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Fernando Frazão/Arquivo/Agência Brasil
O conceito de justiça reprodutiva ainda é novo no Brasil e vem sendo estudado como uma forma de ampliar a compreensão sobre os efeitos da ilegalidade do aborto para as mulheres negras. O conceito chamou a atenção de pesquisadoras brasileiras no contexto da epidemia do zika vírus no Brasil, em 2016, que enxergaram a importância de ter um olhar específico para a condição das mulheres negras. “Quem eram as mulheres que mais sofreram? Foram as negras. Como uma uma mulher que não tem saneamento básico, tem uma série de deficiências de acesso a serviços públicos vai ter autonomia para decidir sobre seus direitos reprodutivos? ”, questiona a pesquisadora baiana Emanuelle Goes, que faz parte do Grupo de Trabalho de Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil o risco de uma mulher negra morrer por aborto inseguro é 2,5 vezes maior do que o de uma mulher branca. De acordo Goes, o conceito é útil para estudar a realidade brasileira e dialoga com a ideia de inteseccionalidade, acrescentando à análise o racismo institucional, a condição prévia de vulnerabilidade e a dificuldade de acesso à informação e serviços de saúde em maior volume pelas mulheres negras.
O estigma e julgamento recaem sobre todas as mulheres que sofrem ou praticam aborto, mas, segundo a pesquisadora, o fator raça é que destoa e modifica os indicativos nas pesquisas sobre aborto. No Brasil, o aborto é permitido por lei apenas em três casos – quando a mulher engravida vítima de estupro, quando existe risco de vida para a mãe e em casos de anencefalia, ou seja, quando o cérebro do feto é subdesenvolvido ou o crânio incompleto.
Apesar disso, a prática do aborto é uma prática social e acontece de forma ilegal, o que provoca outro problema, ao colocar mulheres negras e pobres em maior vulnerabilidade. Para essas mulheres, a injustiça reprodutiva é uma realidade que traz medo e resulta, em casos extremos, em morte. Para a pesquisadora, para alcançar a justiça reprodutiva é necessário compreender a teia de opressões que afetam vida reprodutiva das mulheres negras. Desde a dificuldade de acesso ao transporte público para chegar no serviço de saúde ao abandono dos parceiros quando descobrem a gravidez.
Além disso, a ilegalidade do aborto reforça tabus e dificulta o acesso à informação e até a procura de ajuda em situações em que o aborto é legal. A pesquisadora participou do debate Justiça Reprodutiva: por que legalizar o aborto importa para as mulheres negras?, no Recife, organizado pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e Grupo Curumim como parte do IV Festival pela Vida das Mulheres e Pessoas com Útero, que realiza atividades a favor da descriminalização das mulheres e pela legalização do aborto.
Emanuelle Goes realizou, em sua tese de doutorado, uma pesquisa que analisou o contexto da gravidez e do aborto de mulheres em situação de abortamento internadas em maternidades públicas de acordo com a raça e cor. O estudo foi desenvolvido em São Luís, Recife e Salvador.
Com a pesquisa, Goes identificou que são as mulheres negras em situação de pobreza, das regiões Norte e Nordeste, que têm menos acesso a métodos contraceptivos. Ao mesmo tempo, os dados coletados em entrevistas, quando sistematizados por cor/raça, sempre aparecem em gradação: maior quantidade de mulheres negras quando a pergunta diz respeito a um fator negativo, e maior quantidade de mulheres brancas quando positiva.
“As mulheres negras demoram mais a fazer o teste de gravidez, demoram mais a compartilhar a notícia ou não chegam a contar a ninguém. Isso tudo leva a um aborto tardio e possivelmente a um aborto inseguro”, explica.
De acordo com o estudo, as mulheres negras têm mais medo e dificuldades de procurar serviços de saúde em situações de abortamento. As negras lideram quando as respostas são o medo de ser maltratada e não ter dinheiro para transporte. “As mulheres com medo esperam chegar a uma situação limite para procurar ajuda”, conta. Dados do Sistema de Morbidade Hospitalar do Ministério da Saúde revelam que em 2016 houve 195.860 internações por consequências de aborto. Deste total, 62,4% das mulheres eram negras.
Outros indicadores que dificultam a chegada ao serviço de saúde são a falta de informação sobre que atendimento procurar, a impossibilidade de faltar ao trabalho, não ter companhia e não ter com quem deixar os filhos. Em todas as respostas, com exceção do não saber que atendimento procurar, as mulheres brancas foram minoria.
Para Stella Maris, da Rede de Mulheres Negras, outro campo em disputa no debate em torno do aborto é o diálogo com a sociedade. Para ela, é preciso colocar o racismo institucional neste debate para mudar as práticas que fazem com que as mulheres negras tenham medo de procurar ajuda. “Parece uma coisa distante, mas quem pratica o racismo, a discriminação são os profissionais. Quem faz a instituição são as pessoas também”, defende.
A justiça reprodutiva combina direitos reprodutivos e justiça social e aponta um caminho importante, mas é necessário transformar o imaginário social e não apenas a legislação. “A justiça reprodutiva diz respeito não apenas ao direito a realizar um aborto seguro, mas também a outros aspectos da vida reprodutiva das mulheres negras”, argumenta Goes. O olhar específico pode ajudar a construir políticas e ações que venham garantir que menos mulheres morram em decorrência de abortos inseguros ou pela falta de informação.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.