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A economista Laura Carvalho tem se consolidado como uma referência na reflexão sobre os caminhos da economia brasileira e sua relação tumultuada com o mundo da política. Em 2018, no seu primeiro livro (Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico, Todavia), ela traçou o percurso que levou o país da euforia a uma das maiores crises da sua história em curtíssimo tempo, do segundo mandato de Lula até o impeachment de Dilma. Agora, acaba de lançar, a quente, o livro Curto-Circuito: o vírus e a volta do Estado sobre o papel do Estado e os impactos econômicos do coronavírus no Brasil. O texto faz parte da Coleção 2020: Ensaios da Pandemia, da editora Todavia.
Laura Carvalho é doutora em economia pela New School for Social Research e professora da Faculdade de Economia e Administração da USP. Foi colunista do jornal Folha de S.Paulo e atualmente escreve para o Nexo.
Em entrevista para a Marco Zero Conteúdo, ela analisa o aumento da demanda por mais Estado a partir dos desafios impostos pelo enfrentamento à Covid-19, o quanto esse novo cenário tensiona a aliança das elites econômicas com o governo Bolsonaro, e defende a necessidade de que a Frente Ampla de oposição ao atual presidente tenha como ponto de partida um denominador comum de política econômica que garanta os papéis do Estado definidos na Constituição de 1988 e até avance em novos consensos, como o de uma reforma tributária.
“Eu acho que a gente consegue ter um denominador comum na construção de uma Frente Ampla para afastar ou retirar o presidente Bolsonaro. Que é no momento a Frente Ampla mais urgente. Há várias frentes possíveis e acho que aquela de 2022 ainda está muito distante e que ela é diferente dessa frente que hoje se propõe e que envolve uma união em torno do impeachment. Essa união em torno do impeachment me parece que ela também tem que ter um denominador comum no sentido de como será esse governo, que tipo de política econômica teremos”.
Para Laura, a Frente Ampla deve agregar tanto as pessoas e grupos que apoiaram o golpe parlamentar contra a ex-presidenta Dilma Roussef (PT), em 2016, quanto os que foram vítimas do golpe. Uma política econômica pactuada poderá dar legitimidade democrática a um governo que siga até 2022. “Depois disso, pode não ter uma frente eleitoral, eu acho que aí pode ter disputa de projetos distintos e é saudável para a democracia que seja assim”, avalia.
Segue a entrevista:
Você tem dito
que a pandemia fortaleceu a visão de que é preciso mais e não
menos Estado. No seu livro Curto Circuito – o vírus e a volta do
Estado (Todavia, 2020) lançado recentemente você cita 5 funções
do Estado. Afinal, de que Estado exatamente nós estamos falando?
Há uma série de funções do Estado que se tornaram cristalinas com essa pandemia e que eu tento mostrar não só pensando no que a gente teve de possibilidade por conta da existência de alguns instrumentos, mas também coisas que a gente pode pensar pro futuro e até erros do passado. O primeiro é o papel de estabilizador do Estado. Todas as grandes crises econômicas geram essa postura defensiva do setor privado que faz com que famílias e empresas cortem os seus gastos e o Estado se faça necessário como o único motor possível para atenuar os efeitos da crise. Pensando no futuro, o papel estabilizador do Estado depende de algo que a gente até na pandemia aliviou, por conta de um decreto de calamidade pública, que acabou retirando uma série de restrições e regras orçamentárias que o Estado tem que cumprir. Precisamos de uma reformulação do regime fiscal brasileiro, que é composto por regras como o teto de gastos e as metas de resultados primários.
A segunda função é a do Estado investidor em infraestrutura, como saneamento básico, por exemplo. O setor privado até investe em infraestrutura em lugares em que isso já gera lucro, mas está na natureza desses investimentos o fato de serem de alto risco e custo muito elevado e de retorno de muito longo prazo, o que acaba afastando os investimentos em infraestrutura em localidades e regiões mais pobres. Isso vale também para transporte urbano, para moradia, vários elementos que têm aparecido nessa pandemia como vetores de desigualdade no contagio.
O terceiro papel é o do Estado protetor e aí eu discuto como que as nossas redes de proteção social se mostraram insuficientes nessa crise, inclusive a resposta com o auxílio emergencial como uma maneira de lidar com essa massa de vulneráveis, trabalhadores informais, pessoas que não têm nenhum colchão de renda e que, num momento que você precisava que ficassem em casa, isso se faz ainda mais presente e dramático. Eu debato a diferença entre as propostas.
Diferenças bem
grandes entre o campo progressista e o ministro Guedes.
