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Vista do cruzamento da Av. Beberibe com José dos Anjos, no Arruda. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
O primeiro estudo com testes aleatórios do coronavírus no Brasil exibe um panorama de disparidade regional e de subnotificações. Mas ainda muito longe de qualquer percentual que garanta uma imunidade populacional – quando já há muitos imunizados e o vírus passa a circular menos.
Com 25.025 testes em 133 cidades do Brasil, a primeira fase da pesquisa EPICOVID19-BR, coordenada pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas, estimou em 1,4% (ou 760 mil) a proporção de pessoas com anticorpos em 90 dessas cidades (onde conseguiram fazer mais de 200 testes).
No dia 13 de maio, véspera do início da pesquisa, essas 90 cidades somadas contabilizavam 104.782 casos confirmados oficialmente. Ou seja, é possível estimar que a subnotificação no Brasil fica em torno de 7 vezes: para cada caso registrado, há pelo menos outros sete não contabilizados.
Em São Paulo, com 12,2 milhões de habitantes, 3,1% da população apresenta anticorpos, o que representa 380 mil pessoas. Sozinha, a metrópole já teria mais casos do que todos os registrados no Brasil pelas estatísticas oficiais na época da coleta (14 a 21 de maio). Hoje, são 391.222 brasileiros que tiveram ou estão com covid, pelos dados oficiais.
Os números deste estudo, porém, não devem ser lidos como estatística confiável quando se fala em cidades específicas. No Recife, por exemplo, uma cidade com mais de 1,6 milhão de moradores, foram testadas por amostragem apenas 240 pessoas, das quais sete testaram positivo, ou 3,2%, o que projetaria um número de 52,8 mil infectados. Oficialmente, são cerca de 13 mil, 4 vezes menos, abaixo da média nacional. É uma amostra populacional pequena, mas que serve para acompanhar o desenvolvimento da epidemia no país.
“Não é uma pesquisa para avaliar a covid no Recife, mas nas 133 cidades sentinelas em todos os estados. É uma pesquisa para fim epidemiológico, e não estatístico. Para as cidades e estados, o que recomendamos são estudos específicos, como o que fizemos no Rio Grande do Sul, ou como outros colegas fizeram em Ribeirão Preto (SP). A nossa pergunta nesta pesquisa é maior: é como o coronavírus se comporta no país, como que a infecção está se alastrando ao longo do tempo”, explica Pedro Hallal, um dos pesquisadores do grupo.
Olhando então para o macro, é no Norte do país em que há mais preocupação: entre as 15 cidades com maiores prevalências 11 são da Região Norte, duas do Nordeste (Fortaleza e Recife) e duas do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo). “Uma epidemia é sempre surpreendente. Lugares com maior trânsito de pessoas contaminadas, hubs de turismo internacional…há várias explicações para um percentual maior e porque se disseminou mais rápido em alguns lugares”, afirmou outro pesquisador, Fernando Barros, em coletiva virtual de imprensa.
Os dados do estudo ainda não foram totalmente avaliados pelos pesquisadores. Recortes de gênero, raça e escolaridade só devem ser publicados ao final desta semana. “Mas já percebemos uma prevalência maior da covid-19 entre as populações indígenas”, alertou Hallal.
É da região amazônica os maiores percentuais da covid-19 entre as cidades pesquisadas. Em Breves (PA), a proporção da população que tem ou já teve coronavírus foi estimada em 24,8%, o que significa que 25 mil dos 103 mil habitantes da cidade estão ou já estiveram infectados. O segundo resultado mais alto vem do município amazonense de Tefé, onde se estima que 19,6% da população tenha anticorpos para o coronavírus.
O vírus ainda se mostra tímido na região Sul, onde apenas Florianópolis apresentou prevalência superior a 0,5%, e na Região Centro Oeste, onde a pesquisa não encontrou nenhum caso positivo nas nove cidades testadas, embora existam casos e óbitos notificados. “O resultado mostra que a prevalência é baixa nessas regiões, não que não há casos”, disse Hallal.
Como casos graves são mais testados que os leves e assintomáticos, os pesquisadores acreditam que a subnotificação das mortes deve ser menor que a de casos. “Se o número de casos é sete vezes maior, isso indica que os óbitos também devem ser subnotificados, mas talvez não nessa dimensão, deve ser menor. Vários lugares incluíram mortes prováveis em suas estatísticas e não apenas as confirmadas por testes. Nova Iorque e a Bélgica fizeram isso, por exemplo. Em algum momento teremos que ver como iremos fazer aqui no Brasil”, explicou o pesquisador Fernando Barros.
Os mais de 25 mil testes utilizados na pesquisa foram doados ao Governo Federal pela empresa Vale. A porcentagem de falso negativo fica em torno dos 15% e a de falso positivo de 0,2%.
