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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
“Estou dando entrevista não por mim, mas por todas as pessoas da minha idade, ou até mais novas, que vivem a velhice apenas falando de doença e esperando a morte chegar”. O autor desta frase está prestes a completar 71 anos. Trata-se de Antônio Clériston de Andrade, nome e sobrenome conhecidos, provavelmente, apenas pelos amigos mais chegados e por centenas de estudantes de Jornalismo e Publicidade para quem deu aulas na Unicap e na UFPE durante 24 anos. O círculo de pessoas que o reconhece se torna mais amplo – e de faixa etária mais avançada – se usarmos seu nome artístico: Clériston.
Era assim que, da segunda metade dos anos 1970 até o fim da década seguinte, ele assinava as charges políticas publicadas pelo Diário de Pernambuco em dias alternados com outro cartunista, Lailson, morto em outubro de 2021 de covid-19. Encravadas em páginas em que senadores, deputados e governadores favoráveis à ditadura militar tinham espaço assegurado, as charges da dupla Lailson-Clériston destoavam. Piadas gráficas que ridicularizavam aqueles mesmos políticos e generais, os desenhos logo se tornaram símbolos visuais da luta pela redemocratização no estado, reproduzindo no âmbito local o que Jaguar, Millôr e Henfil faziam no Pasquim e na mídia nacional na mesma época.
Clériston ainda assinou charges no Jornal do Commercio, nos anos do governo Collor, e por mais 12 anos na primeira página da Folha de Pernambuco.
Durante a campanha que levou Lula à presidência pela terceira vez, ele abandonou definitivamente a aposentadoria e voltou a usar o nome artístico ao começar uma nova carreira: a pintura. “Matei o cartunista, agora quero ser reconhecido como pintor”.
O que Lula, lá em Brasília, tem a ver com as decisões pessoais e os rumos existenciais da velhice de um artista? “Durante a campanha, meu irmão Samuca [Samuca Andrade, também cartunista] sugeriu que eu fizesse umas charges para vender na galeria MauMau. Gostei da ideia, achei mais útil do que ficar arengando nas redes sociais. Era um acerto em que metade do valor da venda ficava com o artista e a outra metade seria convertida em materiais de campanha. Foi aí que vi uma moçada pintando camisas no quintal e quis aprender a fazer também”, recorda Clériston.
Uma de suas camisas virou objeto de desejo da militância e eleitores de esquerda. “Vendi mais de R$ 2.000 em camisas! Isso me animou, até que ouvi a pergunta que mudou minha vida: ‘por que você não pinta em tela?'” Da última vez em que arriscou usar uma tela, ele tinha 15 anos. E detestou. Por isso, resistiu um pouco à ideia. Mas só um pouco.
O autor da pergunta crucial, o artista plástico e ex-presidente da Fundarpe, Fernando Duarte, deu a primeira dica: usar tinta acrílica, não tinta a óleo. “Foi amor a primeira vista, adorei a acrílica, nunca tinha usado. Adorei, ela seca rápido”, entusiasma-se Clériston, com a animação de fez uma grande descoberta aos 70 anos. Depois de incorporar a sugestão, passou o final do ano de 2022 fazendo cursos e estudando por conta própria, pintando quadros e mais quadros “só para aprender”. Algumas dessas pinturas já nem existem mais: “pintei outras coisas por cima, sem pena”.
Os primeiros meses de 2023 ainda foram de aprendizado, mas ele ainda se apresentava como cartunista, desenhista ou professor aposentado. Só a família sabia de seu investimento na pintura. “Foi quando a dona da mesma galeria MauMau perguntou se conhecia alguém interessado em alugar uma salinha lá para usar como ateliê. Disse que conhecia: eu mesmo. Ela se espantou: ‘você? mas você é pintor desde quando?’, não era, mas quando aluguei um ateliê me atrevi e passei a me apresentar como pintor. Na minha cabeça, se tem ateliê, é pintor, porque chargista não tem ateliê”, diz, acompanhando a frase de efeito com uma risada.
