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Crédito: Jan Ribeiro/Secult-PE
por Nathallia Fonseca, publicada originalmente pela Agência Pública
O bairro de Guadalupe fica a menos de 15 minutos de caminhada da região turística de Olinda , com seu famoso casario colorido que é cartão postal da cidade pernambucana. Próximo dali, no menos frequentado pelos visitantes beco da Macaíba, no bairro de Guadalupe, a Ialorixá, percussionista, ativista e comunicadora Mãe Beth de Oxum realiza seu coco de umbigada há 25 anos. Pelo trabalho que ela descreve como “reencantamento da cultura a partir da autoestima de um território”, enfrentou preconceito, desafiou o machismo que impedia mulheres de tocarem em maracatus e afoxés e sofreu repressão da polícia do Estado, o mesmo que a elegeu primeira mãe de santo Patrimônio Vivo em Pernambuco, no ano passado. O reconhecimento é dado a pessoas e instituições que mantêm pulsantes as manifestações culturais do país.
Mãe Beth tem uma agenda cheia, que inclui apresentações de coco pelo Brasil. Em breve passagem por São Paulo, na última semana, onde esteve para compartilhar pesquisas e vivências de aquilombamento (posicionamento de resistência política pela comunidade e empoderamento racial do povo preto), a artista e líder religiosa de 59 anos conversou com a Agência Pública. Ela contou que esteve em Brasília dias antes para participar do Festival Latinidades, um encontro anual dedicado à cultura negra. Ao seu lado repousava um pandeiro, aguardando mais uma apresentação, naquela mesma tarde.
Se referir a Maria Elizabeth Santiago, Beth de Oxum, a partir de sua comunidade é a maneira mais justa de contar sua história, ainda que a contribuição do seu trabalho seja de relevância nacional. O título concedido a ela, de Patrimônio Vivo de Pernambuco, não tem semelhante no âmbito nacional. Em nível estadual, há outras ialorixás que receberam a mesma distinção, como Mãe Neide, de Alagoas. Em Pernambuco, a titulação de Mãe Beth também foi concedida a nomes da cultura popular como a cirandeira Lia de Itamaracá e a artesã Ana das Carrancas, falecida em 2008.
“Foi um lembrete de que o povo brasileiro não cabe numa caixa fundamentalista”, diz Mãe Beth sobre o reconhecimento. No bairro de Guadalupe, onde ela fundou, ao lado do marido, o percussionista Mestre Quinho Caetés, o Coco de Umbigada, uma manifestação do Coco de Roda tradicional e hoje efervescente, havia uma profunda falta de investimento em manifestações culturais em 1998, quando eles começaram o trabalho. “Nós começamos tocando no quintal de casa. Depois passamos para o lado de fora. De repente existiam mais de mil pessoas naquele beco”, conta Mãe Beth.
A dança do coco, que ela faz até hoje acompanhando a percussão do marido, faz dos pés um complemento da percussão e é diretamente ligada à música dos terreiros de religião afro-indigena. Os terreiros são, para a sacerdotisa, “um espaço de proteção da cultura tradicional brasileira.” No mesmo Ponto de Cultura onde ensaia o coco, funciona o terreiro de candomblé Ilê Axé Oxum Karê, comandado por ela. Os Pontos de Cultura são espaços de múltiplas atividades, fomentados a partir do programa Cultura Viva, do Governo Federal.
“O coco de roda é uma herança ancestral e do nosso território”, diz, “mas depois da morte de mestres importantes do gênero, tinha sido calado. Não existiam políticas públicas de incentivo, não existia autoestima para continuar. Foram trinta anos em silêncio até que nós decidimos voltar a fazer o Coco em nossa casa”, lembra.
Mãe Beth cresceu na Barreira do Rosário, comunidade vizinha ao bairro de Guadalupe. O nome do lugar se refere ao entorno da igreja do Rosário dos Pretos, criada para abrigar a religiosidade católica ou sincrética do povo negro. De lá também vieram outros importantes mestres do coco pernambucano. “Cresci vizinha de Dona Selma do Coco, Dona Aurinha do Coco. Quando a comunidade está imersa em uma cultura, as crianças crescem nesta ideia. Eu era então uma criança do afoxé, do frevo, do maracatu, dos terreiros de matriz africana”, conta.
O crescimento do coco de Mãe Beth de Oxum gerou repressão em Olinda. Quando as celebrações atraiam grande público, a polícia chegava para parar a sambada. “Eu me recusava. Teve bala de borracha. O Estado é, de maneira geral, racista. Ele não tolera essas brincadeiras, essas manifestações do nosso povo. Então, em pouco tempo eu tinha quatro processos nas minhas costas. Diziam que o meu ‘crime’ era a perturbação do sossego”.
