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Homens trans lutam por reconhecimento e serviços de saúde

Maria Carolina Santos / 28/01/2019

Bandeira trans. Crédito: Observatório do Terceiro Setor

As histórias de vida têm pontos em comum. Na infância, vestidos e bonecas são preteridos por carrinhos e brincadeiras na rua. Na adolescência, a puberdade vira um peso: a desconexão com um corpo em plena transformação muitas vezes leva à depressão – e até a ideias suicidas. Na transição para a idade adulta, muitos assumem a luta contra uma sociedade amplamente transfóbica. A aceitação se torna uma bandeira por si só. Para o homem trans, existir já é um ato político.

Neste dia da visibilidade trans, a Marco Zero Conteúdo apresenta em três matérias as histórias de homens trans, suas lutas e como está o atendimento de saúde para os transexuais de Pernambuco.

“Somos uma população muito marginalizada”, diz Leonardo Tenório, um dos coordenadores da Associação dos Homens Trans e Transmasculinizados (AHTM) e um dos pioneiros no ativismo trans na área de saúde em Pernambuco. “Sofremos muito preconceito e ninguém fica sabendo. É como se fôssemos uma categoria social que não existisse”, diz.

Leonardo Tenório, da AHTM

Leonardo Tenório, da AHTM

Nesta invisibilidade, porém, está escondida a violência que os homens trans sofrem diariamente – física e simbolicamente. “Muitos de nós têm ideação suicida. Acho que mais de 90% dos que eu conheci pelo menos pensaram em suicídio em algum ponto. Os estupros corretivos também são comuns, chegando a até 50% dos que procuram a associação. Além disso, o preconceito nos impede de ter acesso ao mercado de trabalho”, conta Leonardo.

Presidente do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), que tem sede em São Paulo, Alexandre Peixe dos Santos atribui parte da invisibilidade dos homens trans à recente mobilização em torno do ativismo. “É algo ainda muito novo. A inserção dos homens trans no movimento social organizado se deu apenas após o ano de 2004”, explica Alexandre, que afirma quea procura maior pelo Ibrat são geralmente dúvidas relacionadas à saúde mental, hormonização e denúncias de discriminação.

Família e saúde mental

Do ponto de vista emocional, o sofrimento é independente do gênero. De acordo com a psicóloga, homens e mulheres trans sofrem com a incompatibilidade entre o ser e o corpo. “A família também sofre muito. Um dos grandes problemas do trans acontece em casa, com a falta de aceitação da família”, diz. A partir de fevereiro, o Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), ligado à UPE e que fica na Encruzilhada, inaugura uma roda de conversa chamada “família e a transexualidade” aberta a todos os trans.

Outro ponto de apoio psicológico para famílias é o espaço do Mães Pela Diversidade (Rua Gervásio Pires, 404, sala 04). Há voluntários de psicologia para LGBTS em situação de vulnerabilidade.

“A família é o primeiro violador do direito dos LGBT. Onde ele sofre as primeiras angústias e o primeiro preconceito. Quando a gente consegue mediar um conflito entre o LGBT e a família, a gente consegue trazer a família para militar junto com a gente, para entender o que são as negativas que eles sofrem durante o percurso. Trazendo para perto, a família vai saber quando ele estiver se mutilando ou indo contra a vida dele”, diz Gi Carvalho, coordenadora do movimento no Recife.

Um estudo publicado no ano passado nos Estados Unidos revelou que os homens trans são os mais suscetíveis a tentativas de suicídio na adolescência. Enquanto o índice geral era de 14%, esse percentual subia para 50,8% entre os homens trans. Em segundo lugar aparecia os não-binários, com 41,8%, e em terceiro, as mulheres trans, com 29,9%.

Os olhares enviesados e o preconceito também fazem com que os homens trans se exponham menos. “Somos bastante desmobilizados”, lamenta Leonardo, afirmando que, com apenas dois anos de funcionamento, a AHTM já dá sinais de que vai fechar. “O preconceito é tão forte que não conseguimos nos reunir com frequência”, conta.