Sim, a proposta da renda básica universal, ela é muito diferente da proposta do ministro Paulo Guedes de um imposto de renda negativo como substituto de outros papéis do Estado de bem-estar, então ali se pensa que as pessoas vão ter um voucher, ou seja, um cheque, um dinheiro, e vão lá adquirir os serviços de educação e saúde privada. É algo muito distinto de se pensar a renda básica universal como um direito a não ser pobre, um direito à dignidade, com efeitos, inclusive, de poder de negociação no mercado de trabalho, não aceitar condições indignas de trabalho, coisas que estão em debate no mundo hoje, dadas as transformações que a gente tem visto nas relações trabalhistas. Eu discuto como é que a gente poderia financiar uma rede como essa e isso inclui uma discussão pelo lado da tributação mais justa.
O quarto é o Estado prestador de serviço. E ai talvez seja o que mais foi valorizado nessa pandemia, sobretudo o SUS, que se mostrou essencial, mas que também mostrou que tem insuficiências de financiamento, desigualdades no acesso. O que eu discuto nessa parte do livro tem a ver também com qual é o modelo que a gente deseja ter de Estado de bem-estar social e, com isso, qual é o tamanho que a sociedade brasileira quer que esse Estado tenha porque é evidente que para que a gente consiga prestar serviços de qualidade, a gente também precisa arrecadar mais recursos e isso significa que a gente vai ter que ter uma carga tributária mais próxima de países que têm esses serviços.
E qual o
papel da quinta função, do Estado empreendedor?
Eu uso o termo da Mariana Mazzucato, que está relacionado ao papel do Estado no desenvolvimento tecnológico e científico das cadeias produtivas do país. A gente viu na pandemia uma discussão sobre reconversão industrial. Sobre a falta de capacidade de produzir insumos médicos, como respiradores, máscaras, e até testes. Enfim, uma série de insumos que ficaram escassos e dependem de matéria-prima que hoje só na China se produz. Fica claro que os investimentos em ciência e no desenvolvimento tecnológico do setor privado e público são coisas que têm que ser planejadas e que dependem de uma visão de longo prazo.
No século XXI, a gente ainda precisa do Estado para pensar essas políticas, mas essas políticas precisam ser acopladas às demandas da sociedade, às outras quatro funções, então as próprias carências e combate à desigualdade que as outras funções requerem podem servir de vetor também para desenvolver tecnologias. O complexo industrial da saúde é um exemplo completo disso.
O quanto essa
demanda por mais Estado coloca em xeque a política ultraliberal do
ministro Paulo Guedes? Você fala que a chegada de Bolsonaro ao poder
é fruto de uma aliança entre o autoritarismo militarista e a agenda
de fortalecimento do mercado. Como você acha que as elites
econômicas podem flutuar do ponto de vista do apoio político a
Bolsonaro com a mudança desse cenário.
O título do livro Curto-Circuito tem um duplo sentido. O primeiro é o curto-circuito macroeconômico que a pandemia gerou, quebrando o elo entre produtores e consumidores, impedindo a oferta e também a demanda. Mas o outro sentido do título do livro é justamente o curto-circuito que foi provocado no bolsonarismo e no pensamento econômico, de alguma maneira, a partir de uma demanda de um tipo de atuação que ia frontalmente contra aquilo que havia sido defendido dentro da plataforma eleitoral do Bolsonaro, mas também até anteriormente. Já estávamos há 5 anos com um tipo de política econômica cujo foco principal era a redução do papel do Estado, dos gastos e do tamanho do Estado na economia. Fica claro que essa posição era insustentável e incapaz de lidar com os desafios apresentados por uma crise como essa. O que obrigou o governo a ter algum tipo de atuação, que é claro que foi insuficiente e equivocada em várias áreas. Mas que deixou evidente que mesmo um governo com um discurso de Estado Mínimo teve que ter uma resposta até mesmo de expansão de gastos.
A questão que está
colocada, na verdade, é se esse pilar fundamentalista de mercado do
bolsonarismo será mantido ou se ele será abandonado. Esse pilar foi
útil para atrair elites econômicas em 2018, mas essas elites
econômicas começaram a abandonar o barco do bolsonarismo sobretudo
por conta das respostas à pandemia e à própria saída de Sérgio
Moro. Tanto a saúde quanto a corrupção funcionaram como um estopim
para o desembarque de parte da elite econômica do país, justamente
onde Bolsonaro logrou uma maioria, um percentual maior de votos nas
eleições presidenciais.
Aí fica a dúvida se o governo Bolsonaro vai tentar trocar essa base e apostar em algum apelo popular, seja a partir da concessão de benefícios mais vultuosos, a partir dessa experiência do auxílio emergencial; seja a partir do discurso que tenta transferir a culpa da crise econômica às medidas tomadas por governadores, à postura da imprensa e a todos aqueles que respeitam as orientações da Organização Mundial da Saúde.