Na coletiva, os pesquisadores também afirmaram que ainda não se sabe por quanto tempo as pessoas que tiveram contato com o novo coronavírus ficam imunizadas. Estudo chinês publicado pela Nature afirma que 100% dos 285 pacientes do estudo apresentavam anticorpos três semanas após o fim da infecção. Em acompanhamento desses pacientes, eles ainda apresentam altas taxas de anticorpos sugerindo que talvez o novo coronavírus se comporte como os da SARS e da MERS, com imunidade por alguns anos.
Para o cientista Jones Albuquerque, que trabalha em estudos epidemiológicos pelo Instituto para Redução de Riscos e Desastres de Pernambuco (IRRD), a pesquisa nacional aponta que em Pernambuco ainda há uma enorme população em risco.
“Pesquisa epidemiológica não é como a pesquisa eleitoral que a gente pega 2 mil pessoas e tem uma boa amostragem. Com uma reprodutividade alta, basta uma fração muito pequena da população estar contaminada para gerar um processo muito danoso. Epidemiologicamente, essa pesquisa traz um dado muito ruim: 97% está suscetível à doença no Recife”, diz.
“Se a gente for olhar numericamente, a gente nem ‘brincou’ de covid ainda. Grosseiramente, esse percentual de 3,2% representa 300 mil pessoas imunizadas, se formos aplicar ao estado de Pernambuco. Isso para 9 milhões (a população do estado) é nada, isso não dá nem uma cidade de médio porte”, afirma.
Jones lembra que a “imunidade de rebanho” está muito distante e não deve ser algo a ser buscado. “Milhares e milhares morreriam. Vamos dizer que estatisticamente a circulação do vírus parasse com 80% de imunizados. Se com 3% estamos vendo esse caos na saúde, com esse percentual seria um espanto. Nenhum sistema de saúde do mundo estaria preparado para isso”, diz.
Durante a testagem, a equipe da EPICOVID19-BR, junto ao Ibope, também avaliou o grau de aderência da população às medidas de distanciamento social. Em Pernambuco, apenas Recife figura na pesquisa, e não foram divulgados em quais bairros ocorreram as entrevistas e testes. Na capital, 64% dos entrevistados afirmaram que estavam cumprindo o isolamento social. Índice bem mais alto do que é normalmente registrado pelo Governo do Estado, que faz a medição por meio das antenas de telefones celulares.
Citando o renomado estatístico Gauss Moutinho Cordeiro (que acredita em 150 mil mortes no Brasil até o final da pandemia), Jones afirma que a medição do isolamento por celular também é um dado falho. “Uma pessoa pode ter três, quatro celulares e ficar em casa. Enquanto pessoas sem celulares saem de casa, vão jogar futebol. Ainda é um dado válido, mas a gente tem que ser transparente sobre a qualidade desse dado”, diz, acreditando que a quarentena obrigatória deve ser prorrogada em Pernambuco. “Ainda não podemos dizer que houve diminuição da curva. O isolamento é o mais importante, estamos andando no desconhecido”.
Tanto o cientista pernambucano quanto os pesquisadores de Pelotas defendem que o isolamento social é a única medida que pode diminuir as mortes pela covid-19 no Brasil. “Sem curva descendente não há evidência científica para relaxar medidas de distanciamento. A epidemia não apresenta sinais de declínio. Considerando que quem tem anticorpos está imune, a grande maioria da população brasileira permanece suscetível ao vírus. Qualquer flexibilização de distanciamento social tem que ser feita com muita cautela”, afirmou Pedro Hallal.
Para o também pesquisador da UFPEL Fernando Hora, os dados da primeira fase do estudo nacional não oferecem razões para se prever uma saída da quarentena. “Não conseguimos nenhuma informação se a curva de novos casos vai fazer uma inflexão”, disse.
As próximas fases da pesquisa EPICOVID19-BR podem dar algumas respostas neste sentido. O segundo round de entrevistas e testes acontece entre os dias 4 e 6 de junho. O terceiro, no final do mês de junho.
O cientista Jones Albuquerque lembra também que a população tem que estar muito consciente do momento crítico e histórico que o Brasil vive. O boletim desta quarta-feira não aponta melhoras no cenário pernambucano: foram 140 mortes e 1.065 novos casos nas últimas 24 horas. Ele frisa que é importante que não se banalizem as mortes. “Não há muito o que se fazer. Enquanto não houver vacina, é preciso que haja isolamento. O Brasil teve hoje (26) novamente mais de 1 mil mortos e isso parece que não causa mais espanto. A dengue é uma doença que mata muito e se aceitou, não foi erradicada do Brasil, entrou no nosso cotidiano. A morte parece ser muito comum para o brasileiro. Quando se chegou a 600 mortes diárias na Itália, houve um grande espanto. Aqui, estamos anestesiados. O que há de tão errado na gente para tolerarmos tantas mortes sem espanto?”, questiona.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org