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Julho das Pretas marca constante movimento de salvaguarda e resgate de memórias das mulheres negras

Giovanna Carneiro / 25/07/2024
Foto de Etiene Martins ao lado das estátuas de Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez, esculpidas na cor marrom e instaladas em um parque público, cercadas de plantas e árvores.

Crédito: Acervo Pessoal / Etiene Martins

Há 32 anos, aconteceu o 1º Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas. Na ocasião, grupos de mulheres negras se reuniram para debater as consequências das violências racistas e machistas, firmando ao final um pacto para combater os efeitos dessas mazelas sociais fruto da colonização. Foram essas mulheres que propuseram à Organização das Nações Unidas (ONU) que 25 de julho fosse reconhecido como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.

A data que lança luzes sobre a luta das mulheres negras em constante articulação na América Latina e no Caribe tem ganhado mais visibilidade na última década, a ponto de todo o mês de julho ser conhecido no Brasil como Julho das Pretas, um período marcado por diversas atividades em torno do combate ao racismo e ao machismo. Além disso, desde 2014, o dia 25 de julho passou a ser o Dia Nacional de Tereza de Benguela, uma homenagem à líder quilombola que ajudou a libertar comunidades negras e indígenas da escravidão no século 18.

O reconhecimento de lideranças negras e a preservação da memória de suas lutas e articulações em torno do antirracismo em diferentes contextos históricos é um dos principais motes para a incidência destas datas que retomam a consciência coletiva sobre determinados episódios, personas e conflitos.

Atualmente, além destas datas, mulheres negras – sobretudo escritoras e pesquisadoras – têm se articulado para criar outros mecanismos que possam salvaguardar a memória de seus feitos. Essas mulheres estão preocupadas em garantir que a história do povo negro no Brasil seja contada pelas próprias pessoas negras e não sob a ótica dos colonizadores, como comumente acontecia.

Afinal, como defendeu a historiadora negra Beatriz Nascimento: “a história do Brasil foi uma história escrita por mãos brancas. Tanto o negro quanto o índio, quer dizer, os povos que viveram aqui juntamente com o branco, não têm sua história escrita ainda. Isso é um problema muito sério, porque a gente frequenta universidades e escolas e não tem uma visão correta do passado da gente, do passado do negro. Então, ela [a história] não foi só omissa, ela foi mais terrível ainda na parte que ela negligencia fatos importantes e deforma muito a história do negro”.

A literatura escreve o que a história tenta apagar

“Sabe quando a gente descobre algo muito bom e quer dividir com todo mundo, mas não tem condições? Por exemplo, a partir do momento que a gente descobre quem foi Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, a gente quer partilhá-las com outras pessoas. Então, seria muito bom se a gente pudesse comprar um livro de cada uma delas para dar para as mulheres negras que convivem com a gente, mas que tem uma limitação financeira e até de leitura. Foi muito dessa motivação que nasceu a ideia do projeto das estátuas”.

A mestre em relações raciais, Etiene Martins, foi responsável por realizar o projeto que viabilizou a instalação das estátuas de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus no Parque Municipal de Belo Horizonte, no centro da capital mineira. As autoras foram as primeiras mulheres negras a integrar o Circuito Literário de estátuas da cidade de Belo Horizonte, que também é formado por nomes como Carlos Drummond de Andrade.

Como enfatiza Etiene, a iniciativa tem por objetivo dar visibilidade às histórias de vida dessas mulheres, que são referências nos campos acadêmicos e literários, e preservar a memória de seus feitos, além de possibilitar que mais pessoas possam ter contato e conhecimento sobre as suas obras: “desde que eu entrei na universidade e passei a ter mais contato com os movimentos sociais, notei o quanto conhecer a história das pessoas negras mudou a minha vida, uma história do Brasil contada por pessoas negras e não pelos brancos, por isso a importância de que mais pessoas negras possam vivenciar isso também”.

Foto de várias pessoas negras, com roupas coloridas, em torno de duas estátuas de mulheres negras esculpidas na cor marrom. No centro da imagem, um homem negro, idoso, de barba branca e óculos escuro, abraça uma das esculturas.

Rubens, filho de Lélia Gonzalez, abraçando a estátua da mãe.

