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Crédito: Divulgação Editora UFPE
por Pedro Paz*
Recentemente, em João Pessoa, onde moro há seis anos, diversos homens foram flagrados, por câmeras de segurança, ao agredir uma mulher, geralmente sua companheira ou ex. Alguns casos ocorreram na frente de crianças. Eu não tenho a coragem de Luara Calvi Anic, de respirar fundo e clicar no ícone de imagem sensível, em redes sociais digitais como o Instagram, e assistir às cenas, talvez por ter vivenciado situações de violência doméstica durante minhas infância e adolescência.
Também talvez por isso e por ter formação jornalística, em 2017 pesquisei, no âmbito do curso de mestrado do programa de pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sob orientação do professor Pedro Benevides, a produção de notícias sobre possíveis crimes de feminicídio, na redação do telejornal local e vespertino JPB 1º Edição, da TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo em João Pessoa.
No desenvolvimento do meu estudo, foi fundamental um artigo da Ana Paula Portella, escrito em parceria com Stela Nazareth Meneghel, acerca dos conceitos, tipos e cenários dos feminicídios. Apesar de acompanhá-la em redes sociais digitais, principalmente por conta da sua militância em torno de questões centrais na cidade do Recife, como o Movimento Ocupe Estelita, e sua participação em grupos de mobilização urbana, como o de Direitos Urbanos no Facebook, não havia, ainda, me debruçado sobre sua tese de doutorado a respeito das configurações da violência letal contra mulheres em Pernambuco.
A tese virou o livro Como morre uma mulher?, uma adaptação do trabalho homônimo, aprovado em 2014, pelo programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O texto foi premiado em 2016, como melhor produção em nível de doutorado, no 5º Concurso Internacional de Teses sobre Segurança Pública, Vitimização e Justiça na América Latina e no Caribe, realizado pelo Centro de Excelência para Informação Estatística de Governo, Segurança Pública, Vitimização e Justiça do México. O estudo também recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes de Teses em 2015.
Não pude ir ao lançamento da obra na UFPB em 2023, e fiquei me perguntando se as mulheres continuam morrendo da mesma maneira, no que se refere à violência letal. Na minha pesquisa, os crimes de feminicídios selecionados pelo JPB 1º Edição apresentavam as principais características apontadas pelo Mapa da Violência 2015 – Homicídios de Mulheres no Brasil, também imprescindível para o meu trabalho. No período pesquisado, de 24 de abril a 20 de junho de 2017, houve casos da Grande João Pessoa ao sertão da Paraíba.
O local no qual aconteceram os assassinatos quase sempre era no domicílio da vítima ou de proprietário não informado ou em via pública, em localidade erma. O perfil das vítimas também não mudava muito: mulheres adolescentes ou adultas com recortes de classe e de raça ou cor não identificados, embora muitas estatísticas confirmem o maior número de mulheres pobres e/ou negras vítimas de feminicídio. Elas eram mortas, quase sempre, pelo companheiro ou ex. Os instrumentos utilizados eram exatamente os mesmos assinalados pelo Mapa: asfixia, estrangulamento, faca, arma de fogo e objeto contundente.
Quase dez anos após a publicação da tese da Ana Paula Portella, o cenário de insegurança para as mulheres aparentemente piorou no Brasil. De acordo com a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2023, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve 1.400 feminicídios em 2022, número que representou alta de 6,6% em relação a 2021, quando foram contabilizados 1.300 casos. Isso significa uma mulher morta a cada seis horas.
Em 2021, ao menos 4.473 mulheres foram vítimas de feminicídio ou feminicídio em 29 países e territórios na América Latina, segundo os últimos dados oficiais informados pelos países ao Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe (OIG), da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em novembro do ano passado, expôs números preocupantes sobre o feminicídio no mundo. Em 2021, foram 81,1 mil assassinatos de mulheres. Desse total, 56% foram mortas pelo marido, parceiro ou outro membro da família.
Digo aparentemente, no início da apresentação desses dados, porque essa alta, pelo menos no Brasil, pode não indicar uma mudança cultural para pior, no ponto de vista dos direitos humanos e na perspectiva de gênero; pode ter relação com o aperfeiçoamento da identificação e classificação do crime de feminicídio, por parte dos agentes de segurança pública e judiciário. Em alusão ao Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, no último 25 de novembro, resolvi entrevistar a Ana Paula Portella, que se apresentacomosocióloga.
