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Judiciário tem sido o grande parceiro das mulheres trans contra violência, afirma pesquisadora

Maria Carolina Santos / 20/07/2021

Crédito: Acervo pessoal/Célio D'Ávila

Os assassinatos brutais de quatro mulheres trans em um espaço de 20 dias colocaram a transfobia novamente em evidência em Pernambuco. É um problema antigo: o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Desde 2017, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) e o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) produzem em conjunto um dossiê sobre os assassinatos da população trans. Foram dois anos seguidos com queda nos registros, até que em 2020, em plena pandemia, veio um recorde: 175 assassinatos.

Os seis primeiros meses de 2021 também acenam com números alarmantes. De janeiro a junho, o dossiê registrou 80 assassinatos, sendo 78 travestis e mulheres trans e dois homens trans/transmasculinos. Para comparar, a pesquisa anual da Human Rights Campaign aponta 29 assassinatos nos Estados Unidos no mesmo período, um país com quase o dobro da população brasileira.

A vítima mais jovem deste ano no dossiê preliminar tinha apenas 13 anos. O boletim semestral aponta também que entre as vítimas apenas 12 (cerca de 15%) ultrapassaram a estimativa média de vida de uma pessoa trans no Brasil, que é de apenas 35 anos.

O dossiê é assinado pelas pesquisadoras Bruna Benevides e Sayonara Nogueira. Por telefone, de Uberlândia (MG), a professora universitária e ativista Sayonara conversou com a Marco Zero sobre violência e políticas públicas para a população trans.

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Entrevista// Sayonara Nogueira

Marco Zero ConteúdoDesde 2014 você faz um levantamento de violência contra pessoas trans, pelo IBTE, antes mesmo do dossiê da Antra. Qual o perfil das vítimas desde que você começou esse acompanhamento? Houve mudança no perfil?

Sayonara – Os perfis são os mesmos. Você vê um decréscimo na idade. A gente falava antes em 35 anos (média de idade das vítimas) e hoje podemos perceber que está na faixa dos 25-27 anos. Quem morre mais é a mulher trans preta, periférica e principalmente a trabalhadora sexual. Esse é o perfil que marca.

Por que o Brasil continua como o país que mais mata mulheres trans?

É um problema cultural. Eu atribuo ao nosso processo de colonização, de exploração. E tivemos o desenvolvimento de uma sociedade extremamente machista, patriarcal. Isso reflete nos números porque esse tipo de assassinato é uma violência de gênero. É tanto que você vê poucos dados de homens trans. Existem homens trans que são assassinados? Existem, mas são poucos em relação às mortes de travestis e mulheres trans, porque é uma violência de gênero. É uma mulher que está sendo assassinada. Isso é tudo é reflexo da nossa sociedade, desde o processo de colonização.

Como você acredita que o Brasil pode mudar esses números?

Com políticas públicas de equidade de gênero. As leis já existem. O Brasil é muito avançado no seu arcabouço jurídico. Temos lei de educação inclusiva, a Lei Maria da penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), temos inúmeras leis, mas continuamos matando. Faltam mecanismos para que haja uma inclusão da nossa população dentro da sociedade. Porque não basta incluir, tem que permanecer também. Encontramos ainda um processo de evasão escolar muito grande e um mercado de trabalho, que não está aberto. E aí essa pessoa tem como condição única de mantimento o trabalho sexual. E é onde essa violência está acontecendo, a maior parte dela.

Quais políticas públicas que dão mais resultado?

Gosto muito das políticas de ações afirmativas. Podemos falar das cotas. Estamos vendo algumas empresas e universidades cumprindo essas cotas. E aí a pessoa tem outra perspectiva de vida, porque a exclusão começa dentro de casa. A parti do momento que a pessoa transiciona de gênero, que a família vê que ela vai romper com o binarismo de gênero, a própria família exclui da sociedade. E aí é um efeito dominó: é a escola, é o mercado de trabalho. O único lugar que vai acolhê-la é a rua.

E geralmente essa exclusão começa muito cedo?

