazem uma comparação – a gente gosta muito de comparar com a Holanda, que está fechando presídios, por exemplo. Mas eles não tiveram uma história de colônia, ninguém discute que eles têm medidas reparativas, eles fazem mediação desses conflitos não entendendo a prisão como única resposta. Que eles têm um estado de bem estar social, portanto todo mundo tem acesso à educação, saúde de qualidade e eles não passaram pela experiência colonial. Não foram colonizados como nós, na verdade eles colonizaram.
A relação que a gente faz de justiça como vingança está muito relacionada a esse passado que eu tento explicar no livro, do colonialismo que a gente passou. Eu uso a reflexão que a Carla Akotirene [assistente social, pesquisadora da Epistemologia Feminista Negra, Mestra, Doutoranda em Estudos de Gênero, Mulheres e Feminismo (UFBA)] faz sobre porque o nome é sistema penitenciário. É “sistema penitenciário” porque é de penitência, de pagar uma pena, de busca de restauração divina. A gente ainda tem isso no inconsciente coletivo, na nossa memória – posso entrar em temas que os sociólogos podem questionar – mas nessa suposta memória coletiva, memória social que a gente tem. Então a gente entende muito a prisão como um castigo ainda. Isso está muito ligado a esse passado com a escravidão atuante. O pensamento de “um escravizado fez algo que eu não gostei, então eu preciso castigar”. Porque o escravizado [termo para não utilizar “escravo”] é esse ser sem alma que precisa dessa penitência para alcançar a salvação. Ainda tem muito desses traços judaico-cristãos na nossa sociedade.
Angela Davis vai dizer que a questão da violência doméstica tem que ser avaliada a partir da análise do passado em que as mulheres eram propriedade, consideradas seres de segunda categoria e objetos de poder dos homens. Então nos perguntamos porque não existiam prisões para as mulheres. É porque poucas mulheres chegavam ao sistema público punitivo já que elas tinham sofrido o castigo em casa. Davis vai falar que a violência doméstica está ligada à ideia de que o homem tem o poder de aplicar a pena por qualquer coisa que ele ache – porque aí é o julgamento subjetivo dele sobre essa mulher.
Essa relação está muito ligada a nosso passado escravocrata, como sociedade que tinha na instituição da escravidão a constituição e a base da sociedade. Nós temos relatos de escravizados que tinham roubado uma maçã, eram pegos e levados à cadeia. E há relatos historiográficos de que os senhores de engenho iam até a cadeia e pediam para os seus escravizados serem soltos porque eles aplicariam a pena, com o argumento de que eram suas propriedades. Podia ser mutilação ou coisas absurdas, das quais temos relatos. Tudo isso ainda está muito ligadoà ideia de castigo.
A gente não pensa em justiça e no Direito como uma garantia de direitos ou que nos vê de maneira equânica, igualitária. A gente enxerga justiça como castigo, como vingança. Tudo está ligado a essa ideologia racista. Eu vou falar disso no livro porque eu acho que existe uma ideologia racista no Brasil e porque eu acho que o racismo e a violência são os nossos mitos fundantes.
Marilena Chauí [filósofa] vai falar da violência como mito fundante da sociedade brasileira. O mito fundante é uma estrutura que está sempre presente na sociedade brasileira, que se reorganiza, se remodela, mas está sempre ali. Há uma discussão que acontece hoje na sociologia e na filosofia sobre o que seria a base da sociedade brasileira. Tem alguns sociólogos que defendem que é a corrupção, essa coisa do jeitinho brasileiro, de ter nascido como uma nação no “ajambramento”. Mas eu sou adepta da análise da Marilena Chauí, de que é a violência que faz parte da fundação da sociedade brasileira e eu aplico esse conceito para falar do racismo. Por mais que o termo só vá existir no século 19 não significa que ações e práticas não existissem antes.
Essa ideologia racista, que vai hierarquizar esubjugar pessoas pela violência, é um mito fundante da nossa sociedade. Se é um mito fundante, ele vai estar presente o tempo inteiro, vai sempre se organizar, vai surgir de uma outra maneira, vai se adequar, readaptar, mas ele vai estar o tempo todo presente.
Como a violência, como parte da estrutura de sociedade brasileira e fio condutor de diversas histórias,remete ao assassinato da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro? Você falou durante debates que ela é um símbolo dessa violência ou mesmo uma mensagem para os campos progressistas da sociedade. Como e por que Marielle seria um símbolo dessa violência no Brasil hoje?
