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Foto: Divulgação
O que é a polêmica nas redes sociais senão uma eficiente ferramenta de evaporar os debates, transformados em argumentos pingados em tuítes, posts, stories, comentários? A internet pode tanto ser um campo fértil quanto minado quando se trata de debates de ideias.
Longe de defender uma tese – ou criticar beleza, funcionalidade ou serventia de qualquer arte – este texto pretende mostrar como a obra “Diva”, da artista visual pernambucana Juliana Notari, escancarou a importância de um debate que vai além da própria obra. Lembrando que a vulva-ferida aberta na terra tem 33 metros, 16 de largura e 6 de profundidade construída em uma antiga usina canavieira, em Água Preta, na Mata Sul de Pernambuco, no local onde hoje funciona a Usina da Arte.
A partir da divulgação, por Juliana, de fotos da obra terminada e do processo de construção, uma série de críticas surgiram de campos diversos. Se por um lado há pessoas trans que questionam a leitura transfóbica que a obra pode evocar, há também críticas sobre as implicações ambientais, éticas e históricas da realização da obra naquele local. Também o racismo e os resquícios da colonização viraram tema de debate.
A reação conservadora, talvez a mais imediata, veio em forma de ataque à artista. Um ponto em comum possível de vislumbrar é que o ataque à Juliana é misógino, machista e sexista e se assemelha às agressões que muitas vezes mulheres trans ou homens que exercem feminilidade em seus atos também sofrem.
Talvez como alguém que avança em terrenos desconhecidos, Juliana não imaginava a repercussão que a obra tomaria. Ela sabia, sim, que queria provocar as feridas nunca cicatrizadas da violência praticada contra as mulheres, seja na forma de agressões, seja na naturalização da invasão de corpos com vulva.
“É uma vulva-ferida, mais ferida do que vulva, que abre feridas históricas, coloniais do brasil, questão do machismo, patriarcado, da terra, que está ligado ao massacre dos povos originários, da relação com natureza. Abrir essa feridas é o que a gente tem que fazer, senão você resume a uma buceta esquerdopata na montanha”, diz Juliana.
Ainda assim, sobre as duas principais críticas que recebeu, Juliana afirma achar importante a complexificação e qualificação do debate a partir da obra, mas deseja que não recaia sobre ela e sobre “Diva” a responsabilidade de responder sobre o racismo e elitismo do mundo das artes. São também feridas, ela diz.
“Eu, como uma artista branca naquele contexto, tenho plena consciência de que. na hora que eu boto uma foto daquela. de certa forma eu reforço esse sistema”, diz, e completa que “embora tudo ali tenha sido muito legal porque a gente levou emprego para a região, a relação com as pessoas foi de família, ainda existe a divisão social que transcende, não tinha como fazer diferente. Foi o engenheiro que contrata aqueles trabalhadores”.
“Eu ia pegar pessoas brancas, mulheres e capacitar? Arte também tem o alcance dela, faz parte da sociedade”, questiona e, ao mesmo tempo, responde algo que não parece ainda bem resolvido. Apenas alguns dias após a explosão desse debate, ela reconhece que essa é uma ferida não mexida. “Aquela foto que eu estou trabalhando e tem os trabalhadores com a enxada, fazendo o trabalho duro. Isso levanta um debate que é uma ferida do Brasil e a arte não está apartada do social, faz parte da sociedade”.Como Juliana, que iniciou um movimento de autocrítica, outras artistas vem se posicionando sobre o tema, o debate e também sobre a obra e o papel de pessoas brancas no universo artístico.
Ela enxerga que a própria região em que a Usina está localizada, a zona da mata, é um espaço em que uma ferida como essa é ainda mais brutal. “Há 20 anos eu já tenho essa vulva ferida no meu processo de trabalho. A partir do momento que ela vai para aquele contexto na zona da Mata Sul, tem a história da escravidão, tem o desmatamento, tem a questão feminina das mulheres, do patriarcado”.
Ela participou da segunda edição (2019) do Projeto de Residências Artísticas, fruto de parceria entre o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – Mamam (Recife, Pernambuco) e a Usina de Arte (Água Preta, Pernambuco) e, daí, nasceu Diva, que dá continuidade a um tema recorrente na trajetória da artista visual. No entanto, ela é a primeira mulher a ser contemplada para essa residência.
“Quando se abre a ferida do gênero, lá dentro também estarão as feridas de raça e classe”, resume a artista visual Ianah Maia. Em suas redes, ela escreveu nos últimos dias sobre a “polêmica” e as camadas de questões que surgiram aos poucos.
Para ela, a obra já ultrapassou o que era a ideia inicial e destaca a importância de poder debater, a partir disso, questões como racismo e outras. “Quando a gente, artista, resolve expor nossas questões internas para o mundo a gente revela muito mais do que a nossa intenção traz. Acho que nada disso foi proposital, acho que tudo isso revela o inconsciente de uma pessoa que vive em um universo em que talvez essas discussões todas não sejam primeiro plano”, argumento.
As críticas levantadas nas redes que sugerem a reprodução de racismo e exploração de negros foi catalisada pela imagem em que Juliana aparece numa foto e os trabalhadores estão atrás com ferramentas, cavando o buraco.”Ela acabou revelando algo que talvez estivesse fora do campo consciente dela. Se a gente pensa na branquitude pernambucana, que é tradicionalmente colonial, talvez ela não tivesse mesmo enxergando que tivesse qualquer problema nos trabalhadores serem usados como ferramenta e, por isso, não nomeados”, diz Ianah.
Para Bruno Albertim, jornalista, curador e crítico de arte, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, a obra de Juliana, por todas as questões levantadas até então e dado o alcance da repercussão já é um divisor de águas e ganhou vida própria.
“Uma grande obra de arte é um catalisador, mesmo que inesperado. Eu acho que a obra de Juliana independentemente de discussões mais ou menos estéticas, de gosto, de linguagem, já tem esse grande alcance e provocou uma série de reações”, defende.
Ainda assim, ele aponta chaves de leitura importante, como a misoginia e o fascismo como reação. “Ela é muito libertadora, por um aspecto, porque traz a chancela de um símbolo muito forte para que haja confirmação dessa regência feminina, mas também acaba trazendo muito do fascismo cotidiano que estava bastante escondido por uma série de pudores que começam a cair”, diz.
Para ele, o debate que iniciou nas redes sobre o racismo e as outras questões precisaria ser estrutural e não individualizado na figura e na obra de Notari. “Essa é uma realidade de um Brasil que ela vive. Ela não tem como pegar um bisturi e passar na realidade brasileira para fazer uma obra que se dê em paralelo ao mundo real”, pontua.
Segundo ele, a poeira ainda vai baixar e Diva tem o potencial de mobilizar debates importantes. Nesse sentido, se aproxima de uma leitura fundamental, também observada por Ianah tanto de um lado reacionário, como de um campo progressista e artístico. “Isso vale tanto para questões reacionárias, mas também para o meio artístico. Porque eu senti reações de quem gostou do trabalho sem conseguir aceitar críticas minimamente razoáveis. Isso revela muito sobre o universo da redes social e como estamos acostumados a lidar um com o outro”, diz Ianah.
Do debate, que não reste a interdição da crítica – não a artística, propriamente – mas a social e política daquilo que foi exposto não intencionalmente pela artista. Se há um caminho a percorrer, que seja o de retirar tudo que apodrece e infecciona para poder sarar e seguir em frente.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.