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Governo de Pernambuco distorce pesquisa de Harvard para celebrar resultados na pandemia

Raíssa Ebrahim / 01/07/2021
Paulo Câmara comemora pesquisa de Harvard que aponta Pernambuco com o melhor resultado no enfrentamento à covid-19 no Brasil

Crédito: Reprodução de Vídeo

A revista científica Nature, uma das mais importantes do mundo, publicou um estudo da respeitada demógrafa e pesquisadora de Harvard (EUA) Márcia Castro, junto a colaboradores, sobre a redução da expectativa de vida no Brasil após a covid-19. O Governo do Estado repercutiu o assunto em um informe à imprensa destacando, no título, que a pesquisa “aponta Pernambuco com o melhor resultado no enfrentamento à covid-19 no Brasil”. O governador Paulo Câmara (PSB) também gravou um pronunciamento em vídeo e, em momento nenhum, falou do recorte e do contexto dos dados que ele apresentou. O estudo não conclui o que destacou a gestão.

“Houve um erro de interpretação”, aponta a brasileira Márcia, em resposta à Marco Zero. A pesquisa da universidade, na verdade, nem é sobre o desempenho na pandemia, mas, sim, sobre estimativas teóricas de padrão de mortalidade observando-se e fixando-se as condições do momento. O estudo levantou essas estimativas ao nascer e também aos 65 anos, para homens e para mulheres, em todos os estados brasileiros, levando em consideração todo o ano de 2020 e uma pequena parte de 2021, entre janeiro e abril, ainda preliminar – justamente a que o governo estadual usou para repercutir positivamente o assunto.

Os números mostrados, decorrentes da maior tragédia sanitária do século, nem deveriam ser motivo de comemoração. Numa pandemia, ninguém sai ganhando, não existe uma competição entre ganhadores e perdedores. Não há o que comemorar do ponto de vista ético e humanitário. Já são, desde o início da pandemia, 17.720 mil vidas perdidas no estado.

As principais conclusões de Harvard foram que, em 2020, a região Norte teve as maiores reduções de expectativa de vida, com destaque para o Amazonas. Já o Rio Grande do Sul, teve um leve aumento, foi onde a pandemia chegou mais tarde. Em geral, o sexo masculino apresentou quedas maiores que o feminino. Os pesquisadores estimam que o Brasil sofreu um declínio da expectativa de vida ao nascer, em 2020 de 1,3 anos, nível de mortalidade não verificado desde 2014. A redução da expectativa de vida aos 65 anos, em 2020 foi de 0,9 ano, recolocando o Brasil nos níveis de 2012.

De fato, como coloca o governo estadual, Pernambuco teve a menor redução na expectativa de vida nos primeiros quatro meses de 2021. Todavia, esse é apenas um recorte do levantamento e com dados que são preliminares. A própria pesquisa chama a atenção para isso ao dizer que “As estimativas ainda podem sofrer de notificação incompleta e/ou atrasada de mortes, especialmente aquelas para 2021, com variação potencial na integridade entre os estados”. De 11 tabelas apresentadas nas informações suplementares da pesquisa, o Governo do Estado destacou apenas uma, justamente a que tem dados provisórios.

As mortes por covid-19 são registradas pela data de notificação, e não pela data de ocorrência. Isso significa que, no boletim pernambucano de um determinado dia, podem ser contabilizados óbitos de meses atrás. Por exemplo, o boletim do dia 18 de junho deste ano trouxe mortes de 9 de agosto do ano passado. O do dia 28 deste mês, informou óbitos de 23 de setembro de 2020.

Olhando-se o ano de 2020 completo, na comparação com 2019, também completo, vê-se que há 17 Estados com menores quedas da expectativa de vida que Pernambuco, na taxa ao nascer, e 16 Estados na taxa, a partir dos 65 anos. Confira detalhes dos números ao final da matéria.

Márcia detalha que o motivo de a equipe ter levantado os dados por Estado foi para analisar até que ponto havia diferenças regionais nas expectativas de vida, que refletem o que vem sendo visto na quantidade de mortes. Um reflexo também dos padrões de desigualdades regionais do País, de renda, pobreza, acesso à infraestrutura e disponibilidade de médicos e leitos hospitalares.