Acho que, nesse momento, o bolsonarismo está numa encruzilhada. De um lado, o Guedes quer continuar no ano que vem na agenda anterior, quer voltar a fazer cortes agressivos de gastos, e reformas ainda mais aceleradas, privatizações… O que seria trágico do ponto de vista da desigualdade e da situação econômica do país. Estaremos com uma economia em frangalhos e esse tipo de estratégia muito agressiva pode ser um golpe fatal, colocar uma massa ainda maior de pessoas numa espiral de pobreza.
Mas, por outro lado, há a opção de tentar mudar a orientação da política econômica para uma atuação maior do Estado e uma política que gere algum resultado concreto para a população poderia servir para conquistar uma base social pro bolsonarismo e, portanto, uma base social pro seu projeto autoritário, o que nos deixa preocupados. Na verdade, nenhuma das duas situações é sem risco para a democracia. Ambas carregam riscos enormes para a democracia.
Temos debatido muito no Brasil sobre a crise política, a aliança do governo Bolsonaro com o Centrão, as ameaças ao STF, a ação dos grupos de extrema-direita pró-intervenção militar. Mas estamos falando pouco de como a economia pode influenciar essa crise. Em suas análises você sempre relaciona a economia à política. E aí me vem a frase “É a economia, estúpido” quando a gente discute a crise política nacional, especialmente porque sabemos que a economia é um pilar importante de sustentação de qualquer governo. Como é que você vê a crise que vem pela frente e como a economia pode impactar o jogo político?
É curiosos você citar essa frase porque tem até um trecho do livro em que eu menciono a expressão “É a economia, estúpido” para falar que, no momento, “É a pandemia, estúpido”, que a pandemia agora é a origem da crise econômica. Sem combater a pandemia não teremos o combate à crise econômica, e a pandemia é a origem da crise política que se exacerbou. Tudo depende não só da economia, mas dependente do que vai acontecer com esse contágio pelo vírus que é o que está na raiz dessa crise econômica. É evidente que, num primeiro momento, essa tentativa de transferir a culpa da crise econômica, que será a maior da história e que vai durar muito tempo, para os governadores e as medidas quarentenárias de forma geral, é uma tentativa que esbarra na realidade que o número crescente de mortes tende a trazer para a população. Aqueles que são mais vulneráveis à crise econômica são também os mais vulneráveis à crise na saúde e isso, ao meu ver, gera um custo muito alto para o governo e torna difícil essa estratégia que a gente traçou de se tentar conquistar uma base social por meio de programas de transferências de renda ou de outras políticas com maior resultado. Esse é um primeiro ponto.
O segundo ponto é que é também a pandemia que vai dar o cenário dos próximos anos. Não basta você ter a reabertura e o relaxamento das medidas quarentenárias para que a economia deslanche. Enquanto houver um risco e uma insegurança em relação ao contágio pelo vírus, você não vai conseguir fazer com que as pessoas retomem as suas atividades de consumo e isso significa que você não terá a possibilidade de retomada pelo lado da demanda e também não terá pelo lado da oferta, porque enquanto os produtores não tiverem a segurança de que não haverá novas ondas e novos surtos de contágio é difícil tomar decisões de investimento e de produção.
Tudo indica que a gente vai ter um quadro que se já não era fácil – e é bom lembrar que a economia brasileira já vinha de uma situação de estagnação, de muita fragilidade, ao contrário de outros países ricos que vinham de uma taxa de desemprego muito baixa – vai piorar nesse ano que vem e acho que isso gera um desgaste progressivo do governo ainda mais numa população que já vinha frustrando suas expectativas de retomada desde 2015 e 2016, como eu tratei no Valsa Brasileira (Todavia, 2018). Essa sucessão de frustrações, inclusive, explica esse voto no Bolsonaro como algo que pudesse ser capaz de mudar, explica também a aposta no impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef (PT), e nenhuma dessas coisas resolveu a crise econômica porque a agenda não mudou na economia e tudo indica que Bolsonaro também vai pagar o custo. Ele vai tentar transferir essa responsabilidade, mas não deve conseguir fazer isso por muito tempo.
Eu vi uma live em que você defendia a definição de uma pauta mínima no campo econômico para a formação da Frente Ampla, enquanto todo mundo fala em bases consensuadas no campo da política. Que propostas econômicas seriam a base de consenso mínimo pró-Frente? Sem esse pacto, os liberais podem ganhar o protagonismo num segundo momento e, mesmo com a queda de Bolsonaro, manter de pé a agenda ultraliberal?
