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Crédito: Divulgação
Durante os dez meses que o país enfrenta a pandemia do novo coronavírus, comunidades quilombolas vêm sofrendo com o agravamento da insegurança alimentar e nutricional. Com o isolamento social, e muitas vezes distantes de centros urbanos, a população quilombola viu a autonomia alimentar diminuir e algumas comidas sumirem da mesa. Além disso, municípios, governo estadual e federal, que têm responsabilidades diretas sobre o assunto, muitas vezes estão ausentes dos territórios.
No início de dezembro, uma carta das comunidades quilombolas de Pernambuco denunciou a precarização das políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no estado. A carta parte do resultado do projeto SISAN Universidades/UFRPE, que realizou um monitoramento envolvendo as questões relacionadas à SAN em comunidades quilombolas do litoral ao sertão pernambucano, identificando as diferentes realidades e contextos a partir dos próprios quilombolas.O documento aponta também as demandas e medidas necessárias para cada instância governamental.
Entre os principais problemas que os territórios ainda enfrentam estão a dificuldade em receber as cestas básicas da Fundação Palmares, a limitação no acesso a alimentos em função do deslocamento (meios de transporte e péssimas condições das estradas) e o preço alto de alguns itens, sobretudo os industrializados e/ou os que não são produzidos pelas comunidades. Além disso, há o receio da exposição à Covid-19. A falta de acesso a água também foi pontuada, o que dificulta as medidas de prevenção e o dia a dia das quilombolas.
Diante da pandemia, ficou evidente o quanto a desarticulação dos entes federados prejudica a ponta mais fraca, neste caso, as comunidades quilombolas. É o que explica Reginaldo Xavier de Assis, integrante da pesquisa e também conselheiro do Consea Pernambuco (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável), que lembra que o desmonte do Consea Nacional promovido por Bolsonaro piorou a situação. “É comum, em quase todos os municípios que a gente pesquisou durante a pandemia, existir pouca ou quase nenhuma atuação dos governos municipais no campo da SAN. As comunidades conseguem sobreviver em grande parte com ajuda do governo federal e do próprio governo estadual”.
De acordo com Regionaldo, além da articulação entre os entes federados, as políticas de SAN precisam ser intersetoriais para dar conta, de fato, da realidade das comunidades tradicionais, como são as quilombolas. “Quando eu falo de SAN, eu falo de uma política intersetorial que pode estar em políticas de saúde, assistência, educação, na questão da agricultura, mas está também na política de infraestrutura. Quando você tem uma área rural com péssimas estradas, por exemplo, que dificultam o escoamento da produção de alimentos”. Daí vem a dificuldade de alguns municípios, na visão de Reginaldo, de alocar políticas públicas de SAN.
Diante desse cenário, quando olhamos para além da capital e região metropolitana, a situação fica mais complicada para quem está na Zona da Mata, Agreste e Sertão.
Reginaldo recorda que a legislação atual prevê que os povos tradicionais – onde estão incluídos os quilombolas, indígenas, ciganos e outros – são grupos prioritários na atenção das políticas públicas de SAN. “Quando você fala de insegurança alimentar, que vai do modo mais leve ao grave, que já é o que chamamos de fome, quando vai para esse estágio quem mais sofre são as comunidades tradicionais. Então é uma dívida histórica”.
A partir das diferentes regiões, a questão do acesso à água para o plantio e para beber varia entre as comunidades quilombolas. A luta pela garantia de água ainda é fundamental para segurança das famílias. ”Hoje, ainda há muitas comunidades quilombolas que não têm água e dependem de caminhão pipa do Exército”, explica Reginaldo.
Na Comunidade Quilombola de Remanso, em Orocó, apesar de estar ao lado do Rio São Francisco, o acesso à água potável para consumo ainda é um desafio, como conta Ingrede Alves Dantas, professora, representante da Coordenação Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas do Pernambuco ( CEAQC) eda Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais ( CONAQ). “Temos a riqueza de sermos banhados pelo Rio São Francisco, então o acesso água não é dificuldade, mas o acesso a água potável (tratada) só é possível em nossas comunidades pelo modo tradicional vindo dos mais velhos, sendo um dos desafios ainda presentes”, relata.