Ao iniciar a entrevista, Ana Paula Portella, de pronto, teve muito cuidado ao responder à pergunta “Como morre uma mulher?” porque, no seu entendimento, é uma questão muito genérica e que pode, inclusive, induzir a erro ou má interpretação, porque seu trabalho trata, exclusivamente, de mortes violentas.
“É uma pergunta que tem o intuito de tentar quebrar o pensamento hegemônico, que havia no campo da sociologia, de acreditar que a morte violenta feminina acontecia apenas no contexto da violência doméstica. Hás muitas outras situações nas quais as mulheres são assassinadas, como no mercado de drogas ilícitas e familiar, não necessariamente envolvendo parceiro íntimo”, argumenta a socióloga.
Para Ana Paula Portella, os resultados da sua pesquisa podem ser aplicados a contextos semelhantes ao de Pernambuco, ou seja, às grandes cidades brasileiras, com extensas regiões metropolitanas e periferias, nas quais há uma cultura de legitimação da violência que favorece algumas condutas criminosas, com presença de facções criminosas e altas taxas altas de criminalidade e de desigualdades socioeconômicas.
Ana Paula Portella acredita que o Brasil não chegou ao nível “aceitável”, ou seja, o padrão que as Nações Unidas estabelece, que seria dez casos de homicídios, contando a população geral, para cada 100 mil habitantes, em um determinado período de tempo. Segundo a socióloga, apenas o estado de São Paulo enquadra-se nesse parâmetro; nos demais entes federativos, a proporção permanece mais alta.
“O que mudou foram os estudos e análises sobre o tema, especialmente sobre a vitimização da população negra e periférica, com informações novas sobre contextos específicos, com destaque para o estado do Ceará”, diz.
A socióloga compreende que a questão do feminicídio é complexa, porque conceitualmente há muitas controvérsias sobre seu significado exato e a amplitude das razões de gênero que o fundamentam. Embora teoricamente existam impasses, há o conceito utilizado pela legislação brasileira, que vem sendo aplicado nos casos de violência doméstica ou em que há razão de gênero explícita.
“Nos casos classificados pela Justiça brasileira, as razões envolvem o ciclo de violência doméstica. Os conflitos, já muito bem descritos pela literatura, começam com o ciúme e as tentativas de controle, que vão se intensificando e escalando, até que chega no momento que culmina no feminicídio. Eu uso o termo feminicídio para qualquer morte feminina, porque a questão de gênero opera em qualquer situação. Se a gente for pensar nos outros casos de morte violenta de mulheres, a gente vai ter dinâmicas específicas de gênero que operam nas diferentes situações”, explica.
Por sinal, em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu rejeitar a tese da legítima defesa de honra em crimes de feminicídio. A decisão foi unânime, pois seria uma tese arcaica, que reforça a ideia de submissão e de posse.
De acordo com a socióloga, no mundo da criminalidade, por exemplo, as hierarquias de gênero se repetem. As mulheres dificilmente são chefes de facção ou têm acesso a armamento pesado, capacidade de estabelecer estratégias ou enfrentamento. Geralmente estão em posições subordinadas a homens, fazendo tarefas para eles e em situação de maior vulnerabilidade.
Muitas vezes, ela conta, são mulheres casadas ou namorada ou filhas de homens que têm posição superior na rede criminosa. Portanto, têm menor capacidade de se defenderem. O mesmo acontece na violência familiar, quando sofre agressão de pai, irmão ou parente. Na concepção dela, é preciso analisar como o gênero opera em contextos familiares de hierarquia, quem tem mais poder. “Considero que as dinâmicas de gênero devem ser identificadas e analisadas em todos os contextos”, explica.
Ana Paula Portella chama atenção, inclusive, para os dados do Anuário, no sentido de que precisam ser analisados com mais cuidado, a fim de entender se o que está acontecendo no país é uma maior identificação e classificação de casos de feminicídio ou se realmente há um aumento do número de casos.
“Como a legislação é recente, requereu capacitação dos agentes de segurança e de justiça, para compreender como classificar os casos. Isso acontece aos poucos. O Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Ministério das Mulheres fazem essas capacitações junto às secretarias de segurança pública e tribunais de justiça. À medida que os profissionais são capacitados, conseguem caracterizar melhor o crime. Por exemplo, em um determinado ano, de um conjunto de 100 casos, identificam que 30 são feminicídios. Após um ano ou dois, com mais agentes capacitados, identificam 40 ou 50. Eu não tenho ainda muita segurança pra dizer se está acontecendo uma mudança cultural ou se é uma melhora na capacidade do Estado de identificar e classificar esses crimes”, reconhece a socióloga.
