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O “pente-fino” do INSS foi longe demais. Quase 3 mil brasileiros e brasileiras vivendo com HIV/Aids perderam a aposentadoria por invalidez desde 2017. Muitas dessas pessoas estão na faixa dos 50 ou 60 anos de idade e fora do mercado de trabalho há mais de uma década. Recorrer ao Judiciário muitas vezes também não tem funcionado. Parte dos juízes vem alegando, já em segunda instância, que essas pessoas ainda estão em idade produtiva, não têm sinais aparentes da doença e vivem em centros urbanos, o que facilitaria conseguir uma vaga de emprego. Na prática, porém, o cenário é bem diferente.
Francisco (nome fictício) completa 57 anos em outubro, foi diagnosticado com HIV em 1993 e a doença se manifestou em 2003. No ano seguinte, ele teve que deixar o emprego de gerente de posto de gasolina porque não conseguia mais trabalhar. Perdeu o benefício em 2018, quando foi chamado para uma reavaliação pericial. Mesmo tendo levado todos os laudos médicos dizendo que não tem condições de se manter num emprego, ele teve a aposentadoria de R$ 3,6 mil cancelada.
“Eu com essa idade, quem vai me dar emprego? Uma pessoa sadia não consegue, imagina eu”, lamenta em conversa com a Marco Zero Conteúdo. “Tenho depressão e os efeitos colaterais dos antirretrovirais também são muito fortes. Sinto tonturas e dores musculares, tenho problemas gastrointestinais, sofro de insônia ou de sonolência e tenho dislipidemia (elevação de colesterol e triglicerídeos). Tudo isso faz com que eu não consiga me manter no emprego”, relata Francisco.
Qual a diferença entre HIV e Aids?
HIV é a sigla para Vírus da Imunodeficiência Humana. É o vírus que pode levar à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a Aids.
Foram alvo do “pente-fino” do INSS beneficiários que estavam há dois anos ou mais sem passar por revisão. Ficou de fora quem tinha mais de 60 anos ou quem tinha 55 anos e recebia benefício há mais de 15 anos. Francisco estava bem perto, era beneficiário há 14 anos e 8 meses. Ele agora aguarda o resultado da segunda instância judicial.
As revisões e os cortes de Benefícios de Prestação Continuada (BCPs), de auxílio-doença e de aposentadorias tiveram início ainda no governo de Michel Temer (MDB) e foram acentuadas no governo de Jair Bolsonaro (PSL). Este ano, a Lei 13.846 (conversão da Medida Provisória nº 871) designou os programas para analisar benefícios com indícios de irregularidades e revisar benefícios por incapacidade.
A lei também formalizou a carreira de perito judicial e instituiu os bônus de desempenho para os servidores que realizam essas análises e perícias. Cada servidor recebe R$ 57,50 por análise de benefício com indícios de irregularidade e R$ 71,72 por perícia médica em benefícios por incapacidade.
De dezembro de 2017 até agora, a ONG recifense Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero soma 35 ações desse tipo na Justiça. Desse total, 20 são de aposentadoria por invalidez cessadas, em casos semelhantes ao de Francisco, sendo que apenas sete tiveram êxito – em dois casos ainda cabe recurso na terceira instância, o Supremo Tribunal Federal (STF). Os outros 15 casos que a Gestos tem em mãos são referentes a perdas de auxílio-doença, sendo apenas três com êxito até o momento. Os demais casos, tanto de aposentadoria quanto de auxílio, ainda tramitam na Justiça.
“Isso sem contar com as 14 pessoas que chegaram recentemente, mas que os casos ainda não foram ajuizados, pois estamos reunindo toda a documentação necessária”, acrescenta a advogada da Gestos Kariana Guérios. “Isso é só uma pequena amostra, são pessoas que procuraram a Gestos. A tendência é crescer. A cada 15 dias, quando atendemos, sempre tem gente nos procurando sobre esses direitos”, alerta.
“Tem muita gente abandonando o tratamento porque não tem o que comer. O trabalho do governo em incentivar as pessoas a aderirem ao tratamento pode estar indo por água abaixo”, adverte Kariana.