Para o homem trans Gabriel Ventura, parte da falta de mobilização vem da criação cultural. “Temos que lembrar que os homens trans foram criados como mulheres. E para as mulheres não se pode questionar, não se pode mudar. Isso fica muito forte, marca muito. As mulheres trans, que foram criadas como homens, têm mais propensão a ir atrás do que querem”, acredita.

Profissionais de saúde ouvidos pela Marco Zero calculam que de cada quatro pessoas trans que procuram os serviços de saúde especializados, apenas um é homem trans.

No Nordeste, apenas o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) tem um Espaço Trans credenciado pelo Ministério da Saúde e habilitado para atendimento ambulatorial e cirúrgico. Como também atende pessoas de outros estados, a espera por cirurgias de redesignação pode levar até cinco anos.

Em Pernambuco, Leonardo Tenório foi o primeiro a fazer a mastectomia, depois de mais de cinco anos de luta. “Entrei na fila do HC, coloquei o plano de saúde na Justiça, fui no Cremepe, participei de várias conferências e ainda demorou isso tudo”, conta Leonardo.

Pela rede privada, a Justiça tem obrigado os planos de saúde a cobrirem os custos – como ocorreu com Leonardo, mas demorou tanto que ele já havia conseguido fazer a cirurgia pelo SUS, no Hospital das Clínicas. Particular, a cirurgia chega a custar R$ 10 mil. “Quem tem dinheiro consegue fazer a mastectomia. Viramos um nicho de mercado”, conta Alexandre Peixe dos Santos.

Atendimento de saúde para homens trans

A primeira fase do atendimento para pessoas trans é o acolhimento. Nessa conversa inicial, que é feita por enfermeiros, psicólogos ou assistentes sociais, o paciente passa por uma avaliação geral e as primeiras consultas são agendadas.

No Brasil, a terapia hormonal é feita apenas após os 18 anos. As cirurgias só depois dos 21 anos. “Na adolescência, o aparecimento das características sexuais secundárias causa grande sofrimento psicológico. O Hospital das Clínicas de São Paulo é o único no Brasil que faz uma intervenção com adolescentes, não prescrevendo, mas bloqueando a ação dos hormônios. Se após os 18 anos a pessoa quiser, então se começa a hormonização”, explica a psicóloga Carla Maciel, que atua no ambulatórioLGBT do Cisam.

A transexualidade deixou de ser considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas em junho de 2018. Hoje, está no rol de “disfunções sexuais”. Isso garante que as pessoas trans sejam atendidas pelo Sistema Único de Saúde.

O Dia da Visibilidade Trans começou a ser celebrado em 2004. Naquela data, 27 travestis, homens e mulheres trans foram até o Congresso Nacional para o lançamento da campanha "Travesti e Respeito”. Desde então a data é comemorada como reconhecimento do direito à políticas publicas e dignidade da população trans.

O Dia da Visibilidade Trans começou a ser celebrado em 2004. Naquela data, 27 travestis, homens e mulheres trans foram até o Congresso Nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”. Desde então a data é comemorada como reconhecimento do direito a políticas publicas e dignidade para a população trans.

Em Pernambuco, há atendimento especializado para homens trans em quatro unidades de saúde, todas no Grande Recife. O Hospital das Clínicas é o mais bem estruturado, com atendimento integrado reconhecido pelo Ministério da Saúde, o que garante acesso a mais verbas federais. O atendimento, porém, é lento: há longas filas de espera, tanto para homens trans, quanto para mulheres trans, que podem passar anos esperando por algum atendimento.

Na rede estadual, o Cisam começou em 2016 com um ambulatório voltado exclusivamente para homens trans. No ano passado, o serviço expandiu também para mulheres trans – uma exigência para tentar conseguir o credenciamento do Ministério da Saúde como Espaço Trans. Por lá, mais de cem homens trans já foram atendidos.

Na rede municipal do Recife, o posto de saúde Lessa de Andrade também conta com endocrinologistas e apoio psicológico. Em Camaragibe há um ambulatório para atendimento a pessoas LGBT. O mais comum é que os homens trans passem por várias unidades recebendo serviços diferentes em cada uma delas.

No Cisam, por exemplo, só a partir deste semestre é que será distribuída a testosterona gratuitamente. Há alguns rótulos do hormônio masculino indicados para homens trans. Os preços variam de R$ 40 (a receitada no Cisam ) a R$ 300 (oferecida no HC).

