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Justiça suspende fechamento de residências terapêuticas no Recife

Laércio Portela / 08/05/2019

Crédito: Osvaldo Morais/Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial

Decisão da juíza Mariza Silva Borges, da 3a Vara da Fazenda Pública da Capital, na terça-feira (7), determina a suspensão imediata do fechamento de residências terapêuticas no Recife. Ela atendeu a pedido de antecipação de tutela em ação civil movida pela Defensoria Pública do Estado. No despacho, a juíza dá dez dias para que a Prefeitura do Recife se manifeste sobre o caso.

O fechamento das residências terapêuticas vem sendo organizado pela Coordenação de Saúde Mental do Recife, vinculada à Secretaria Municipal de Saúde, desde fevereiro deste ano e sofre ampla resistência de gestores, trabalhadores e usuários do sistema. As duas residências afetadas ficam nos bairros do Ipsep e da Ilha do Retiro. Numa delas vivem quatro homens e três mulheres e, na outra, seis homens.

Os moradores são pessoas com transtorno mental que, tendo vivido longo período de internação hospitalar, perderam o vínculo familiar. Nas residências, eles e elas são reintegrados ao convívio social e passam a realizar tarefas cotidianas que lhes garantem a retomada de diferentes graus de autonomia sobre suas próprias vidas. Existem 52 casas desse tipo no Recife que começaram a ser implementadas a partir de 2001 como parte da política de substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção integral à saúde mental.

Para entender o caso: Fechamento de duas residências terapêuticas acende o alerta de retrocesso na política de saúde mental do Recife

A transferência dos moradores das residências do Ipsep e da Ilha do Retiro para outras casas estava prevista para o dia 30 de abril, mas foi adiada por conta de manifestação do Ministério Público de Pernambuco. O adiamento foi acertado em audiência no MPPE comandada pelo promotora da Saúde Helena Capela, com a participação do secretário de Saúde do Recife, Jailson Correia, e representantes das coordenações de Saúde Mental do Recife e do Estado, no dia 4 de abril.

Os dois principais argumentos da Secretaria de Saúde para fechar as duas residências são o da redução de custos e o da falta de demanda importante por novas vagas. Esses pontos foram questionados pela Defensoria Pública do Estado na petição inicial da ação civil pública encaminhada à Justiça.

Demandas por mais vagas

Os defensores informaram à juíza que existem pessoas nascidas no Recife que ainda estão internadas em hospitais psiquiátricos em outras cidades e pessoas também do Recife e outros municípios detidas no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) com alta e alvará de soltura determinando sua inserção em tratamento ambulatorial, o que configuraria, na visão da Defensoria, “contínua necessidade” pelo serviço de residências terapêuticas.

Somam 65 os detentos do HCTP com alvará de soltura e aguardando transferência para as residências. Destes, sete são naturais do Recife. A Defensoria alerta que existem decisões judiciais da I Vara Regional de Execuções Penais da Capital determinando a inserção de cinco internos nas residências terapêuticas do Recife. Medida que estaria sendo descumprida pela Secretaria Municipal de Saúde. Esses internos são naturais de Escada, Santa Maria da Boa Vista, Flores, Panelas e outro encontrado em situação de rua em Ipojuca.

Os representantes da Secretaria Municipal de Saúde têm dito publicamente que já não cabe ao Recife receber em sua rede usuários de outras cidades, recordando que ação do tipo foi realizada até 2016 quando foram fechados os últimos hospitais psiquiátricos da capital e acolhidos todos os usuários crônicos independentemente da cidade de origem. Hoje, cerca de 400 remanescentes desses hospitais vivem nas residências terapêuticas do Recife.

Para a Defensoria, a abertura de residência terapêutica na capital aconteceu “sem vinculação” do uso desses serviços por pessoas naturais do Recife, portanto, “ainda que não houvesse demanda direta de naturais da Capital Pernambucana, tornar-se-ia imprescindível verificar as demandas de outros Munícipes, os quais, a depender da situação apresentada, poderiam usufruir do serviço, a exemplo do já determinado judicialmente nos processos de Execução apontados”.

Argumentam os defensores que o processo de desinstitucionalização ainda está em curso em Pernambuco, o que configura a necessidade contínua de retiradas de pessoas em “grave situação de abandono” e sua inserção no convívio social. Lembram ainda que existem 29 pessoas naturais do Recife internadas em hospitais psiquiátricos em processo de fechamento, localizados em outras cidades, que não possuem vínculos familiares. Desses, 10 estão no Hospital Colônia Professor Alcides Codeceira, em Igarassu; seis no Hospital São Luiz, de Surubim; e 13 no Hospital Colônia Vicente Gomes de Matos, em Barreiros.

