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Fechamento de escola expõe precariedade da educação quilombola na Bahia

Marco Zero Conteúdo / 18/08/2023
Fachada de escola, com muros pintados, bastante coloridos de azul, amarelo e rosa, onde estão escritas as palavras exu, oxu e axé à esquerda do portão fechado, e, à direita, a palavra sankoka

Crédito: Tiago Rodrigues

por Júlia Moa*

Salvador (BA) – Na última semana de julho, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados da pesquisa Brasil Quilombola, que integra o Censo Demográfico de 2022. Os números destacam a Bahia com a maior população quilombola, e o estado possui cinco das dez cidades do país de maiores residentes: Senhor do Bonfim (15.999); Salvador (15.897); Campo Formoso (12.735); Feira de Santana (12.190) e Vitória da Conquista (12.057).

No total, o Nordeste concentra quase 70% dos quilombolas, com grande destaque para as áreas da Bahia e do Maranhão. Juntos, eles têm metade dos quilombolas do país. De acordo com o Censo, da população quilombola que mora na Bahia, apenas pouco mais de 5% vivem em territórios demarcados. Enquanto a grande maioria, 95%, permanecem fora. Nos números detalhados pelo Conselho Estadual das Comunidades Quilombolas da Bahia (CEAQ/BA), o estado reúne 937 comunidades certificadas pelo governo federal. O número total estaria em torno de 1.500 comunidades.

Para Tiago Rodrigues, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e pesquisador no GeografAR (IGEO-UFBA), a divulgação do Censo 2022 é um marco fundamental para que o Estado brasileiro reconheça, agora, pela primeira vez a existência dessa população em termos de quantidade e localidade. “Na linha do tempo, temos notícias dos quilombos no Brasil desde 1530 e o direito ao território quilombola e a cidadania integral só surgiu na Constituição de 1988. É valioso destacar que tais resultados só foram possíveis diante da luta do movimento e das lideranças locais que pautaram as descrições e demandas das comunidades quilombolas, tornando visível a longa caminhada de resistência”, analisa o professor. Tiago vislumbra na inclusão um estímulo para maiores elaborações de políticas públicas específicas e da regularização fundiária dos territórios.

Mesmo com o reconhecimento mencionado pelo professor e pesquisador Tiago Rodrigues, o processo de negação da identidade quilombola no período da escravidão permanece no século XXI, sendo realizado no cotidiano.

É o caso do fechamento de escolas quilombolas no interior baiano.

A comunidade quilombola de Velame, zona rural de Morro do Chapéu, município a 380 quilômetros de Salvador, foi surpreendida com o fechamento da Escola Municipal Felicina Maria de Brito, de Ensino Fundamental I, com o ano letivo ainda em curso. Segundo o vereador quilombola Luciano Brito (PCdoB), conhecido como Lula do Velame, responsável pela denúncia, a justificativa apresentada pela secretaria de Educação apontou o baixo rendimento e a pouca quantidade de alunos frequentando a escola. Os moradores contestam o argumento ao provar que muitas pessoas conquistaram diplomas universitários devido à sólida base de formação ali adquirida. Lula afirma que as situações de ameaças e fechamentos de escolas públicas em terras quilombolas é algo recorrente em todo o Brasil. Minas Gerais e Pará também enfrentam o descumprimento da Lei 12.960, de 2014, que versa sobre o fechamento de escolas rurais, indígenas e quilombolas.

Fundada em 1986, a escola passou recentemente por uma reforma e possui professores, alguns aposentados, que nasceram no quilombo e construíram o projeto político pedagógico lado a lado com os interesses das lideranças na comunidade. “Somos 76 famílias num espaço quilombola de forte atividade cultural desenvolvida ao longo do ano. A escola sempre esteve ativa, contribuindo diretamente com a educação morrensse. Sabemos o nosso potencial e esperamos reverter logo essa situação” relata o vereador. 

O vereador Lula critica a atuação de profissionais em territórios quilombolas que não possuem o sentimento de pertencimento ao local. Por não existir um treinamento específico sobre a realidade do ensino afro-brasileiro, as tradições e sua vasta diversidade, os alunos são limitados por não contarem com a multiplicação do conhecimento e militância do seu povo. “Quando não temos professores quilombolas atuando dentro das escolas na nossa comunidade, acabamos perdendo a nossa essência. É importante existir concursos públicos próprios para pessoas que tenham afinidade com a causa e que atuem dentro desses territórios”, explica Lula. 

Procurada pela reportagem, a Secretária de Educação de Morro do Chapéu não respondeu à solicitação de posicionamento oficial. 

E se a união fortalece a comunidade para a almejada ‘paz quilombola’, os nativos das imediações formaram a Rede Sankofa: a junção de três associações quilombolas da zona rural e mais um produtor cultural da cidade com a finalidade de realizar ações para o desenvolvimento educacional das crianças e envolvidos.

