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Favela, Covid 19 e a potência dos pobres: resistindo entre a política da amizade e os laços de solidariedade

Marco Zero Conteúdo / 18/04/2020

Crédito: Jonathan Lima Coque (R)existe

Por
Sidney
Silva*

Se
procurarmos olhar a pandemia como um fenômeno complexo – sem cair
na tentação de simplificar ou generalizar a situação – não
será difícil perceber que a Covid-19 não é “só” uma questão
de saúde pública; é também um problema de natureza social,
governamental, ética, ecológica. É, acima de tudo, um problema de
política cósmica. Isso significa uma série de coisas, dentre elas,
gostaria de destacar o fato de que muitas dessas consequências
desastrosas que estamos passando com o coronavírus não são novas.
Há muito tempo estamos sofrendo com os descasos em saúde, em
educação, saneamento. A pandemia na verdade contribuiu para
potencializar e intensificar, colocando numa escala mundial e
acelerada, problemas que os espaços e sujeitos periféricos precisam
lidar no seu cotidiano.

O
que estamos querendo dizer é o seguinte: seria muito arriscado
pensar que antes do vírus vivíamos num paraíso. Uma das coisas que
as vozes das favelas querem fazer ressoar, por meio desse surto
mortal que não para de se alastrar, é que esse fenômeno brutal nos
trouxe de volta para nossa existência real. “Bem-vindo ao deserto
do viral”, onde parasitas especialistas te roubam a saúde, te
oferecem o medo e te sequestram a vida.

Nesse
sentido, não seria muito inteligente achar que basta conter o
coronavírus
que tudo estará magicamente resolvido e, com isso, poderemos voltar
àquela mortífera normalidade sustentada em grandes doses de
delírios. Precisamos entender que a situação já estava ruim com o
crescente sucateamento do SUS,
com a privatização de bens comuns, com a falta de investimento em
educação e pesquisas, com a escassez de políticas públicas, com o
avanço do aquecimento global, com a prioridade no bem-estar pessoal
em detrimento do coletivo, etc, etc, etc. E quem vive no Brasil de
verdade – que digam os moradores de nossas comunidades – sabe muito
bem o que significa “voltar” para a realidade.

Por
isso, no Coque, uma das maiores periferias da região metropolitana
de Recife, e imagino que em outras favelas, a história de luta,
enfrentamentos e resistência não é atual e não começou em meados
de março de 2020. Antes da Covid-19 outras classes de parasitas já
nos perseguiam. A questão é que quando a gente não cuida do que
está ruim a situação só tende a piorar. O que não dá mais é
ver os governos e parte de nossa população tratar da situação de
forma unilateral, como se o Brasil fosse uma grande massa homogênea
– não é!

Quando
vamos entender que nossa sociedade é plural, repleta de
microperspectivas e formas singulares de existências? Precisamos
pensar estratégias mais inteligentes, com perspectivas mais amplas e
heterogêneas. É urgente a necessidade de levarmos em consideração
os diferentes modos de vida, e compreender essas vidas a partir de
seus mundos próprios. Entretanto, não é isso que acontece. Não
por acaso, uma das maiores dificuldades que as periferias precisam
enfrentar é a insistente repetição da nossa história
sócio-política: há aqueles poucos que podem viver – ou ter
maiores condições para isso – e aqueles muitos que são deixados
para morrer, sem condições básicas nem para sobreviver.

O
descaso governamental – como o desgoverno federal – com as causas
sociais não tem, entretanto, impedido as periferias de inventarem
suas próprias formas de fazer política para continuar resistindo
aos problemas que aparecem. Na comunidade do Coque, e em muitas
outras periferias do Recife e do Brasil, o enfrentamento à pandemia
vem sendo feito principalmente com estratégias de auto-organização,
política da amizade e redes de solidariedade – algo, inclusive,
que é muito característico em nossas favelas. Até porque a forma
como os governos, via de regra, pensam as soluções não leva em
consideração situações específicas que atravessam a realidade de
nossas comunidades. Tem quesitos que só são deixados para serem
pensados muito depois, quando a situação já está caótica.

Desde
o início do combate ao vírus temos nos perguntado muitas coisas,
como: o isolamento físico é necessário sim, mas e quem não tem as
condições adequadas para manter-se em casa? A higiene é de
fundamental importância, mas e quem não tem acesso à
saúde e ao
saneamento
básico? Aumentar a imunidade com boa alimentação é imprescindível
para combater melhor o vírus, mas e quem não tem como gerar renda
no isolamento porque é autônomo e atua no trabalho informal? Vamos
ter que esperar mais quantas epidemias? Vamos precisar enterrar
quantos mortos? Será necessário superlotar quantos sistemas de
saúde para aprender que estamos diante de um problema estrutural? A
pandemia está escancarando a sujeira que a gente costuma colocar nos
espaços subterrâneos.