Outro ponto crítico que preocupa os ativistas da luta antimanicomial no Recife é o fato de o fechamento das residências ter sido decidido de cima pra baixo, sem consultar previamente os usuários, o que fere alguns dos princípios do funcionamento das residências terapêuticas: dar autonomia, protagonismo e projeto de vida a pessoas que viveram por anos e até décadas internadas em hospitais psiquiátricos.

O coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado, Henrique da Fonte, disse que foram os relatos feitos por usuários e trabalhadores da Rede de Assistência Psicossocial do Recife contra o fechamento das residências, durante audiência pública na Câmara de Vereadores, coordenada pelo vereador Ivan Moraes (Psol), no dia 3 de abril, que motivou a DPPE a visitar as casas e conversar diretamente com os moradores que seriam afetados.

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Audiência pública na Câmara Municipal do Recife, em 3 de abril, debateu a política de saúde mental na cidade

“Conversamos com os moradores para entender os contextos em que essas pessoas estão inseridas, como estava sendo conduzido o processo de transferência e se elas estavam sendo ouvidas pela gestão. Também falamos com os técnicos de referência do serviço. A grande maioria demonstrou o desejo de continuar morando ali. Daí veio a decisão da ação civil pública. Para garantir o direito dos moradores”, explica Henrique.

Segundo relatado na petição feita pela Defensoria, os moradores têm forte vínculo entre si, construídos entre sete e dez anos de convivência cotidiana nas casas, e também com os vizinhos e outros moradores dos bairros. As caminhadas pela vizinhança foram citadas frequentemente como momentos de maior autonomia dos usuários. O encerramento das atividades dessas residências e a transferência dos moradores para outras casas romperiam os laços afetivos com os outros residentes, com o território e os trabalhadores e trabalhadoras do serviço.

“A Administração Municipal precisa efetivamente considerar a posição daqueles que serão os mais afetados pelas decisões tomadas antes de realizá-las. É notório o vínculo criado e a melhora no tratamento dos moradores das residências terapêuticas após o fechamento dos hospitais psiquiátricos, consoante relato das próprias técnicas ouvidas por ocasião das visitas institucionais. Ainda mais, ficam claras as consequências negativas do rompimento deste ciclo de melhoria ainda em meio ao tratamento. Porém, ainda mais importante que tudo isto, é que eles mesmos afirmam que querem ficar nos espaços onde consideram suas casas, com aqueles que consideram seus amigos há tantos anos”. Trecho da petição inicial assinada pelos defensores Henrique da Fonte, Ana Carolina Khouri e os estagiários Bruno Assis e Marcela Ciarlini.

“Ficamos muto felizes com a decisão da Justiça. Ela vem para garantir que o processo não seja concluído à revelia de quem vai ser atingido por ele. É simbolicamente importante que a decisão aconteça exatamente no mês de luta antimanicomial. Um dos nossos pedidos é justamente para que os moradores afetados sejam ouvidos pela Justiça”, explicou o coordenador de Direitos Humanos da DPPE. Consta também da petição o pedido de inspeção judicial nas residências.

Em paralelo à ação da Defensoria Pública corre inquérito movido pela Promotoria da Saúde do Ministério Público de Pernambuco. Em audiência no dia 4 de abril, a promotora Helena Capela designou um psiquiatra e uma analista de serviço social para visitar as duas residências que estão previstas de fechamento e as demais que podem receber os moradores. Assim como fez a Defensoria, o MPPE quer saber as condições do planejamento e execução das transferências e ouvir diretamente as pessoas afetadas. O relatório será apresentado pela promotora ao secretário de Saúde em nova audiência prevista para a próxima sexta-feira (10), quando o MPPE deve fazer nova manifestação sobre o caso.

O MPPE também está analisando as informações repassadas pela Secretaria Municipal de que seriam economizados R$ 500 mil por ano com o fechamento das residências.

Procurada pela reportagem para se posicionar sobre a decisão da juíza Mariza Silva Borges, da 3a Vara da Fazenda Pública da Capital, de suspender o fechamento das residências, a Secretaria Municipal da Saúde não havia se manifestado até o fechamento desse texto.

 

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República