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Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo
Seis mil indígenas de todo o Brasil estão acampados desde a segunda-feira (24) ao lado do Teatro Nacional, em Brasília, a poucos metros do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. A 19a edição do Acampamento Terra Livre na capital brasileira tem uma diferença este ano. Pela primeira vez na história, lideranças indígenas ocupam espaços decisórios de poder no governo federal para impulsionar a demanda reprimida pela demarcação das terras dos povos originários.
A presidenta da Funai, Joênia Wapichana, ex-deputada federal pela Rede, informou que 14 terras estão prontas para serem homologadas, tendo passado por todo o trâmite legal da Fundação. A expectativa é de que a totalidade ou parte desses territórios sejam homologados na próxima sexta-feira (28), quando o presidente Lula confirmou que visitará o acampamento. O anúncio significará a retomada das demarcações depois de quatro anos de paralisação no governo Bolsonaro. Segundo dados da Funai, o Brasil possui cerca de 680 territórios indígenas regularizados e mais de 200 aguardam análise para serem demarcados.
Joênia esteve no Acampamento Terra Livre para relatar os desafios dos primeiros meses de governo, numa Funai com déficit de servidores, sem planos de cargos e salários, nem veículos e condições mínimas de segurança para fiscalizar e conter a atuação de madeireiros e garimpeiros nas terras indígenas. Ela reivindica, inclusive, que os órgão tenha poder de polícia para fazer frente ao crime organizado. Contou que a Fundação tem atuado muito sob a pressão de ordens judiciais. Entre as ações planejadas estão a revisão da estrutura de funcionamento do órgão e a realização de concurso público.
A prioridade número 1, no entanto, é destravar as demarcações, revisando com muita atenção os documentos que recebeu do governo Bolsonaro. “Separamos 14 processos para homologação. Eles passam por pareceres técnicos. Eu não vou assinar qualquer papel da outra gestão. Eu tenho que ter responsabilidade de atualizar esses processos, ver se eles estão conforme a reivindicação da nossa comunidade. Não posso assinar um documento que estava parado por 10 anos porque pode ter mudado alguma coisa”. Nesses três primeiros meses de gestão, a Funai e o Ibama revogaram duas instruções normativas que flexibilizavam o licenciamento e a exploração de madeira em terras indígenas.
O principal símbolo da virada política da gestão federal com o recém-protagonismo dos povos originários é a criação do Ministério dos Povos Indígenas comandado por Sônia Guajajara, deputada federal licenciada e ex-candidata a vice-presidente do Brasil pelo Psol.
Nos dez anos anteriores, Sônia trabalhou na coordenação do Terra Livre, ajudando a organizar o acampamento. Agora, participa como ministra de Estado. “Nós estamos aqui hoje com esse compromisso de reconstruir o nosso país. O povo Yanomami é o símbolo do início desse governo. Vocês imaginam o que teria acontecido se o presidente Lula não tivesse sido eleito? Se não tivéssemos um ministério indígena, parlamentares indígenas, uma Funai indígena, uma Sesai indígena parta acabar com essa crise humanitária?”.
A Sesai a que a ministra se refere é a Secretaria Especial de Saúde Indígena, que integra o Ministério da Saúde e nunca havia sido gerida por um indígena até a posse este ano de Weiber Tapeba, advogado reeleito vereador de Caucaia (CE) pelo PT em 2020. Assim como Sônia e Joênia, ele esteve no acampamento para fazer um balanço dos primeiros dias de governo, lembrando que falou ao próprio Lula na edição do ano passado que os povos indígenas não queriam apenas participar da campanha, mas ajudá-lo a governar o país.
“Nós trouxemos no ano passado a nossa encantaria, a força da nossa ancestralidade pra dentro da campanha numa disputa onde a democracia estava ameaçada. Com a força do toré e dos nossos encantados agora estamos dentro do Parlamento e da Esplanada dos Ministérios”, afirmou Weiber. Uma das primeiras medidas da nova Sesai foi anular a decisão do governo Bolsonaro de proibir investimentos federais de saúde em terras não homologadas. “Estávamos sendo duplamente punidos por um Estado que sempre foi leniente, omisso e negligente para demarcar nossos territórios”.
A Sesai foi um dos órgãos mais aparelhados pelos militares no governo passado, quando assumiram a maioria das coordenações dos 34 distritos sanitários indígenas do país. Segundo Weiber, existem unidades de saúde indígena que sequer têm acesso a água potável, internet e energia elétrica, enquanto os servidores enfrentam exaustivas jornadas de trabalho. “Estamos operando com o orçamento do ano passado, mas vem aí o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e a saúde indígena entrará como prioridade”, informou.