Sim, são pessoas com 14, 15 anos sendo expulsas de casa. E aí você imagina essas pessoas tão jovenzinhas, adolescentes expostas na rua. Elas vão ser acolhidas por pessoas perversas, que vão explorá-las sexualmente. E cadê o ECA? A legislação existe. O ECA não deveria apoiar essa criança ou adolescente que está sendo expulsa de casa? Não existe um artigo que vai punir os pais? Mas para a comunidade trans a lei não se aplica? Onde estão os conselhos tutelares? Qual o papel dos conselhos? A legislação existe, mas não está sendo efetiva. Ou ela está sendo efetiva só para um grupo de pessoas. O Estado precisa criar mecanismos de acolhimento. Oferecer tratamento psicossocial e educação mesmo. As pessoas estão adoecendo mentalmente também.

O dossiê também faz um levantamento dos suicídios entre a população trans. Como é feito isso?

Nesse ano, nos detectamos nove suicídios. O monitoramento dele é muito difícil, porque não se fala em suicídio, principalmente no meio jornalístico. Nós também não publicizamos esses dados porque eu mesmo tenho medo de publicizar isso e uma pessoa ler e já ter uma ideação suicida e possa fazer a mesa coisa. Mas isso vem de todo esse processo de exclusão. Toda essa morte social que a pessoa sofre que vai levá-la ao suicídio. Eu sempre falei: a morte começa antes do tiro. O gatilho é a etapa final. Roberta, queimada viva no Recife, já sofria uma morte social, estava em situação de rua. O que aconteceu, o atear fogo, foi a última etapa do processo de morte dela, mas ela já estava em processo de morte social. E aí as pessoas são tão perversas que ainda vai escutar que “a pessoa está na rua porque quer”. E não é assim. O que levou aquela pessoa a ficar em uma situação de rua? É todo um processo que empurra para essa situação. Você mata a pessoa duas vezes.

Isso tem piorado nos anos de governo Bolsonaro?

Sim, porque ele reverbera e tutela isso. A pessoa que tem esse preconceito enraizado dentro vai usar a “liberdade de expressão” como um manto para encobrir esse preconceito e a violência dele. Esse caso desse apresentador Sikêra é isso. Ele realmente pensa tudo isso que ele fala. Mas ele não falaria isso sozinho. Ele apoia um chefe de estado que tutela aquilo e, por isso, se sente confortável em falar o que fala e justificar como “liberdade de expressão” para cobrir o crime LGBTfóbico que ele cometeu. Quando você estimula as pessoas, acaba indo para ouro tipos de violência. A câmara de vereadores de Maringá vetou o uso do nome social na administração pública. Nome social é algo pacificado, não precisa nem ir mais à justiça, faz no cartório mesmo. E pessoas que são pagas para legislar para a sociedade rejeita um projeto desse, é uma violação dos direitos humanos. E o que a gente tem que fazer? Judicializar. O Judiciário tem sido nosso grande parceiro, com as defensorias públicas e os ministérios públicos. O próprio STF. O que temos mais recentemente de avanço foi o STF quem interferiu.

É difícil conseguir dados sobre a violência contra as pessoas trans?

Há um esvaziamento de dados sobre a população LGBTQIA+. E isso é proposital do governo atual. Ele criou o slogan de que somos todos iguais, e isso para mim é um desserviço. Nós não somos todos iguais. Mas é tudo orquestrado, para realmente assassinar a gente.

O dossiê aponta que os assassinatos contra as mulheres trans e travestis são bastante violentos e geralmente com mais de um método. A que você atribui isso?

São assassinatos com requintes de crueldade. São corpos-objetos, desprezados e ao mesmo tempo objetificados. Vemos mortes por espancamento, tortura, facadas tiros, É uma forma de realmente eliminar o copo trans: os corpos muitas vezes estão completamente desfigurados. Em 2019, a maioria das vítimas tiveram os rostos desfigurados. Tijoladas, garrafadas, pauladas, sempre no rosto. É uma forma de eliminar e apagar essa identidade. É um corpo também não chorável. Nós pessoas trans no brasil ainda somos pessoas de segunda categoria.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org