Marielle era um símbolo porque representava tudo que eles têm medo, tudo que as elites têm medo. Uma mulher negra, lésbica, favelada e que virou uma das vereadoras mais votadas do Rio de Janeiro. E que é uma mulher negra, lésbica, favelada, que foi mãe jovem e que demonstrava tudo que algumas políticas públicas têm potencialidade de fazer transformação. A Marielle fez universidade, mestrado e começou a utilizar esse conhecimento. Ela não se adequou à universidade, ela usou o conhecimento da universidade para fazer transformação na comunidade dela. Eu não gosto de utilizar o termo empoderar porque não acho que é individual e é justamente por ela ter essa visão de empoderamento coletivo que ela sempre tentava estar junto com outras mulheres.
Ela utilizava a trajetória dela para fazer com que outras companheiras também fizessem o mesmo. Então a Marielle simbolizava essa consciência que existe na comunidade. Me irrita, às vezes, o pessoal da esquerda falando que vai levar consciência para comunidade, a Marielle dizia tanto para as elites quanto para as esquerdas que existe uma consciência na comunidade e que a única coisa que ela precisa é de espaço para ser potencializada. E quando é potencializada, é transformador.
Ela representava uma perspectiva de futuro, é mais do que também esse passado, construção dela. Ela era de fato um polo aglutinador.Tem outras companheiras no Brasil que são esses polos aglutinadores. E por isso é preciso criar essas redes de cuidado, de proteção para nós e para essas mulheres porque elas estão na frente como vereadoras, deputadas. Como a gente consegue fazer essa rede de cuidado? Porque querendo ou não elas acabam sendo essas vidraças. E quando a gente vai ver os pontos de conexão das histórias delas com a Marielle, são muitos.
Às vezes amigos meus, pessoas brancas, pedem para que eu explique mais as coisas, para eu ser mais didática, ter mais paciência porque a pessoa gostaria de aprender. E eu sempre respondo que eu não estou preocupada em ensinar um branco a fazer nada. Eu estou preocupada com a minha comunidade. Às vezes me chamam para fazer um debate e eu não aceito porque me vale mais passar uma tarde com os meninos da minha comunidade. E eu acho que isso incomoda muito no campo das esquerdas. Como diz a Djamila, nós não somos professoras, não somos wikipreta para ficar explicando conceitos para vocês. Mas eu tenho a maior paciência de explicar, ficar conversando com os moleques da comunidade, com minha avó, minha mãe, com as minhas tias. Passo o dia inteiro, se elas não entenderem, o dia inteiro lá explicando para elas porque me vale mais que elas saibam sobre isso. Saibam que alguém teorizou sobre um conhecimento que elas já têm, que não é nenhuma tentativa de estar ensinando a elas, mas de dizer que isso que elas já têm alguém só deu um nome mais difícil, mais bonito, mais acadêmico sobre algo que vocês já fazem, um conhecimento que vocês já têm. Não é a gente ensinando para elas, é o contrário, é a gente aprendendo com elas, junto.
Eu acho que a Marielle era tão simbólica por conta de tudo isso, mas não só ela. Se a gente conseguia perceber isso, as elites também conseguiam perceber. Em quem ela botava medo conseguia enxergar isso. Talvez não de maneira tão refinada, mas ao ponto de cometer esse atentado e essa ação tão bárbara. Dez tiros quer dizer que sabia exatamente o que queria. Mirar na cabeça, que tem a ver com desfiguração. A gente sabe do simbolismo disso.
Eu via a Marielle sendo governadora, sendo presidenta. Ela tinha esse potencial. Não sou do mesmo partido que ela é, não sou do mesmo partido da Áurea [Carolina, vereadora de Belo Horizonte pelo Psol], mas se elas vão falar, eu estou junto. Então tem outras companheiras que vão sair pelo PSOL e eu vou apoiar. Não me importa se alguém reclamar porque são mulheres pretas, a gente está cada vez mais tendo essa noção como mulheres negras. Não à toa eles escolheram uma mulher negra.
Vem sendo construído um processo entre nós, não sem tensões, não sem divergências, muitas vezes não sem muito estresse. Mas é um processo que causa muito incômodo. Obviamente, têm mulheres negras que eu não vou com a cara, que eu não gosto, mas muitas vezes chega uma pessoa branca e fala que fulana falou ou fez isso e isso de você e a pessoa espera que você alimente isso. E eu digo que eu não vou perder meu tempo desconstruindo mulher preta. O máximo que eu vou fazer é não ter um convívio de amizade com essa mulher ou com essa pessoa. Mas eu decidi não perder mais meu tempo fazendo disputas entre mulheres negras, porque isso serve à branquitude. É o que eles querem. E incomoda a gente dizer que não vai fazer isso.
A Marielle era toda essa potencialidade. Por isso que, no momento de avanço do autoritarismo, ela foi o alvo. Porque ela representava uma proposta de mudança estrutural.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.