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Justiça de Pernambuco manda despejar agricultor do sítio onde ele vive desde que nasceu

Marco Zero Conteúdo / 01/06/2023
Foto de corpo inteiro de homem vestindo camisa azul, no meio de uma propriedade rural, entre coqueiros espalhados no terreno e junto a um córrego.

Crédito: Divulgação/CPT

Desde que nasceu Severino Amaro Wanderley, 45 anos, mais conhecido como Ramos, mora no sítio da família, no Engenho Batateiras, em Maraial. Irmãos se mudaram, o pai faleceu há alguns anos. E Ramos permanece no sítio de 28 hectares adquirido pelo avô. Lá, ele planta milho, capim, bananeiras e, o que mais gosta, cuida de algumas cabeças de gado. Por decisão da Justiça, Ramos pode perder o sítio da família a qualquer momento. 

A história dele envolve os longos e violentos conflitos por posse de terra na Zona da Mata pernambucana, mas também uma decisão judicial, no mínimo, inusitada. 

A tensão pelas terras do Engenho Batateiras se avolumou a partir de 2020, quando a empresa IC Consultoria e Empreendimentos Imobiliários comprou os 960 hectares do engenho. Diversas famílias moravam lá há décadas, como posseiras. Muitas pagavam Imposto Territorial Rural (ITR) e tinham o Cadastro Ambiental Rural (CAR). 

Mesmo assim, foram vítimas de intimidações, ameaças e cercamentos, como mostrou essa reportagem da Marco Zero em 2020. Plantações e cercas foram destruídas. Novas cercas e porteiras, fechadas, foram colocadas. Capangas andavam armados.

De lá para cá, muitas famílias abandonaram suas terras por medo da violência ou porque fizeram acordos com o empresário. Das mais de 25 famílias que eram acompanhadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), apenas cinco permanecem por lá. 

Ramos é um desses cinco. Para legalizar sua permanência no sítio que está há décadas com a família, ele, com a ajuda do CPT, entrou com uma ação na Justiça pedindo o usucapião das terras. 

Na primeira instância, foi concedida uma liminar de manutenção de posse para resguardar o seu sítio contra as investidas do empresário enquanto o processo não fosse definitivamente julgado. 

Mas em 2021 a decisão foi reformada pela 2ª Câmara Cível e aí começou um pesadelo: não só o desembargador relator Stênio Neiva Coêlho negou o usucapião de Ramos como concedeu, na mesma decisão, uma ordem de reintegração de posse para o empresário, que nem sequer havia solicitado isso. 

Agora, é uma corrida contra o tempo para preservar o sítio de Ramos. Isso porque, na sexta-feira passada, a juíza Carolina de Almeida Pontes de Miranda, da Vara Única da Comarca de Maraial, ordenou a execução imediata da reintegração de posse em favor do empresário e notificou a Polícia Militar para realizar a desapropriação, dando um prazo de cinco dias, que se encerra amanhã. “Acho que a polícia ainda não foi por conta das fortes chuvas na região, que deixaram as estradas muito ruins”, diz o agente pastoral da CPT Geovani Leão, que visitou o sítio de Ramos ontem. 

Para a advogada Mariana Vidal Maia, assessora jurídica do CPT, a decisão da Justiça é um absurdo. “Viola o princípio de que o judiciário tem que ser inerte: ele não pode agir se não for provocado. A parte contrária sequer formulou um pedido de reintegração de posse a favor dele, contra o agricultor. E a decisão deu essa ordem, sem nem ser pedida”, explica. 

“Outra coisa é que, em processo de usucapião, isso não pode acontecer. Mesmo que ao final do processo o judiciário entendesse que ele não preenchia os requisitos para o usucapião, e sem mais possibilidade de recorrer, mesmo assim isso não daria o direito para, nos autos do processo de usucapião, o Judiciário conceder uma ordem de reintegração de posse em favor da parte contrária. Ele teria que entrar com outro processo”, afirma a advogada. 

O CPT divulgou na noite de ontem um artigo sobre o caso, do ponto de vista jurídico: Quem controla o Poder Judiciário contra decisões abusivas e ilegais?

A CPT apresenta vários motivos para a ilegalidade da decisão:

  • A decisão é nula, em razão de o Ministério Público não ter sido intimado anteriormente para intervir nos autos, como determina a lei de usucapião especial rural.
  • Não foram feitos levantamentos das benfeitorias para posterior indenização.
  • Houve a extrapolação dos limites jurídico-processuais ao se determinar uma reintegração de posse dentro de uma ação de usucapião.
  • Houve descumprimento do Código de Processo Civil, uma vez que decisões liminares de reintegração de posse são vedadas quando a posse é comprovadamente antiga, como é o caso de Severino Amaro.
  • Se cumprido, o despejo violará outros direitos constitucionais e legais garantidos àqueles/as que possuem posse de mais de um ano e um dia.

Entre a decisão do desembargador em 2021 e a ordem da juíza na semana passada, a defesa de Ramos fez tudo o que poderia ser feito juridicamente. Mas quase nada foi apreciado. Há um recurso para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que segue pendente. “Não é que o STJ não analisou. É que o TJPE sequer analisou se o recurso vai subir ou não, porque está pendente de outro recurso que o Ministério Público também interpôs, porque o Ministério Público não foi intimado no processo, como deveria ter sido. No processo há uma série de recursos pendentes há muito tempo para serem analisados e julgados. Essa ordem vai ser cumprida com um monte de recurso pendente de análise?”, questiona Mariana Vidal.

Ramos tem pressa. Mesmo que a Justiça volte atrás depois, se ele chegar a ser retirado do sítio, pode não conseguir mais voltar: nos outros sítios em que as famílias saíram, a primeira coisa que o novo proprietário fez foi destruir plantações, cercas e construções. Ramos corre o risco de ficar sem casa. “Ele não tem parentes próximos. Outros agricultores do Engenho Batateiras que estão na mesma situação dele, esperando o usucapião das terras, já ofereceram abrigo”, diz Geovani Leão.

Nesta semana, a Defensoria Pública, o CPT e o MPPE fizeram movimentações para tentar reverter a decisão. Há um novo desembargador relator para o caso e a esperança é que ele possa ser sensibilizado pela história de Ramos e pelos erros cometidos no processo e possa reverter a decisão. “Estamos com uma certa esperança para suspender essa ordem”, diz Mariana Vidal.

A Marco Zero entrou em contato com a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) para solicitar uma resposta sobre o cumprimento da decisão mesmo com recursos pendentes e qual o motivo do Ministério Público não ter sido intimado nos autos. Assim que obter uma resposta esse texto será atualizado.

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