Crédito: Acervo Pessoal / Etiene Martins

A idealização do projeto de inclusão das estátuas de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus no circuito literário de Belo Horizonte surgiu quando Etiene Martins viu pela primeira vez a estátua de bronze de Mercedes Baptista, a primeira bailarina negra a compor o baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que está instalada na Praça Mauá, no centro da capital carioca. “Depois que eu vi a estátua de Mercedes, fui atrás da história dela, que até então eu não conhecia e isso me despertou sobre o poder que esses monumentos têm na transmissão do conhecimento também, além do resgate de uma memória”, disse Martins.

Projetos como o de Etiene são pioneiros quando refletimos sobre questões de reconhecimento e representatividade de mulheres negras em espaços oficiais de referência e homenagem como a construção de monumentos.

“O reconhecimento vem de uma ideia de que você é precioso e valioso para algo e as mulheres negras não são vistas como valiosas e preciosas, são vistas como força de trabalho, então a gente vai criando uma sociedade que vive uma grande mentira. […] Essa ausência de reconhecimento de intelectuais negras faz com que as meninas e mulheres negras não tenham perspectiva de vida e de futuro para além da sobrevivência e do básico e tudo isso é um mito criado e perpetuado que nós precisamos mudar”, declarou a antropóloga Thayane Fernandes.

À prova disso temos o Circuito de Poesia do Recife, que atualmente é composto por 18 monumentos em homenagem a “grandes nomes da cultura pernambucana” – de acordo com informações do site da prefeitura – e que não possui nenhuma mulher negra representada. Apenas duas mulheres brancas integram o circuito: a jornalista Celina Holanda e a escritora Clarice Lispector.

Casas de ativistas que resguardam memórias

Em entrevista à Revista Trip, a escritora Conceição Evaristo expôs seus incômodos em ter demorado tantos anos até ver seus trabalhos reconhecidos, com livros publicados e distribuídos pelas editoras.

“Será que, se eu fosse uma escritora branca, vinda de uma situação financeira não tão dolorosa como a de que eu vim, teria tido tanta dificuldade para publicar? Será que já não estaria nessas feiras literárias muito antes?”, questionou a autora.

Sabendo das dificuldades que o racismo impõe sobre a sua vida e seu trabalho enquanto escritora, Conceição Evaristo inaugurou há pouco mais de um ano o projeto Casa Escrevivência.

Com o objetivo de manter pulsante os trabalhos da autora negra, com o acervo de seus livros, e também ser um local para pesquisa e discussão sobre a literatura negra, a Casa Escrevivência está localizada no bairro da Saúde, região central da cidade do Rio de Janeiro. A questão central do projeto está focado em um processo de preservação da memória da história de pessoas negras que possuem grande relevância nos debates de raça e gênero no Brasil, como a própria Conceição Evaristo.

“Enquanto população preta no Brasil, a gente tem uma grande dificuldade que é lidar com a memória, que é lidar com o passado. Então, esses espaços de preservação de memória, de resgate também da memória de pessoas que já foram importantes, mulheres e homens intelectuais, faz com que a gente não esqueça quem foram as pessoas que vieram antes de nós e o legado que elas deixam, as contribuições que elas deixam para a sociedade brasileira, para o pensamento social brasileiro. E, sobretudo, faz com que a gente consiga replicar. A Casa Escrevivência e a Casa Sueli Carneiro são isso, modelos de espaços replicáveis”, enfatizou Thayane Fernandes.

Em um movimento semelhante ao de Conceição Evaristo, a filósofa e também escritora Sueli Carneiro, inaugurou ainda neste ano a Casa Sueli Carneiro, esta localizada no bairro Jardim Rizzo, em São Paulo.

A sede da instituição que tem fica no imóvel onde Sueli morou por 40 anos. O objetivo é “manter, cultivar e expandir o legado da militante e intelectual Sueli Carneiro, do movimento de mulheres negras e do movimento negro brasileiro, a partir da memória, cultura, educação e incidência política”.

Foto em close de Sueli Carneiro: mulher negra, sorridente, de cabelos trançados e óculos de aro azul, com dois grandes brincos triangulares pendentes.