Desde então, ele já aceitou até pintar “ao vivo”, diante do público, em um badalado bar-restaurante na zona norte. A plateia não o incomoda. Pelo contrário, ser alvo das atenções é algo que aprendeu desde cedo com o pai pastor. “Meu pai fazia uns sermões bem longos, era capaz de passar duas, três horas pregando na igreja, com os fiéis vidrados nele. Talvez eu carregue isso, pois sempre trabalhei para ser visto, inclusive como professor, que é um profissional que tem o público dele cativo na sala de aula”, especula.
Segundo ele, iniciar uma nova carreira foi mais um apelo emocional, quase um impulso, do que uma escolha racional, planejada cuidadosamente. “Nem pensei no risco de errar. Ao longo da vida, fiz mais de 20 mil desenhos, por baixo, talvez chegue a 30 mil, mas o risco de errar é maior. Quando rasgo o plástico que envolve uma tela, me sinto como aqueles atores e atrizes dos filmes da Netflix que rasgam a roupa um do outro para transar na cozinha”. As metáforas e frases de efeito do entrevistado facilitam a vida do repórter.
Quando diz que “matou o cartunista”, Clériston se refere às diferenças entre a atividade que, na juventude, o deixou famoso na militância progressista local e a pintura. A explicação é simples: agora ele já não desenha os traços e contornos antes de preencher os espaços com tinta. “Já entro direto com o pincel”.
No entanto, sua reputação nas artes visuais foi riscada com nanquim, caneta e lápis.
De 1976 a 1988, mais do que as manchetes da primeira página ou os títulos bem ao gosto dos políticos que davam sustentação à ditadura, o que se destacava na imprensa pernambucana eram as tiradas cheias de sarcasmo, ironia e bom humor das charges de Clériston e Lailson. Se fosse hoje, seria fácil comprovar que os desenhos da dupla receberiam mais likes do que as matérias destacando o prefeito biônico [como se chamavam os chefes do executivo indicados pelos militares, sem eleição] Gustavo Krause, os senadores Aderbal Jurema e Nilo Coelho ou os governadores biônicos Moura Cavalcanti e Marco Maciel.
Ele guarda algumas das charges originais daquele período em um grande envelope pardo. Outros 64 desenhos fazem parte de uma coletânea publicada em livro em 2016, Minha verdade sobre a ditadura, cada desenho acompanhado de uma crônica sobre o contexto da publicação.
Além disso, há as histórias para serem contadas, como a que levou o senador Aderbal Jurema a telefonar para a direção do jornal e reclamar: “a gente gasta milhões para fazer um comício, aí vem um desenhista e estraga tudo”, se referindo a uma charge em que Krause, de costas – não se vê o rosto, mas o público da época sabia de quem se tratava – fala ao microfone para um público que não é formado por gente, mas por dezenas de ônibus com a palavra “especial” no letreiro acima do vidro dianteiro.
“Eu e Lailson fomos proibidos pela direção do jornal de desenhar os rostos dos políticos locais e usar as siglas dos partidos. A charge que tanto incomodou o senador não tem nada disso, mas desmascarava o fato da multidão no comício governista ser de gente trazida de longe nos ônibus”, recorda Clériston.
Enquanto desenhava para o jornal, outro projeto pegava carona no sucesso das charges. O jornal O Rei da Notícia circulou de 1983 a 1987 com reportagens aprofundadas, crônicas e quadrinhos sobre temas que jamais teriam espaço nos veículos impressos daqueles anos finais da ditadura e de redemocratização. O tabloide acabou durante o desmantelo provocado pelos planos econômicos do governo José Sarney, o primeiro de um civil após o golpe de 1964.
No fim da conversa, Clériston dispara mais uma frase de efeito, na medida para encerrar este texto: “Tem gente que costuma dizer que sou inteligente por já ter feito tanta coisa na vida. A verdade é bem diferente: sou tão burro que não sei ser velho. Tenho 70, mas não consigo ser velho”.
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.