O que nos resta? Enfrentar esse problema como sempre fizemos: procurando nos apoiar, nos ajudar, nos fortalecer, vendo quem precisa do que, trazendo informações mais contextualizadas e de forma cuidadosa; enfim, articulando forças, movimentos, pessoas e, sobretudo, corações por meio de uma rede amiga e solidária. Mas não sem cobrar o que é preciso e não sem nos colocar inquietações que são necessárias. Em momentos assim precisamos dizer: a periferia não é lugar para matar, nem espaço para morrer! O direito à vida digna não pode ser privilégio de uns, mas uma condição real para todes – humanos e não humanos.

Crédito: Jonathan Lima Coque (R)existe

É
isso que temos procurado fazer no NEIMFA, em parceria com outras
organizações e movimentos sociais como AVIPA, MABI, Rede Coque
Rexiste, Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste. Afinal, política não
é um exercício exclusivo dos políticos e as periferias têm criado
ações interessantíssimas no enfrentamento ao coronavírus – e
mesmo antes dele. De modo bem pragmático, a gente tem procurado
adotar, por um lado, estratégias de combate que buscam pressionar e
denunciar todo tipo de descaso, negligencia e indiferença do governo
para com as comunidades – daí a nossa parceria com o CPDH, por
exemplo, e com as mídias alternativas e contrahegemônicas para
gritar o que normalmente é silenciado e dizer o que normalmente não
se diz. A gente não quer e nem vai ficar de braços cruzados
enquanto nosso povo está sendo ameaçado.

Por
outro lado, temos utilizado estratégias de potencialização das
vidas, procurando promover o cuidado uns com os outros, o trabalho em
articulação, a força comunitária, lembrando sempre que o desejo e
o direito pela vida atravessam a todes nós. Nesse momento, mais
especificamente, temos procurado tecer essa rede de cuidado por meio
de anuncicletas que circulam pelas ruas da comunidade informando sem
criar pânico, passando mensagens de apoio, fazendo campanhas para
arrecadar doações em dinheiro, assim como material de limpeza e
produtos de alimentação, fortalecendo o
supermercado
local, estimulando entre as pessoas que por aqui costuram a confecção
de máscaras de tecido e mais recentemente começamos a montar um
grupo de atendimento psicossocial e atenção à saúde mental para
que as famílias da comunidade possam ter acesso a atendimentos
psicológicos, ainda que de forma remota.

Em redes como essa temos aprendido a agir de forma integrada e interdependente, percebendo que a verdadeira política está na capacidade de como eu e tu cuidamos dos outros e em como nós comprometemo-nos com o mundo. Esse, me parece, tem sido o modo periferia de enfrentar e o modo favela de lidar com o que se passa já há muito tempo: na troca, na partilha, no encontro, na doação, no fazer junto ainda que distantes, na solidariedade. Quando as coisas ficam difíceis lembramos um ao outro que temos a nós mesmos! Tanto damos, quanto nos doamos. Isso é um dos indicadores mais potentes de política que se articula e se exerce principalmente entre os pobres: ela é comunitária, não privativa; e estar em comunidade é saber-se em laços de amor e amizade. Aqui a gente sempre sabe que em algum lugar, não importa o momento, tem alguém disposto a partilhar de nossa alegria e de nosso sofrimento. Apesar do isolamento físico, descobrimos que não estamos e nem precisamos nos sentir sozinhos.

Crédito: Revelar.si - Coletivo de Fotógrafas do Coque

Se
todo sintoma é sinal, esse pequeno ser parece está a nos dizer, que
nosso destino, que só haverá destino, quando formos capazes de
vivê-lo em comum, como agora e com os menores – com as classes de
seres mais pobres. É tempo de gerar lucidez para descentrarmos de
uma vez a lógica que insiste em focar no equilíbrio fiscal em
detrimento do compromisso social. Tempo para entender que a
preocupação com o lucro não pode ser maior do que a preocupação
com a vida – qualquer que seja ela. Hora de saber que “fazer sua
parte” não é suficiente, é preciso aprender a fazer junto!
Porque a forma que coletivamente escolhemos viver, diz diretamente do
modo como podemos morrer. O mundo, e seus outros, precisam significar
alguma coisa para nós! E as periferias carregam uma sabedoria capaz
de nos ajudar nesse quesito.


passou da hora para entender, e por isso gostaríamos de relembrar,
que, como bem observado por Ludwig
Wittgenstein,
“Nenhum
clamor de tormento pode ser maior que o clamor de um homem.
Ou,
mais uma vez, nenhum tormento pode ser maior do que aquilo que um
único ser humano pode sofrer.
O
planeta inteiro não pode sofrer tormento maior do que uma única
alma”.
Por
que? Porque cada vida importa: a minha, a sua, a nossa!

*Coordenador do NEIMFA, integrante da Rede Coque (R)existe, psicólogo social, doutor em Educação, morador da comunidade do Coque, no Recife.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
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