Em seu primeiro mandato de deputada federal por Minas Gerais, Célia Xakriabá (Psol) participa de uma articulação junto ao Ministério da Saúde para que 5% das equipes do novo Programa Mais Médicos sejam designados para territórios indígenas porque, segundo ela, foi com o Mais Médicos que pela primeira vez os 34 distritos indígenas tiveram cobertura completa de saúde. Em sua passagem pelo acampamento deste ano, Célia contou que se reuniu com o ministro da Educação Camilo Santana para pleitear a criação da Secretaria Nacional de Educação Escolar Indígena.
Para Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, o momento é de celebrar a conquista histórica da ocupação dos espaços de poder e decisão, relacionando esse momento aos anos de luta e resistência do Acampamento Terra Livre em defesa dos territórios, das culturas e modos de vida indígenas. Mas não dá para baixar a guarda porque a oposição conservadora e anti-indígena é muito forte no Congresso. De acordo com ela, existem sete medidas protocoladas no Congresso e uma ação no STF movida pelos opositores para que a demarcação de terras indígenas volte a ser da responsabilidade do Ministério da Justiça.
“As forças políticas e econômicas continuam fotes e articuladas para impedir que nossos modos de vida sejam exercidos por nós em nossos territórios indígenas. A terra continua sendo o principal objeto de disputa pelo poder político e pelo poder econômico e nós estamos todos os dias nos articulando para destravar esse processo de demarcação de terra”, explicou a ministra. Essa articulação passa pelo convencimento de governadores e prefeitos de cidades que possuem territórios indígenas a criarem secretarias específicas de povos indígenas. Onze estados já aderiram à proposta e criaram as suas.
Com o tema O futuro indígena é hoje. Sem demarcação não há democracia, o acampamento Terra Livre tem previstas mais de 30 atividades divididas em cinco eixos temáticos, sendo eles: Diga o povo que avance, Aldear a Política, Demarcação Já, Emergência Indígena e Avançaremos. Os eixos contam com plenárias sobre mulheres indígenas, parentes LGBT+, gestão territorial e ambiental de terras indígenas, acesso a políticas públicas e povos indígenas em isolamento voluntário.
Durante a programação, o movimento indígena promove três marchas pelas ruas de Brasília. A primeira, até o Congresso Nacional, aconteceu na segunda-feira (24) para pedir a derrubada dos projetos de leis anti-indígenas como o PL 191 que permite a mineração em terras ancestrais e o PL da grilagem. Projetos de Lei como esses tornam os indígenas os alvos mais frequentes da violência do campo no Brasil, representando 38% das pessoas assassinadas em 2022, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A segunda caminhada acontece nesta quarta (26) no ato intitulado Povos Indígenas decretam emergência climática com o objetivo de chamar a atenção para o enfrentamento às violações ocasionadas pelas mudanças climáticas. Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entidade organizadora do Acampamento Terra Livre, reitera que as terras indígenas são as áreas com maior biodiversidade e com vegetação mais preservadas, visto que são territórios protegidos e manejados pelos povos originários.
Um exemplo disso é o resultado do cruzamento de dados realizado pela Apib em 2022, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), com dados do MapBiomas. O estudo aponta que no Brasil 29% do território ao redor das terras indígenas está desmatado, enquanto dentro das mesmas o desmatamento é de apenas 2%. “Não existe solução para a crise climática sem os povos indígenas e a demarcação plena das nossas terras”, reforça Dinamam.
Nesta quarta-feira (26), lideranças indígenas se reunirão em vigília em frente ao Supremo Tribunal Federal para reivindicar a declaração de inconstitucionalidade do Marco Temporal. O tema deve voltar a julgamento na corte no dia 7 de junho. Na quinta (27), o Acampamento Terra Livre irá debater em plenária as consequências do Marco Temporal para os direitos dos povos indígenas.
O Marco Temporal é uma tese proposta numa ação judicial movida pelo antigo PFL – que se transformou no DEM e depois se fundiu ao PSL para formar o União Brasil – de que os indígenas só poderiam reivindicar para reconhecimento e demarcação os territórios que eles ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Uma ação que visa questionar o direito originário a essas terras e desconhece todo o processo de violência e expropriação a que os povos indígenas foram submetidos no Brasil. “Nosso marco não é temporal, ele é ancestral. Se querem mesmo falar do marco temporal, nós temos que falar do marco temporal da invasão no Brasil”, critica Célia Xakriabá.
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Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República