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Liderança quilombola e do candomblé assassinada na Bahia havia pedido proteção ao STF

Marco Zero Conteúdo / 18/08/2023
Mãe Bernadete: mulher negra, de meia idade, com turbante claro, manta cinza sobre vestido colorido nas cores azul e branco, posa de perfil ao lado de uma planta espada de são jorge, com um fundo estampado rosa e lilás.

Crédito: site da Conaq

por Júlia Moa*

“Tem que ter uma pessoa que responda por nós, pelo amor de Deus! É uma mãe que está te pedindo. Olhem para esses territórios quilombolas, principalmente aqueles que são coordenados por mulheres. É uma covardia, é bala perdida, que agora virou moda. O quilombo precisa de vocês, eu peço justiça pela morte de Binho do Quilombo: Flávio Gabriel está entregue a Xângo”, declarou Maria Bernadete Pacífico, 72 anos, num encontro, ao lado de outras lideranças quilombolas da Bahia, com a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, no final de julho. Sofrendo recorrentes ameaças, ela foi assassinada brutalmente na noite de quinta-feira (17). 

A ialorixá, coordenadora nacional da (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) Conaq e líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, localizado no município de Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), foi morta por dois homens. Os assassinos usavam capacetes, entraram no terreiro de candomblé onde também funciona a associação quilombola e executaram a vítima com disparos de arma de fogo. Os bandidos fugiram levando os celulares dos presentes.

Na manhã desta sexta-feira, o filho de Bernadete, Wellington dos Santos, em entrevista à TV Bahia, disse que sua mãe foi assassinada com tiros no rosto.

No site oficial do STF, a ministra Rosa Weber cobrou que as autoridades da Bahia encontrem os autores do crime. “Lamento profundamente a morte de Maria Bernadete Pacífico, do Quilombo Pitanga dos Palmares, com quem me encontrei há menos de um mês juntamente com outras lideranças no Quilombo Quingoma, na Bahia. Mãe Bernadete, que me falou pessoalmente sobre a violência a que os quilombolas estão expostos e revelou a dor de perder seu filho com 14 tiros dentro da comunidade, foi morta em circunstâncias ainda inexplicadas. As autoridades locais devem adotar providências para o urgente esclarecimento e reparação do acontecido, a fim de que sejam responsabilizados aqueles que patrocinaram o covarde enredo e imediatamente protegidos os familiares de Mãe Bernadete e outras lideranças locais”, afirmou a presidente do STF.

Em setembro de 2017, outra perda significativa havia abalado a população negra da Bahia. O seu filho mais velho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos (Binho do Quilombo), foi morto aos 36 anos, alvejado por dez tiros, dentro do próprio carro, em frente à Escola Centro Comunitário Nova Esperança, em Pitanga dos Palmares.

Mãe e filho defendiam os direitos dos povos quilombolas e eram vozes ativas na luta pela regularização fundiária e  pelo direito da comunidade ao território. Nessa disputa, recebiam constantes ameaças de morte.

“É devastador o que aconteceu. Nós não temos dúvidas de que a sua morte tem relação com a disputa territorial. Precisamos cobrar da justiça e do Estado brasileiro um posicionamento firme e forte, não basta só fazer discurso”,  declara Denildo Rodrigues Morais, integrante da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Ele ainda avalia que a política quilombola precisa ser reforçada em recursos humanos e financeiros, e aponta ser inviável trabalhar numa dimensão territorial tão grande com o orçamento de R$ 10 milhões ao ano, valor previsto para 2024.

Em nota, a Conaq divulgou que, desde 2013, os registros indicam 30 execuções de quilombolas. Os estados que mais somam mortes e se destacam pela violência e número de assassinatos são Bahia (11), Maranhão (8) e Pará (4). A maioria dos crimes continua sem solução. 

Segundo Nelson Nunes dos Santos, conhecido como Nelson Quilombola, membro do Conselho Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado da Bahia (CEAQ), Bernadete é a mãe e a senhora mais velha de todas as lideranças quilombolas. Generosa e acolhedora, estava sempre em contato com outras lideranças para saber se estavam bem.

“Outras lideranças, inclusive com denúncias no Ministério Público, são ameaçadas por defenderem o nosso território. No caso de Mãe Bernadete foi um enfrentamento contra a especulação imobiliária. Teria um evento do CEAQ agora, em novembro, com todas as lideranças quilombolas para tratar justamente da defesa do território no cenário da especulação imobiliária e também a exploração mineral nas terras, mas infelizmente ela não estará conosco. Exigimos punição para os envolvidos”, lamenta Nunes. 

Ele comenta que a execução de sua companheira na causa deixa todos em luto e que se questiona a respeito de quantas lideranças precisam morrer para que o governo olhe para a situação das comunidades espalhadas pela Bahia.

Nunes denuncia que no município de Antônio Gonçalves e no quilombo Rio dos Macacos, em Simões Filho, outras fortes lideranças sofrem intimidações. O clima de tensão, no entanto, não diminuiu a resistência incansável que Mãe Bernadete expressava para todos que cruzavam o seu caminho. 

O governador do estado, Jerônimo Rodrigues (PT), lamentou o fato e relatou ao presidente Lula que determinou que as polícias Militar e Civil fossem ontem mesmo a Simões Filho e que fizessem todos os esforços para esclarecer o crime rapidamente.

Para Tiago Rodrigues, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e pesquisador no GeografAR (IGEO-UFBA), a situação da área que envolve o quilombo de Pitanga dos Palmares é complexa desde 2008, época em que a regularização do território já era motivo de problemas com os fazendeiros e outras questões como a ampliação da rodovia próxima a região. Foi neste período que ele conheceu Mãe Bernadete que sempre ia pessoalmente à superintendência regional do  Incra na Bahia e mantinha contato com a comunidade acadêmica do departamento de geografia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) para  buscar informações e pleitear a regularização do seu território

“Em todos os lançamentos dos Cadernos de Conflitos no Campo ela estava presente denunciando não só a não regularização dos seus territórios, mas as ameaças constantes que sofria. Esse assassinato infelizmente é mais um crime no hall do Estado brasileiro que  não regulariza o território das comunidades quilombolas”, desabafa o professor. 

Suas pesquisas comprovam que em 15 anos de luta pela terra houve 1.888 conflitos em comunidades quilombolas que decorrem da manifestação da reforma agrária e, sobretudo, são resultados da não regularização que o estado não tem feito.

A investigação sobre o assassinato será acompanhada de perto pelo Ministério dos Direitos Humanos, a comitiva enviada pelo ministro Silvio Almeida já se encontra em Simões Filho. 

Caso a população queira denunciar de forma anônima qualquer ocorrido envolvendo o caso de Mãe Bernadete, basta ligar para o Disque Denúncia (número 181).

*Jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF

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