Ela considera que a repressão a manifestações culturais é uma tentativa de sufocar a liberdade de pensamento. “Esse tipo de manifestação gira uma chave na cabeça das pessoas. De uma hora pra outra o território entende que ele tem autonomia, que ele pode ser protagonista”, considera.
Mãe Beth de Oxum conta que foi, por muitas vezes, alvo de intolerância e racismo religioso. E que, na sua percepção, o preconceito contra religiões afro-brasileiras piorou nos últimos anos. “O momento de virada, ao meu ver, veio junto com o crescimento da extrema-direita na América Latina e o movimento neopentecostal, que tem referência em Steve Bannon. Antes, mesmo que a gente sempre estivesse sob o domínio da igreja católica, a sociedade não era tão intolerante. Quando o terreiro fazia munguzá para Preto Velho, quando distribuímos confeitos de Cosme e Damião, as pessoas de qualquer denominação religiosa da comunidade comiam e entendiam com carinho que aquele era nosso sagrado”.
Em 2005, o Programa Cultura Viva, do primeiro governo Lula (PT), foi o responsável pela transformação da sede do coco de umbigada de Mãe Beth em um Ponto de Cultura. Hoje, ele é tanto um espaço para ensaios e apresentações como para promoção de ações de educação e de inclusão. Um exemplo é o LABCOCO – Laboratório de tecnologia e inovação cidadã, fundado em 2010, com oferta de cursos na área de tecnologia e gestão para jovens em situação de vulnerabilidade financeira.
“O projeto surgiu quando os primeiros alunos da rede estadual de Pernambuco receberam tablets para usar em sala de aula, mas as escolas ainda não tinham conexão com a internet. Então nós pensamos num jeito de aproveitar esses recursos com educação”, conta Mãe Beth.
O primeiro grupo de Maracatu exclusivamente feminino de Olinda surgiu em 1983, criado por Beth de Oxum e outras companheiras. Até então, mulheres não eram ensinadas a tocar as alfaias – tambores de madeira tradicionalmente utilizados em ritmos como o maracatu e o coco.
“Éramos mulheres de diferentes terreiros que, aos poucos, fomos nos apropriando desse conhecimento que diziam ser proibido. Era uma revolução silenciosa”, lembra Mãe Beth. Ela também participou da fundação do Afoxé Filhas de Oxum, com mulheres que abriram espaço para novos grupos femininos numa manifestação cultural-religiosa antes tipicamente masculina.
“A primeira coisa que nós aprendemos no terreiro é que precisamos falar a metade e ouvir o dobro, pois quem fala não observa. Então a gente observava e aprendia observando”, lembra. “Para quem vê de fora os nossos rituais e vê os mestres levando o baque, os homens no tambor, pode parecer que o lugar da mulher é menos importante, mas se você reparar, são as mulheres que carregam o Axé”, diz, se referindo à condução das bonecas calungas, elementos sagrados que representam os ancestrais e seus orixás, tradicionalmente erguidas por mãos femininas à frente dos cortejos de matriz africana.
Ainda nos anos 80, a ialorixá juntou-se ao grupo de Dona Selma do Coco, mestra popular falecida em 2015, e à banda da cirandeira Lia de Itamaracá. Ela passou dez anos percorrendo o Brasil e o mundo com Lia. “Faz vinte anos que eu deixei a banda dela para me dedicar a criar meus filhos. Me tornei o que sou a partir dessas mulheres e também a partir da minha mãe, minhas avós, minhas tias”. Os cinco filhos de Beth, hoje adultos, são todos artistas e também promotores da cultura em Pernambuco.
Em 2007, Mãe Beth de Oxum, junto com o coletivo de mídia livre Rádio Amnésia, conquistou um novo território para o coco, o frevo, o afoxé e outros gêneros musicais pernambucanos pelos quais milita: uma frequência na rádio FM. “O primeiro impacto, quando as pessoas perceberam que a nossa música estava tocando no rádio, foi maravilhoso. A nossa música precisava tocar no rádio”, diz.
Hoje, a rádio 89,5 FM realiza oficinas de comunicação, introduz novos artistas da região e conversas sobre temas da comunidade, com uma programação que não entraria nas grades das rádios comerciais. A Ialorixá também apresenta, desde o início do ano, o programa “Mulheres que cantam pra Jah”, na rádio pública Frei Caneca, do Recife, que “apresenta aos ouvintes mulheres que cantam para o sagrado”.
A presença no rádio, diz Mãe Beth de Oxum, veio da percepção da comunicação como ferramenta de poder.”Você liga a televisão e, mesmo hoje, encontra um padrão europeu. Pessoas brancas, pessoas que não dialogam com a nossa realidade. O rádio, pra gente, era um objeto que tocava música e quase sempre músicas de uma outra realidade. Mas a partir do contato com isso entendemos que é uma difusão capaz de formar ou deformar uma opinião. A democratização da mídia é a nossa pauta mais urgente”.
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