Ela confirma que o Governo Estadual focou apenas em 2021, que é “um dado provisório, porque só tem quatro meses”. Márcia lamentou pela situação do Brasil e mostrou um certo desconforto diante das comemorações do governo: “Todos os números refletem uma situação péssima, preocupante”.

“Quando você olha para 2021, todos os estados do Nordeste perderam menos anos do que em 2020. A gente faz uma reflexão porque a região Norte perde muito em 2020 e no parcial de 2021”, detalha Márcia, chamando a atenção para uma reflexão possível sobre o que o Nordeste fez de diferente do Norte e como usar isso de lição. A própria pesquisa destaca que os governadores nordestinos adotaram “medidas mais rigorosas de distanciamento físico, em direta oposição às recomendações do presidente”.

Queda nas expectativas de vida

Esse tipo de levantamento é importante para mostrar o quanto a pandemia impacta na longevidade da população e na diferença entre homens e mulheres. Entre 1945 e 2020, a expectativa de vida do brasileiro ao nascer saltou de 45,5 anos para 76,7 anos, uma média de quase cinco meses por ano, como mostra o material. Muitos países da América Latina experimentaram esse ritmo mais rápido da melhora da mortalidade durante esse mesmo período, graças à saúde pública e ao progresso da ciência.

Segundo a pesquisa de Harvard, em 2020, na comparação com 2019, Pernambuco teve uma queda de 1,88 anos na expectativa de vida ao nascer, sendo maior para homens (2,07) do que para mulheres (1,56). A média do Brasil foi de 1,31, menor, portanto, que a local. Já para a expectativa de vida aos 65 anos, houve redução de 1,28 anos, novamente com mais impacto sobre o sexo masculino (1,48) do que sobre o feminino (1,05). Nesse caso, a média do Brasil foi de 0,94, também menor que a local.

Já no recorte entre janeiro e abril, portanto preliminar, mas que o governo estadual escolheu para destacar, Pernambuco teve uma redução de 0,78 ano, sendo 0,78 para eles e 0,76 para elas. A média do Brasil ficou em 1,78. Projetando a expectativa de vida aos 65 anos, Pernambuco apresenta redução de 0,46 ano, com 0,49 para eles e 0,44 para elas. A queda média entre os Estados brasileiros foi de 1,05.

O que diz o Governo de Pernambuco

O Governo do Estado publicou uma nota, nesta quinta-feira, 1 de julho, destacando, desta vez, não o título da divulgação enviada na quarta, dia 30, à imprensa (“Pesquisa de Harvard aponta Pernambuco com o melhor resultado no enfrentamento à Covid-19 no Brasil”), mas, sim, o trecho inicial do release, que fala do recorte dos dados (“Pernambuco foi o Estado brasileiro com a menor diminuição na expectativa de vida média de seus cidadãos, quando analisadas as taxas de mortalidade entre os meses de janeiro e abril de 2021”).

Confira a nota na íntegra:

O Governo de Pernambuco divulgou ontem a pesquisa: Redução na expectativa de vida no Brasil depois da Covid-19, realizada pela Universidade de Harvard e publicada pela revista científica Nature. Na primeira frase do release enviado à imprensa está destacado: “Pernambuco foi o Estado brasileiro com a menor diminuição na expectativa de vida média de seus cidadãos, quando analisadas as taxas de mortalidade entre os meses de janeiro e abril de 2021”, deixando assim bem claro o período a que se refere o texto.

Sobre a relação entre o resultado encontrado na pesquisa e o desempenho dos estados, está destacado no primeiro parágrafo da página 2 da pesquisa: “No Nordeste, contudo, as reduções estimadas na expectativa de vida em 2020 são menores do que no Norte. Governadores dessa região (Nordeste) impuseram as mais rigorosas medidas de distanciamento, na direção oposta das recomendações do presidente”. Além do release, a íntegra do estudo foi encaminhado à imprensa para que os repórteres pudessem tirar suas próprias conclusões.

A citada pesquisa só referenda o que dados disponíveis no Datasus ou em publicações semanais da Organização Panamericana de Saúde vêm demonstrando durante todo o ano de 2021 que, considerando a mortalidade, ou seja avaliando os estados que mais salvaram vidas humanas nessa pandemia, Pernambuco sempre aparece nos primeiros lugares.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com