Segundo o médico endocrinologista Eric Trovão, do Espaço Trans do HC, a diferença nos preços está relacionada à rapidez da liberação da testosterona. “As mais baratas têm o inconveniente de causar um pico do hormônio logo após a aplicação. Na primeira semana o nível fica muito alto, para só depois ir se estabilizando. Por conta disso, alguns pacientes apresentam irritabilidade, agressividade, libido exacerbada. Mas notamos que isso acontece nas primeiras aplicações e com o tempo há uma adaptação”, comenta.

bannerAssinePela legislação brasileira, a aplicação de testosterona só pode acontecer após os 18 anos. As cirurgias, após os 21 anos. Nos homens trans, a terapia hormonal já começa a apresentar os primeiros efeitos em poucos meses. É como uma puberdade: há aumento dos pelos corporais, desenvolvimento muscular, mudanças na voz. Com o uso contínuo, com injeções a cada 21 dias, em dois anos, geralmente, o homem trans alcança uma estabilidade.

As injeções são recomendadas ao longo da vida, mas algumas características não se revertem, mesmo após a parada. “Claro que isso é algo que varia de pessoa para pessoa. Mas na maioria dos homens trans a voz não muda, mesmo depois de meses e até anos sem testosterona”, afirma Trovão.

Serviço

Espaço de Acolhimento e Cuidado Trans do HC
Horário: 8h às 12h / 13h às 17h, atendimento presencial
Contato: 2126-3587

Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE)
Contato: 3182-7717 e 0800-081-1108
Endereço: Rua Visconde de Mamanguape, S/N, Encruzilhada

Ambulatório LGBT da Políclínica Lessa de Andrade
Contato: segunda a quinta-feira, das 13h às 17h
Endereço: Estr. dos Remédios, 2416, Madalena
Ambulatório LGBT Darlen Gasparelli
Contato: 3458-0694
Endereço: Rua Pedro de Paula Rocha, Centro, Camaragibe

As ameaças do governo Bolsonaro

O Sistema Único de Saúde começou a oferecer cirurgias para pessoas trans em agosto de 2008 com a publicação das portarias nº 1.707 e nº 457, ampliadas em 2013. Com isso, foi garantido o atendimento integral de saúde a pessoas trans , que vai desde o uso do nome social e o acesso à hormonioterapia até a cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social.

Antes, em 2006, outra portaria já garantia o uso do nome social em toda rede do SUS. No Brasil, apenas cinco estados têm serviços de atendimento especializado credenciados pelo Ministério da Saúde. Além do Hospital das Clínicas da UFPE, os HCs de Goiânia, São Paulo e Porto Alegre e o Hospital Universitário da Universidade Estadual do Rio de Janeiro são credenciados.

A militância pernambucana quer que o Cisam passe a integrar a lista, em convênio com o Hospital Oswaldo Cruz, que faz parte da Universidade de Pernambuco (UPE). “Temos uma boa relação com o poder estadual e municipal. Mas estamos com receio do que o governo Bolsonaro possa fazer”, diz Tenório.

Uma das primeiras polêmicas do governo de extrema-direita foi a retirada do ar da primeira cartilha voltada exclusivamente para homens trans publicada pelo Ministério da Saúde. Já na primeira semana de governo, o material foi excluído do site do órgão e uma das responsáveis pela publicação, Adélia Benzaken, uma referência em HIV/Aids no Brasil, foi demitida da direção do departamento.

O MS justificou a exclusão da cartilha por conta de uma ilustração que mostrava a técnica de pump (para aumentar o clitóris em homens trans) desacompanhada de texto. Dias antes o ministro Luiz Henrique Mandetta havia dito que a “política de prevenção ao HIV não pode ofender as famílias”.

Para Alexandre Peixe dos Santos, que participou da redação da cartilha, a desculpa do Ministério da Saúde não faz sentido. “O Ministério nos afirmou que era para editar algo que acharam que não era importante. Mas a cartilha foi feita por homens trans para homens trans. Então, acredito que ela era válida”, diz.

A cartilha, porém, ainda está disponibilizada em alguns sites e pode ser conferida abaixo na íntegra.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org