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Impunidade e conivência do poder público estimulam ataques aos terreiros Ègbé Omo L’omi e Salinas

Giovanna Carneiro / 26/07/2022
Em frente a um muro de pintura descascada, com a expressão Racismo religioso pichado em letras brancas, uma mulher negra de vestido branco e azul olha para a câmera.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

No limite entre os bairros do Ibura, no Recife, e Zumbi do Pacheco, em Jaboatão dos Guararapes, a residência de uma família se transformou em local de encontros, ações solidárias, espaço cultural e também religioso. Liderado pela Ialorixá Janielly Azevedo, o terreiro Ègbé Omo L’omi, fundado há pouco mais de dois anos, resiste para continuar suas atividades em uma área onde parte da vizinhança se recusa a conviver com os rituais do candomblé e da jurema.

Para acabar com as atividades do terreiro, alguns vizinhos praticam atos constantes de violência contra os religiosos, arremessando pedras no telhado e jogando lixo e restos de comida na casa. Ataques que acontecem constantemente e são até respaldados pela polícia, como conta Janielly Azevedo: “Os policiais foram muito agressivos e nos ameaçaram dizendo que se a gente não parasse de tocar eles iam levar os atabaques e outros instrumentos, mas a gente sabe que isso não é permitido”.

De acordo com a Ialorixá, é comum que os policiais tentem interromper os encontros e toques do terreiro sob a alegação de que os religiosos estariam infringindo a Lei 16.243/1996, que determina o horário que é permitido utilizar som em um volume mais alto a fim de evitar a perturbação do sossego.

“Isso se repetiu várias vezes. A última vez era quatro horas da tarde e nós estávamos fazendo um toque para Oyá, agradecendo pela saúde da minha filha, quando os policiais chegaram. Eu pedi o protocolo da ligação e eles não tinham, então nós nos recusamos a parar. Na rua estava tendo outra festa na casa de um vizinho e nessa festa tinha até um paredão de som, mas eles [policiais] só vieram na nossa casa”, disse Janielly.

“Como o Ibura é uma comunidade, uma favela, as forças de segurança do Estado não consideram as leis, aqui a polícia é sempre agressiva”, completou a Ialorixá.

Ato contra o racismo religioso no Terreiro Ègbé Omo L’omi. Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Vida em risco

Foi no dia 30 de junho de 2022 que o ato mais violento já praticado contra o Terreiro Ègbé Omo L’omi aconteceu. Os integrantes do grupo de coco Abre Caminho, composto por participantes do terreiro, ensaiavam na casa quando uma bomba feita com restos de cano PVC foi jogada no quintal. Com a explosão da bomba, todos os vidros dos basculantes da residência foram quebrados. Felizmente, ninguém ficou ferido.

“Nós tentamos ir na delegacia prestar queixa no dia seguinte, mas nenhuma delegacia recebeu a gente para fazer o boletim de ocorrência alegando que ele deveria ser feito online, então nós fizemos online, mas no site aparecia como se quem tivesse estourado a bomba tivesse sido eu”, contou Janielly Azevedo.

A Ialorixá procurou a Defensoria Pública de Jaboatão dos Guararapes para prestar queixa do ocorrido, mas a repartição estava em recesso. Janielly conseguiu promover um momento de escuta na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco, mas lamenta que o processo de investigação e punição contra o responsável pelo atentado não seja tratado como prioridade na justiça: “nunca tem uma medida concreta que nos faça sentir realmente seguros e é por isso que nós expomos nas redes sociais e continuamos nos articulando”, disse.

Além do atentado com a bomba, no dia 28 de junho, alguns vizinhos arremessaram pedras contra a casa no momento em que acontecia um evento do Coletivo Periféricas na frente do terreiro. Participantes estavam assistindo a um documentário quando a violência aconteceu.