“Nossa região é extremamente rural e sem acesso às políticas públicas. Adquirimos recursos para amenizar essas faltas através de editais que possibilitam algumas melhorias no quesito qualidade de vida. Não temos água potável, utilizamos o poço artesiano, e nem saneamento básico. A coleta de lixo é realizada uma vez na semana e não temos opções de lazer, faltam quadras de esporte”, descreve Sirlene Santos, assistente social e presidente da Associação de Mulheres Quilombolas Dandara dos Palmares, do quilombo Queimada Nova.

Sirlene narra que o alto consumo de álcool, juntamente com os casos de gravidez precoce, afasta muitos jovens das escolas e, consequentemente, impossibilita o ingresso nas universidades.

Outro caso no fogo cruzado da complexa batalha diária dos quilombolas na Bahia é a falta de transporte para levar os alunos ao ambiente escolar quando estes não se localizam próximo a comunidade.

Em uma estrada de terra, sob céu azul, grupo de pessoas cujas cabeças aparecem por trás de duas grandes faixas amarelas pintadas com letras pretas, azuis e vermelhas com frases de protesto contra fechamento de uma escola.

Quilombolas protestam contra decisão da prefeitura nos sertão da Bahia. Crédito: Divulgação

Sem transporte nem estrutura

O quilombo Tomé Nunes, em Malhada, a 783 km da capital soteropolitana, ficou quase um mês sem transporte para os 35 alunos  da escola Municipal Professora Alice Maria, do 6º ao 9° ano, assim como, estudantes do Colégio Estadual Luiz Eduardo Magalhães, do 1º ao 3º ano do Ensino Médio. Sem resposta positiva por parte das autoridades municipais, a comunidade, que abriga cerca de 800 famílias, recorreu ao Ministério Público Estadual e finalmente a questão foi solucionada. No entanto, os estudantes são obrigados a correr atrás do prejuízo da perda do conteúdo educacional do período.

“Passamos repetidamente por problemas com o transporte em período de chuva; eles são bem precários e, quando quebram, demoram para repor (a distância até a escola é de 12 quilômetros). Temos uma escola na comunidade, que atende os estudantes do infantil até o fundamental I. No caso do fundamental II e do ensino médio, precisamos nos deslocar para a sede do município. Na nossa escola falta apoio em toda a infraestrutura, que é deficitária desde a cantina até o cantinho da leitura”, desabafa Amilton Pereira dos Santos, liderança quilombola de Tomé Nunes. 

Por lá, os professores e a equipe da cozinha, que fazem parte da comunidade, se esforçam para impulsionar o time escolar a não sair perdendo na disparidade da precarização do ensino público.

No geral, as comunidades contam com escolas de educação infantil e ensino fundamental I. Poucas mantêm o ensino fundamental II e raramente o ensino médio, totalizando apenas oito instituições de ensino estaduais situadas nos territórios quilombolas baianos. Além disso, existem extensões nas cidades maiores que abrem espaço para estudantes quilombolas. A maioria funciona como o programa estadual de Intermediação Tecnológica na modalidade multimídia, algo próximo à educação a distância (EAD), e não recebe uma boa aceitação da comunidade.

Valorizar a educação escolar quilombola, preservando os costumes de seus antepassados, reforça o engajamento dos estudantes garantindo o aprendizado compatível com a realidade presente. A quilombola Shirley Pimentel de Souza, membro do Fórum Permanente de Educação Escolar Quilombola da Bahia e doutoranda em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vivenciou em 2015 a retomada da escola para a sua comunidade, o quilombo Pedra Negra da Extrema, localizado no município de Barra, a 675 km de Salvador.

“Ir para a escola fora da comunidade impõe às crianças grandes deslocamentos em estradas ruins. Elas saem muito cedo de suas casas, e esse longo trajeto muitas vezes causa desistência, principalmente dos adolescentes que trabalham auxiliando na lavoura ou pesca no território. Muitos optam por migrar para as cidades em busca de novas oportunidades”, comenta Shirley.

Ela ainda denuncia os “cartéis” do transporte escolar, frequentemente feitos sem licitação ou com licitações viciadas para que os apoiadores de determinados grupos políticos consigam fazer as locações dos seus ônibus. Realidade comum em vários lugares na Bahia.

Na atual análise de conjuntura acerca da educação escolar quilombola realizada pelo Fórum em julho de 2023, Shirley informa que não acontece no estado um ensino contextualizado que respeite os saberes locais e as formas de produzir conhecimento de cada comunidade. É extremamente necessário a formação de professores qualificados e materiais didáticos que não reproduzam o mesmo sistema que é posto na cidade sem adaptar para questões particulares (um quilombo às margens do rio difere de um outro que se encontra no litoral) e apresentar quem são as figuras representativas da caminhada quilombola.