Francisco também chama a atenção para o quadro que vai além do preconceito pela doença: “Quando você olha para uma pessoa vivendo com HIV/Aids, você acha que ela tem condições de acessar o mercado de trabalho. Mas temos que entender que quem vive com doenças crônicas é diferente. Tem o preconceito e a discriminação, hoje não tanto pela doença, mas pelo afastamento constante do emprego, para buscar medicamento, ir a consultas, fazer exames e por conta dos efeitos dos remédios”.
A esperança agora é a Lei Renato da Matta (Lei 13.847), que entrou em vigor recentemente e dispensa as pessoas com HIV/Aids de reavaliação pericial. A lei é oriunda de um projeto do senador Paulo Paim (PT-RS) que foi aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, mas vetado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). Em junho, o Congresso derrubou o veto presidencial.
Ao rejeitar o projeto, Bolsonaro havia argumentado que ele estabelece presunção legal vitalícia de incapacidade, desconsiderando as peculiaridades de cada caso e os avanços da medicina.
Em conversa com a reportagem, Renato da Matta, que é um cidadão com HIV/Aids, ativista e presidente da Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos, adianta que, ao menos no Rio de Janeiro e em São Paulo, alguns beneficiários que perderam o direito começaram a ter ganho de causa. “Acredito que a tendência é unificar a decisão”, espera ele, pontuando a possibilidade de prejudicar um grupo de pessoas, já que a norma não abarca quem perdeu o benefício antes da publicação da lei.
“Desde a MP 871 (de revisão de benefícios), em 2017, quando propus a lei, várias pessoas perderam os benefícios e não conseguem se reinserir no mercado, seja pela idade, pelo preconceito ou por falta de atualização. Além de que muita gente tem baixa escolaridade. Diversas pessoas estão agora vivendo de favor, desenvolveram a doença ou até foram a óbito”, relata da Matta, lembrando a importância de os casos chegarem ao STF. Isso porque há um entendimento de uniformização em sintonia com a Lei Renato da Matta.
A Súmula nº 78 diz: “Comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença”. Ou seja, não basta analisar apenas o quadro médico, a idade e a aparência de quem vive com HIV/Aids.
10.455 benefícios de aposentadoria por invalidez por conta do diagnóstico de HIV/Aids foram revisados
9.467 segurados desses total realizaram perícia médica
5.574 benefícios foram mantidos
3.893 benefícios foram cortados
988 benefícios desse total de cortes foram cessados por não atendimento à convocação, óbito do titular, revisão da decisão judicial que concedeu o benefício, entre outros motivos
2.905 pessoas, portanto, tiveram o benefício cortado após revisões periciais
339 segurados que recebiam aposentadoria por invalidez e passaram pela revisão pericial tiveram sugerida a majoração de 25% no valor já recebido
23.345 pessoas recebem aposentadoria por invalidez atualmente no Brasil por causa do HIV
Os dados referem-se a Lei nº 13.457, de 26 de junho de 2017, que definiu o prazo de validade das revisões de dois anos, contados a partir da edição da MP 767. Portanto, o Programa de Revisão dos Benefícios por Incapacidade e Assistenciais (PRBI) foi concluído em 6 de janeiro de 2019. Não foram realizadas novas revisões após essa data. Há expectativa para que a nova rodada de chamamentos comece em breve.
(Fontes: Ministério da Economia e INSS)
O trâmite na Justiça
A Marco Zero Conteúdo entrevistou por e-mail o juiz Jorge André de Carvalho, da 1ª relatória da 2ª turma recursal da Justiça Federal em Pernambuco para conhecer o entendimento dele e saber mais sobre o trâmite desses casos no judiciário. Confira:
MZ: De modo geral, qual tem sido o entendimento do senhor e do judiciário sobre os casos de pessoas vivendo com HIV/Aids que perderam aposentadoria por invalidez ou auxílio doença e têm recorrido na Justiça para reaver os benefícios?