Com a produção de alimentos sendo possível, os quilombolas esbarram na dificuldade de comercializar os produtos já que feiras foram fechadas e não houve plano para direcionar os produtos quilombolas. “O meio de não perder toda a produção é a venda por atravessadores”, explica Ingrede. Dessa forma, a comida que vai para a mesa do agricultor ficou mais cara (com o aumento da cesta básica) e a que ele produz e vende mais barata”.
Também no sertão de Pernambuco, no município de Cabrobó, na comunidade quilombola Jatobá 2 a situação da segurança alimentar se agravou com o esquecimento dos poderes públicos. Coordenador geral da associação quilombola local, Valdenes Brito conta que tiveram muita dificuldade de dialogar com gestores nas instâncias municipal, estadual e federal. “A gente sobrevive daquilo que a gente planta. Mas tem a questão do preço abusivo das mercadorias e como somos um grupo pobre não tem como tá comprando os insumos fora da comunidade”, relata Valdenes. Até hoje, estão buscando alternativas.
Jatobá 2, com cerca de 130 famílias, teve um caso de óbito registrado por conta da Covid-19. Um dos principais problemas apontados pelos moradores foi a falta de assistência médica durante os últimos dez meses.
Segundo Maria Cristiana da Silva, presidente da Comunidade Quilombola de Alverne, em Alagoinha, no Agreste, a população tem contado com cestas básicas distribuídas pelo município, mas que não são suficientes. As que deveriam chegar via Fundação Palmares, por exemplo, viraram promessa. Outra dificuldade é com relação aos cuidados e prevenção com o vírus. De acordo com Cristina, kit com álcool gel, máscaras e luvas prometidos nunca chegaram. Apesar dos cuidados organizados pela própria comunidade, três pessoas morreram em decorrência da Covid-19.
Na Comunidade Quilombola de Siqueira, em Rio Formoso, Mata Sul de Pernambuco, moram cerca de 120 famílias. Segundo explica Moacir Correira, agente comunitário de saúde, boa parte das pessoas vivem da pesca, agricultura e outros dependem do Bolsa Família e de aposentadorias. Quando as primeiras notícias do coronavírus chegaram, eles ainda estavam tentando se recuperar dos prejuízos do derramamento de petróleo no litoral, em 2019. Os recursos que deveriam ter ganho no ano anterior não chegou e as pessoas já estavam passando dificuldades financeiras. “Quando a gente começou a respirar, chegou a Covid-19 e aí foi mais difícil ainda. Aí a escassez de alimentos chegou porque a comunidade começou a comer o estoque que tinha e ficou sem condições de plantar”.
Para Moacir, a carta política das comunidades quilombolas com apoio da universidade dá mais credibilidade às demandas da população e ele espera que ajude a pressionar os governos por políticas mais eficazes.
“Quando a gente fala de segurança alimentar eu estou falando de tudo que envolve a alimentação, mas não só no campo nutricional. Estou falando dos nutrientes, mas de todo o processo que vai da produção ao consumo, do abastecimento e, inclusive, da educação alimentar. Porque as pessoas podem ter todas as condições de acesso e compra do alimento, mas elas podem não ter educação para escolher o melhor alimento para ela, fazer boas escolhas alimentares”, explica Reginaldo.
Por isso, o monitoramento dos últimos dez meses teve como objetivo acompanhar a situação da segurança ou insegurança alimentar e nutricional nos territórios, mas não se resumiu a identificar os problemas. A partir da escuta e encontros online com representantes das comunidades é que foram construídas as demandas para os poderes públicos.
As comunidades acompanhadas já participavam de outra pesquisa anterior e mais ampla para um “Diagnóstico de Segurança Alimentar e Nutricional das Comunidades Quilombolas no Estado de Pernambuco”, compreendendo o período de outubro de 2019 a fevereiro de 2020. A partir desse projeto maior, outras análises e relatórios sobre a SAN nas comunidades quilombolas serão divulgadas.
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Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.