Mas nem tudo está perdido, o território do Baixo Sul da Bahia, onde não tem nenhum caso de fechamento de escolas, é possível a adoção da pedagogia produzida por quilombolas. 

Em relação ao ocorrido em Morro do Chapéu, Shirley frisa o histórico de perseguição política na região. Na sua perspectiva, o fechamento da escola ocorreu como uma punição para a comunidade que votou, na última eleição, no grupo contrário aos que os executivos municipais apoiaram. 

Ela acrescenta que em Vitória da Conquista, 518 km de Salvador, território com 64 comunidades, o fechamento das escolas quilombolas também está se tornando corriqueiro e a prefeitura encerrou as atividades do pré-vestibular quilombola que possibilitou o acesso ao ensino superior de muitas pessoas. No território do Sertão Produtivo, que envolve 17 agrupamentos quilombolas, a ausência de escolas, a falta de transporte adequado, o racismo praticado por alguns professores de fora com os alunos quilombolas  e  a proibição da presença dos professores no Fórum Permanente de Educação Escolar Quilombola da Bahia por parte da prefeitura, sinalizam o cenário bélico na maior residência quilombola do Brasil. 

“Os fechamentos das escolas quilombolas têm sido uma estratégia da classe dominante que visa exterminar a identidade e a autonomia das comunidades. Uma situação que ilustra essa tática é o quilombo do Jequitibá em Mundo Novo, a 303 km de Salvador, onde o município resiste em não cadastrar a escola como pertencente aos quilombolas. Por outro lado, em Bonito, a 427 km da capital e atualmente com 17 comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares, há mais de 2 anos uma iniciativa de formação escolar quilombola está em andamento”, diz Edinaldo Gonçalves de Oliveira, educador social da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade apoiadora da causa. A empreitada envolve diretores, coordenadores pedagógicos e professores, contando com o apoio da prefeitura em parceria com a UFRB para a expansão da cultura quilombola a partir da escola.

Givânia Maria da Silva, quilombola de Conceição das Crioulas em Salgueiro, Pernambuco, e integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), não tem dúvidas que o fechamento das escolas afeta diretamente a possibilidade de implementação da educação escolar quilombola. “Nós já falamos a respeito desse tema no Ministério da Educação e agora vamos convocar uma reunião nacional para envolver os órgãos de controle na fiscalização dos problemas”, adverte.

Retomada da escola quilombola em Pedra Negra da Extrema, na Bahia. Crédito: Shirley Pimentel de Souza

Rumo às universidades

Em um país onde predominantemente o acesso às universidades públicas é facilitado para a elite branca que frequentou as renomadas escolas particulares, em um curto espaço temporal marcado pela administração do Partido dos Trabalhadores (PT), testemunhamos o aumento no número de pessoas negras, quilombolas e indígenas nos ambientes de produção da ciência brasileira. Entretanto, sem uma educação básica de qualidade e sem o ensino médio acessível nas comunidades, o funil para chegar aos bancos universitários se torna mais amplo.

Shirley fez a graduação no curso de Pedagogia na primeira turma de cotas raciais da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) em 2003. Agora, nos últimos seis anos, presencia as acaloradas discussões quanto às cotas para quilombolas e indígenas no ensino superior, algo que está tensionando positivamente as estruturas universitárias. “Os estudantes têm desafiado a universidade a produzir o conhecimento e olhar para os quilombos de uma outra forma. Não mais como comunidades que estão lá no passado colonial, atrasados. Vejo os quilombolas atuando na área de biologia, arquitetura, letras… Trazendo essa realidade das comunidades para os seus contextos de pesquisa e os professores estão tendo que buscar referências e estudar para saírem de suas caixinhas”, comemora. 

Ela menciona o olhar atento para as melhores estratégias de inserção, pois se trata de um público que vem sendo prejudicado ao acesso à educação desde muito cedo podendo ter um descompasso no acompanhamento durante as aulas na universidade. 

A sombra perceptível do racismo estrutural na sociedade brasileira, no pensamento do professor Tiago, é encarada de frente através da apropriação dos grupos marginalizados de seus diplomas universitários. “A universidade é forçada a discutir o racismo e perceber o que foi escravidão. Dessa forma contribuímos para a construção de uma sociedade antirracista”, avalia. 

“A universidade deve derrubar os seus muros e acolher os grupos sociais vulnerabilizados. No decorrer dos anos, temos trocado diversos saberes com as comunidades quilombolas por conta dessa abertura. Evidentemente, as estruturas nas universidades não estão preparadas para a recepção desses grupos que saem de suas comunidades a caminho dos centros de estudo”, continua o professor que divulga a UFRB como a única instituição a possuir no curso de Educação no Campo a disciplina ‘Educação Escolar Quilombola’ na grade curricular para atender as solicitações de quem habita o Brasil profundo.

*Jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF

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