Com o intuito de auxiliar o Estado nessa tarefa, propõe modelo de análise que permite chegar a resultados de identificação e classificação, mesmo em um contexto de falta de informações importantes. Para isso, utiliza dados do SUS e técnicas estatísticas para caracterizar o contexto, identificando a situação na qual acontece a violência letal de mulheres.
“Uso a técnica estatística conhecida como regressão logística, para tentar identificar os fatores que determinam as diferentes situações de violência letal de mulheres. Não é muito simples para leigos, mas é de fácil manejo para quem é da área de pesquisa quantitativa e espero que esteja sendo útil para pesquisadoras que trabalham com esse tema no Brasil”.
Resumidamente, a regressão logística é uma técnica de análise de dados que usa estatística para tentar encontrar as relações entre dois fatores de dados.
Há fatores comuns e específicos que determinam a morte violenta de homens e mulheres, na lógica binária. Entre os comuns, a vida em áreas socialmente precárias, nas periferias das grandes cidades brasileiras. “A desorganização social facilita a resolução violenta dos conflitos. A gente nunca vai conseguir evitar a violência na sociedade. É naturalmente conflitiva e a gente continuará resolvendo os conflitos de diferentes maneiras, às vezes com mais violência e outras vezes com menos violência. O que tentamos continuamente é controlar o nível de violência, para que as sociedades sejam as mais pacíficas possíveis”.
Conforme Ana Paula Portella, na ausência de controles e normas que deslegitimem a violência letal, esses conflitos eclodem e a violência passa a ser uma forma legitimada culturalmente. “Não é à toa que a gente verifica, nessas áreas, uma grande valorização do uso da arma de fogo, da força, dos símbolos e imagens que as representam. Sendo assim, a violência passa a ser vista como uma espécie de pedagogia, como algo que ensina e define comportamentos”.
Essa pedagogia da violência educa crianças, mulheres. Faz com que as mulheres se conformem com seu papel de gênero e, em comunidades onde atuam grupos criminosos, reforçam e amplia o poderio destes grupos, que podem dominar inteiramente ou parcialmente uma área, exemplifica a socióloga.
“Há a valorização da virilidade, de um certo tipo de masculinidade, que conta muito no mercado sexual, afetivo e torna-se um valor. Estou simplificando bastante, mas explico isso nos capítulos iniciais do meu livro.
Com relação às mulheres, são determinantes as desigualdades de gênero, o patriarcado, os valores associados à masculinidade hegemônica, à virilidade e à ideia de que mulheres devem ser submissas aos homens. Tudo isso está na raiz de todas as violências contra as mulheres, mesmo aquelas que não acontecem em ambiente doméstico, segundo Ana Paula Portella.
Para ela, o Brasil tem um conjunto importante de políticas voltadas para o enfrentamento da violência contra as mulheres. Com relação à violência doméstica, sua recomendação é realmente implementar as que já existem, como a Lei Maria da Penha, a legislação de feminicídio, e resoluções das conferências de políticas para mulheres, com participação e controle social, e as que já foram aprovadas pelo congresso nacional.
“Algumas já foram implementadas em muitos municípios e estados, como a rede de proteção para vítimas e famílias e as medidas do judiciário para afastar o agressor das vítimas e garantir a sobrevivência dessas mulheres. Há muitas propostas boas, mas precisam ser integralmente aplicadas”.
Sobre outras situações de violência nas quais a mulheres também morrem, as recomendações são muitas. “Acho que a gente ainda tem um caminho enorme para percorrer. Precisamos de diagnósticos locais para compreender de que forma essas violências se expressam em diferentes contextos e ter um olhar diferenciado e com prioridade máxima para mulheres negras, pobres e indígenas. A gente compreende muito pouco essas dinâmicas”.
Além desses diagnósticos específicos, Ana Paula Portella defende uma articulação das ações de enfrentamento. “É preciso ter políticas integradas. Não é mais possível ter um campo de políticas para mulheres e outro de segurança, que trata de criminalidade, onde a questão da mulher é apenas uma parte. Esse modelo não funciona mais. É preciso integrar com as políticas de educação, saúde, de moradia digna, de urbanização. Se a precariedade social é um dos fatores que determina a violência letal, as políticas urbanas têm papel imenso na superação dessa precariedade. Existem várias experiências no mundo inteiro que demonstram a eficácia dessa integração”, conclui a socióloga.
*Pedro Paz é jornalista, doutorando em Antropologia na UFPB e vencedor da edição 2023 do prêmio Cristina Tavares de Jornalismo.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.