Sueli Carneiro transformou sua casa em centro de formação

Crédito: André Seiti/Divulgação

Doutoranda, Thayane Fernandes foi aluna de Sueli Carneiro durante um intercâmbio e, recentemente, participou de uma residência na Casa Sueli Carneiro:

“Para mim, quando eu conheci a Sueli, eu vi uma pessoa, uma pessoa para eu me espelhar, alguém para eu sentir conforto, uma mestra. Eu acho que nós, mulheres negras intelectuais, precisamos muito de mestras porque não há passado para a gente que retrate a força das mulheres intelectuais negras, então, esse acaba sendo um espaço extremamente solitário. No Nordeste, há uma grande dificuldade nas mulheres pretas de se considerarem intelectuais, ainda mais do que no eixo de poder no Sul Sudeste. Eu tive algumas mestras ao longo da minha carreira, mulheres brancas, e só agora eu encontrei uma mestra negra que me deu a mão”, que me abraçou, de fato, literalmente, que dedicou seu tempo para mim, que chorou comigo quando foi preciso”.

Conheça mais sobre as autoras e intelectuais negras citadas

Beatriz Nascimento 

Maria Beatriz Nascimento, mulher, negra, sergipana, mãe, historiadora, roteirista, poeta, ativista: foi impulsionadora de debates no movimento negro e contribuiu de forma singular para o pensamento social brasileiro. A pensadora fez graduação em História (1968-1972) e especialização (1979-1981) na UFRJ. Além disso, iniciou o curso de mestrado em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Parte de sua pesquisa, realizada de maneira independente de qualquer instituição acadêmica, consistia em observar — em campo e via documentação — os quilombos como sistemas alternativos à estrutura escravista, com potencial continuidade em favelas, particularmente no caso do Rio de Janeiro.

Lélia Gonzalez 

Lélia Gonzalez nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1º de fevereiro de 1935. Tinha 59 anos quando faleceu, em 10 de julho de 1994, no Rio de Janeiro. Intelectual, autora, ativista, professora, antropóloga e filósofa e com papel importante na fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial. É uma grande referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe, sendo considerada um dos principais nomes do feminismo negro no país com trabalhos que abordam perspectivas interseccionais. Um de seus primeiros trabalhos foi o artigo Mulher negra: um retrato. Na década de 1980, publicou seu primeiro livro, Lugar de negro, em parceria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg. 

Carolina Maria de Jesus 

Semianalfabeta e catadora de papelão, Carolina Maria de Jesus é uma das escritoras mais lidas do Brasil. Quarto de despejo, seu primeiro livro lançado na década de 60, é uma das obras mais marcantes da literatura brasileira, e vendeu mais de 3 milhões de livros em 16 idiomas.

A autora também era cantora, cronista, compositora, roteirista e artista têxtil, e é considerada uma das vozes mais emblemáticas da literatura brasileira por trazer à tona uma realidade muitas vezes silenciada das favelas e comunidades marginalizadas.

Conceição Evaristo 

Maria da Conceição Evaristo de Brito é uma escritora brasileira, autora de livros como Ponciá Vicêncio, seu romance mais famoso. Suas obras, pertencentes à literatura contemporânea, são caracterizadas pelo protagonismo feminino e pela denúncia de discriminação racial. Em março de 2024, tomou posse como “imortal” da Academia Mineira de Letras, ocupando a cadeira número 40. Conceição Evaristo nasceu em 29 de novembro de 1946, em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. Trabalhou como empregada doméstica, se tornou professora e fez faculdade de Letras, além de mestrado e doutorado. 

Sueli Carneiro 

Aparecida Sueli Carneiro é uma reconhecida filósofa e ativista do movimento negro e feminista brasileiro. Ela foi  fundadora do Instituto Geledés – Instituto da Mulher Negra – e é doutora em Filosofia da Educação pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo).  A vasta produção intelectual de Sueli Carneiro é constituída por sua tese de doutorado, artigos, ensaios, capítulos de livros, falas em seminários, em fóruns e em audiências públicas. Em seus escritos, Carneiro aborda temas cruciais para se pensar o Brasil contemporâneo: o conceito de dispositivo de racialidade, o epistemicídio, o mito da democracia racial, a proposição de um feminismo negro brasileiro e a concretização dos direitos humanos. 

 

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.