Eu acho que a gente consegue ter um denominador comum na construção de uma Frente Ampla para afastar ou retirar o presidente Bolsonaro. Que é no momento a Frente Ampla mais urgente. Há várias frentes possíveis e acho que aquela de 2022 ainda está muito distante e que ela é diferente dessa frente que hoje se propõe e que envolve uma união em torno do impeachment. Essa união em torno do impeachment me parece que ela também tem que ter um denominador comum no sentido de como será esse governo, que tipo de política econômica teremos. No impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, o pacto que se fez para a derrubada da ex-presidenta envolveu o programa A Ponte para o Futuro, do PMDB, que era aquele programa da reforma trabalhista, da previdência, o teto de gastos e assim por diante.
Agora, precisamos de
um programa que seja mínimo e aglutine tanto participantes que
estiveram nesse golpe parlamentar de 2016 quanto pessoas que sofreram
esse golpe. Essa frente para a retirada de Bolsonaro exige a
participação de ambos os setores. Mas teria que, é claro, ter um
programa que acomode minimamente ambos os setores. O que não é
fácil necessariamente, porque a política econômica é o que opõe
esses projetos, é uma das coisas principais que opõem esses
projetos eleitoralmente.
Qual a base para
esse acordo?
É possível a gente partir de um mínimo e eu acho que a Constituição de 1988 dá um bom norte pra esse mínimo porque o que tem ocorrido nos últimos anos é um ataque, um desmonte de uma série de direitos que estavam postos na Constituição de 1988. Então, se a gente consegue pactuar alguma coisa que, pelo menos, preserve esses papéis do Estado previstos na Constituinte e, claro, eventualmente até acrescente coisas que têm ganho consenso na sociedade como, por exemplo, uma reforma tributária, eu acho que poderíamos ter um governo com legitimidade democrática para ir até 2022, que é o que a gente precisa imaginar agora. Depois disso, pode não ter uma frente eleitoral, eu acho que aí pode ter disputa de projetos distintos e é saudável para a democracia que seja assim.
O debate que sempre acontece nas situações de grave crise econômica é o do chamado fim do neoliberalismo. Você cita isso no capítulo conclusivo do seu livro. Faz a distinção das origens e efeitos da crise financeira de 2008 em relação à pandemia de coronavírus em 2020. Antes como agora, vem à tona o discurso de fim do neoliberalismo por grupos que me parecem excessivamente otimistas.
Me parece que a crise de 2008 já tinha mesmo chacoalhado as bases do sistema e trazido um questionamento crescente a essas ideias de mercados autorregulados como a melhor forma de alocar os recursos da sociedade. Trazido o tema da desigualdade para uma centralidade no debate, trazido mudanças na atuação dos bancos centrais e dos governos ao redor do mundo e tem até o argumento no livro que essas transformações de 2008 lentamente contribuíram para que a gente nessa pandemia tivesse uma resposta, ainda que insuficiente, para evitar o colapso e o escancaramento das desigualdades. Uma resposta significativa e um peso dado para essas desigualdades na maneira como a pandemia está sendo analisada e observada muito maior do que teria ocorrido se a gente não tivesse passado esses dez anos amadurecendo essas ideias.
Essa é a parte boa, que talvez a gente tenha uma tendência a uma mudança de paradigma e que essa tendência deve ser exacerbada e até acelerada com a pandemia, mas isso não quer dizer que vamos caminhar automaticamente para um mundo pós-pandemia mais justo e sustentável.
As pessoas tendem a vislumbrar o mundo pós-pandemia como algo descolado daquilo que ocorre durante a pandemia e, na verdade, não é. Seguimos muito distantes da transformação social se a gente percebe como não estamos sendo capazes na pandemia – que está no auge – de responder à altura e de evitar uma tendência forte de concentração de renda e riqueza que virá como resultado da crise, nem de evitar a morte de tantas pessoas pobres.
Temos a tendência que é favorável a uma mudança e a uma transformação social, uma tendência lenta, mas a gente tem uma crise que abala as estruturas concentrando ainda mais a renda, o que também bate de frente com esse objetivo porque quanto mais concentrada é a renda e a riqueza mais concentrado o poder e, assim, mais difícil será implementar uma mudança prática nos governos ao redor do mundo.
Muitas vezes você tem tendências contraditórias e as bases sobre as quais essas tendências irão operar não são as mesmas e o resultado disso ainda está muito indefinido. Eu evito fazer esse tipo de futurologia, o que eu consigo é identificar que você tem elementos contraditórios até nesse quadro atual e que certamente levarão alguns países para uma direção e outros países para cenários ainda piores de autoritarismo e de crise democrática.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República