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Livro reúne textos críticos aos delírios de poder dos militares

Maria Carolina Santos / 10/10/2022
Em primeiro plano, à direita da imagem, tanque de guerra passa pela avenida em frente ao Palácio do Planalto, que se vê ao fundo, sob céu azul sem nuvens.

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em maio deste ano, o Instituto General Villas Bôas, com apoio do Instituto Sagres e do Instituto Federalista, lançou o Projeto de Nação – O Brasil em 2035. Nas 93 páginas do documento, as entidades mantidas por militares apresentam suas projeções para diversas atuações do Estado. Propõem remover as restrições “radicais” da legislação indígena e ambiental e cobrar mensalidade nas universidades públicas, entre outras sandices. O lançamento do documento na época foi feito com pompa e circunstância e teve a presença do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, e apoio do presidente Jair Bolsonaro. 

A redação do documento é como se fosse um livro de História redigido daqui a algumas décadas. O texto de apresentação explica que é o relatório do escritório brasileiro de uma consultoria internacional fictícia feito em um hipotético 2035. Ao falar da cobrança do pagamento de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, o texto afirma que “a partir de 2022 os governos passaram a cobrar indenizações” e que “em 2035 o sistema apresenta melhores condições de sustentabilidade”.

Talvez pela proposta infantilizada da redação do documento, talvez pelo desconhecimento do meio militar, boa parte da grande mídia não deu atenção ao documento e à audácia dos militares em fazer tal projeção. Mas os textos não escaparam ao olhar crítico do historiador Manuel Domingos Neto, que organizou o livro Comentários a um Delírio Militarista, que será lançado nesta terça-feira (11), às 19h, no Armazém do Campo do Recife. O evento terá uma conversa entre Manuel e o articulista e coronel da reserva do Exército Marcelo Pimentel, um dos mais ativos críticos da politização das Forças Armadas.

A publicação reúne 41 autores, que criticam e desmentem os “delírios” apresentados pelos militares no Projeto de Nação. Para Manuel, o documento é importante para entender as aspirações dos militares brasileiro porque é a “a mais completa e clara reunião das múltiplas e variadas proposições da ultradireita brasileira. Estas proposições não são novas e eram conhecidas. Mas, reunidas assim, num só documento, permitem compreender com clareza o que o liberalismo pretende fazer com nosso país”.

Em entrevista para a Marco Zero, Manuel vê a iniciativa dos militares em propor tal documento como uma reafirmação de que as cúpulas militares sempre imaginaram a nação como uma dádiva dos quartéis. “São os instrumentos de força do Estado pretendendo se sobrepor ao próprio Estado. Desde a Proclamação da República, os militares brasileiros se acostumaram a mandar através de ditaduras. Nos interregnos democráticos, nunca se desarmaram. Não há razão para imaginar que mudem sua índole nesta fase da vida nacional. É da natureza dos comandos corporativos desejarem o poder sobre tudo e sobre todos”, disse.

No governo Bolsonaro, os militares se espalharam como uma teia na administração federal. No auge da pandemia, por exemplo, o ministro da saúde era um general. Essa povoação de militares em cargos comissionados não é vista com muito perigo por Manuel Domingos Neto, que há décadas estuda o militarismo no Brasil. “Difícil será recuperar o estrago que fizeram. Mais difícil ainda será confrontar as ideias, os valores, as ideologias que disseminam. Foi uma falha grave dos democratas brasileiros amenizar a luta de ideias ao longo do período democrático. Neste sentido, a esquerda tem sua parcela de responsabilidade”, afirma.

Entre os 41 autores dos artigos de Comentários a um delírio militarista estão jornalistas, sociólogos, professores universitários e personalidades da vida política brasileira, como o economista e ativista João Pedro Stédile, a professora da Universidade Estadual do Ceará (FCE)Mônica Dias Martins e o antropólogoPiero Leirner. O livro sai pela editora Gabinete de Leitura e estará à venda no Armazém do Campo por R$ 60. Também é possível comprá-lo na página da editora.

Três perguntas para Manuel Domingos Neto

Quais os riscos para a democracia brasileira com mais quatro anos de Bolsonaro no poder e, consequentemente, mais quatro anos de militares em altos cargos na administração pública?

Este documento em análise deixa evidente que a intenção é o estabelecimento de uma ditadura a partir do manuseio das instituições democráticas. A continuidade de Bolsonaro representará um aprofundamento do autoritarismo. Se for reeleito, as cúpulas militares se sentirão autorizadas a tocar seus planos. A vontade de mandar em tudo é ilimitada!

Na apresentação, o documento dos militares se diz uma estratégia nacional “apartidária e sem radicalismos ideológicos, étnicos, religiosos, identitários ou de qualquer natureza, portanto, em total afinidade com o perfil predominante do povo brasileiro”. Qual o “perfil predominante do povo brasileiro” na visão das forças armadas?

Os militares examinam a sociedade a partir da janela do quartel e acreditam que tudo o que arranha a sensibilidade castrense está errado. O perfil que atribuem à sociedade é conservador, patriarcal e misógino. Não passa por sua cabeça que a sociedade queira mudanças estruturais de forma a superar o triste legado colonial. Os militares assumem claramente a posição de continuadores da obra do colonizador. Isso está nos documentos oficiais.

Caso Lula vença, como o senhor avalia que será a reação dos militares?

Isso dependerá da reação das ruas. Caso haja uma manifestação massiva em defesa da democracia, eles redimensionarão suas táticas e estratégias. Sabem que não podem confrontar a vontade da maioria claramente expressa nas ruas e nos movimentos de opinião. Estamos num momento eleitoral. Mas a mobilização da sociedade precisa ir mais longe. Eleições são episódios importantes do processo democrático, mas não resumem a vida sociopolítica. Lula será mais ou menos respeitado na medida em que esteja nitidamente respaldado pela maioria do povo brasileiro.

Serviço:

Lançamento do livro Comentários a um delírio militarista
Debate com Manuel Domingos Neto e Marcelo Pimentel Jorge
Quando: terça-feira (11 de outubro), às 19h
Onde: Armazém do Campo do Recife. Rua Martins de Barros, 387, Santo Antônio

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org