Janielly Azevedo ao lado de sua filha Lua Maria. Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Os frequentes atos de violência colocam em risco a vida de dezenas de pessoas que frequentam o espaço quase diariamente, pois, além de ser a residência onde Janielly mora junto com sua companheira, quatro filhas e um genro, o Terreiro Ègbé Omo L’omi é sede do Coletivo Periféricas, Coletivo Espaço Cultural das Marias e Coco Abre Caminho. Além disso, o local é responsável por uma ação solidária semanal de doação de 150 cestas básicas para famílias da comunidade do Ibura e do entorno.

Para Janielly, a violência contra os terreiros é um projeto apoiado pelo próprio poder público. “Jaboatão foi tomada pelo fundamentalismo, pelo fascismo, é tanto que você não encontra fomento à cultura em canto nenhum da cidade. Não tem Carnaval, não tem São João, não tem nada, agora se a gente for fazer um culto em ação de graças a gente consegue apoio, sabe? E tendo uma gestão que apoia ainda mais esse autoritarismo e não estimula a consciência de um estado laico para promover o respeito à diversidade das crenças, as pessoas se sentem respaldadas para praticar violência e racismo religioso contra povos de terreiro”, afirmou a Ialorixá. Janielly e outros integrantes do terreiro desconfiam que os principais responsáveis pelas violências são pessoas evangélicas da vizinhança.

No entanto, na contramão dessa violência, a união entre os povos de terreiro para promover cultura e educação para a população negra e periférica segue sendo o principal projeto de Janielly e de todos os integrantes do Terreiro Ègbé Omo L’omi, que juntos promoveram um festival contra o racismo religioso, realizado no dia 16 de julho. Na ocasião, foi possível perceber a força da Ialorixá em centralizar diversas atrações artísticas e culturais na periferia e proporcionar um ambiente acolhedor, amoroso e pacífico no meio da rua que também é cenário de violência.

“Além de sermos um espaço físico e religioso, a gente é um espaço da cultura e promover um festival de arte cheio de atrações é a forma que encontramos de não nos calar diante de todas as violências”, disse Janielly.

Descaso e impunidade

No dia 1º de janeiro de 2022, o Terreiro das Salinas, localizado em São José da Coroa Grande, litoral sul de Pernambuco, sofreu um incêndio que destruiu toda a sua estrutura.

Religiosos do terreiro afirmam que o incêndio foi criminoso, porém, quase oito meses após o ocorrido, a Polícia Civil, responsável pelo caso, não deu nenhuma resposta sobre as investigações. De acordo com Babalorixá Lívio Martins, alguns integrantes do terreiro foram ouvidos pela polícia, mas, recentemente, quando o órgão foi procurado para dar retorno sobre as investigações, pediram mais 90 dias para apresentar as conclusões do processo.

“Segue a impunidade, segue um sentimento de descaso e de apagamento e um entendimento de que nós, povos negros de terreiro, estamos de fato desamaparados pelas políticas públicas que não são efetivas, não são construídas de acordo com as nossas perspectivas e que muitas vezes está em comunhão com esse racismo estrutural que rege nosso país”, declarou o Babalorixá.

Incêndio no Terreira das Salinas, em São José da Coroa Grande

Incêndio no Terreiro das Salinas. Crédito: Gilmara Santana

Apesar de ser uma construção bioecológica de pau a pique e palha – que contribui para que o fogo se alastre rapidamente – , integrantes do terreiro da Salinas, que estiveram no local do incêndio, declararam que havia um cheiro muito forte de material inflamável e a cor da fumaça era muito escura. Além disso, muitas imagens de santos estavam quebradas e havia indícios de que as fechaduras foram forçadas, o que aumenta a suspeita de que o incêndio foi fruto do racismo religioso.

Após o ocorrido, o território sagrado de tradição Jeje-Nagô ainda não conseguiu voltar às atividades. “O espaço está sendo reconstruído aos poucos, mas ainda estamos com muito medo em voltar a cultuar e sermos violados tendo em vista que o estrago além de material foi psicológico, porque muitos materiais destruídos foram passados para mim pelos meus ancestrais e esses objetos não têm preço”, afirmou Lívio Martins. O Babalorixá do Terreiro das Salinas disse ainda que, após o incêndio, sofreu ameaças através de ligações e isso aumentou ainda mais a sua insegurança.

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.