Jorge André de Carvalho: Infelizmente não tenho como falar do entendimento do Judiciário como um todo, porque isso exigiria uma pesquisa empírica quali-quanti que não tenho como fazer. A particularidade do HIV, no momento, tem sido apenas para os casos de concessão do benefício pela primeira vez. É raro algum caso no qual o perito judicial diga que o portador do HIV está fisicamente incapaz. A rigor, então, o benefício deveria ser negado, por ausente um dos requisitos.
Todavia, seguindo precedente da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, de Brasília, mesmo nesses casos a concessão ou não do benefício tem dependido de circunstâncias específicas de cada caso que demonstrem ou não uma alta possibilidade de negativa de emprego em decorrência do estigma da doença.
MZ: O sr acha que uma pessoa na casa dos 50 ou 60 anos, fora do mercado há 10 ou 15 anos e que precisa conviver com os efeitos colaterais das medicações retrovirais, além da ida constante a médicos e exames e possíveis doenças associadas ao vírus, tem condições de voltar ao mercado de trabalho no contexto atual do Brasil?
Jorge André de Carvalho: É uma questão muito pessoal, de maneira que, falando apenas por mim, nem mesmo pela Turma da qual faço parte, acho que no Brasil atual uma pessoa “sadia”, na casa dos 50 ou 60 anos, fora do mercado de trabalho há 10 ou 15 anos, dificilmente conseguirá voltar ao mercado formal. Isso, porém, por si só, de acordo com a legislação vigente, na minha opinião não é suficiente para a obtenção de um benefício previdenciário.
MZ: O sr tem números de quantos recursos desse tipo de já julgou e quantos tiveram resultados favoráveis e contrários?
Jorge André de Carvalho: Na 2ª TRPE nenhum advogado até o momento pediu restabelecimento de benefício apenas com base na alegação de que a concessão anterior tinha sido decorrente de HIV. Ainda que isso tivesse ocorrido, não teria os números, porque o sistema eletrônico não os apresenta, o que exigiria uma complicada análise manual.
MZ: A promulgação da Lei Renato da Matta muda o entendimento de que falamos na pergunta 1? Por quê?
Jorge André de Carvalho: Ainda não temos registro de processo com alegação de necessidade de restabelecimento do benefício com base na referida Lei Renato da Matta, razão pela qual a 2ª Turma Recursal de Pernambuco ainda não tem precedente sobre a mesma.
MZ: Se mudar, essas pessoas tendem a conseguir os benefícios retroativos, desde a época em que o pagamento foi cancelado?
Jorge André de Carvalho: Independentemente do fundamento, se ficar provado que o cancelamento do benefício foi indevido, a tendência é de que o seu restabelecimento seja retroativo à data de cancelamento sim. Isso tem acontecido com todos os outros, ressaltando, porém, a necessidade de prova de que realmente os requisitos legais para a sua manutenção sempre estiveram presentes.
MZ: Em média, quanto tempo esse tipo de julgamento tem demorado, desde a entrada até a última instância?
Jorge André de Carvalho: O nosso sistema infelizmente não nos fornece o tempo médio de duração de um processo. Na minha relatoria, porém, eu asseguro que a média não chega nem a 60 dias. Não tenho dados concretos sobre o tempo médio de duração dos processos nas outras relatorias da minha turma, tampouco das outras Turmas.
Mas é preciso saber que o sistema recursal brasileiro é extremamente complexo. As nossas causas são, de acordo com a lei, de menor complexidade, mas temos 6 graus de jurisdição: 1) o segurado ajuíza uma ação que é distribuída para uma vara federal; 2) proferida a sentença, a parte vencida irá recorrer para uma das Turmas Recursais; 3) Então, o vencido, a depender da situação, poderá recorrer à Turma Regional de Uniformização; 4) Também pode ir à Turma Nacional de Uniformização, esta já em Brasília; 5) Mas depois também pode ir ao STJ (em Brasília); 6) e, como sabemos, ainda pode ir ao STF.
O acesso aos órgãos recursais é praticamente gratuito para os entes públicos e totalmente gratuito para a maioria dos particulares, por estarem acobertados pela justiça gratuita. Evidentemente, não são poucos os que se utilizam de todas as instâncias, fazendo o final do processo demorar bastante.
Atualizado às 16h20
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com