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Arte: Thiko
A crise de saúde e também econômica e social desencadeada pela pandemia do coronavírus chegou para acentuar as desigualdades estruturais que o capitalismo fundou, mantém e atualiza. O importante, para o modo de vida capitalista, é manter o lucro. Mesmo que isso custe vidas.
Talvez não a sua vida, mas isso foi antes do coronavírus. Agora, ricos e pobres (estes sim, desde sempre vidas descartáveis) podem ser afetados.Isso não quer dizer que estão em igualdade de condições.
O que isso muda na lógica capitalista? Essa é a pergunta que muitas pessoas estão se fazendo. Sem resposta até agora, mas com uma certeza: esta crise pode abrir caminho para questionar o nosso modo de vida e o sistema capitalista tal como o conhecemos. A começar por retomar a ideia de que o mercado não está nem aí para a vida das pessoas, desde que continuem comprando.
A declaração do empresário paranaense Julio Durski, dono da rede de restaurantes Madero, contra as medidas preventivas e restritivas de combate ao coronavírus, deixou mais evidente o caráter predatório de segmentos empresariais nacionais. Para ele, a roda do mercado não pode parar de girar “se 5 ou 7 mil pessoas vão morrer” por conta da pandemia no Brasil.
“O que fica patente com o coronavírus é que precisamos pensar outras formas de organização social que não seja pelo mercado. O mercado tem um fracasso retumbante nesta crise”, afirma a professora de ciências sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Maria Eduarda da Rocha Mota, para quem o que estamos vivendo, hoje, é um sintoma de algo mais geral e estrutural.
Segundo Maria Eduarda, faz parte do próprio modo de ser capitalista o desprezo por tudo que não for o lucro. Depois do pronunciamento do presidente Bolsonaro, na terça (24), ficou ainda mais evidente o compromisso do governo com os grandes empresários em vez de priorizar a saúde da população. Ao contrariar tudo que os organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde, (OMS) e outros países estão fazendo para conter a pandemia do coronavírus, o atual chefe de Estado brasileiro defendeu um tipo de concepção capitalista ainda mais precário, analisa a socióloga.
“O discurso do presidente é afinado com uma visão da parte mais tacanha do empresariado brasileiro, de médio porte e que tem uma visão limitada. Pensam simplesmente nos 4 meses que não tem folha de pagamento, não conseguem pensar a longo prazo, em 3 anos, 4 anos. Não conseguem sequer ver além do próprio umbigo, são pessoas que não conseguem ver além da folha contábil”, explica.
Por isso, Maria Eduarda não acredita que estamos vivendo uma exceção. “Se ele [o mercado] não for regulado, pensado, é isso que sobra. Uma crise como essa só faz evidenciar como esse tipo de mentalidade é incapaz de responder às nossas questões ambientais, de saúde, de sociedade. Se a humanidade for deixada sob o jugo dessa mentalidade, é o que acontece”.
Ainda pensando as estruturas que já colocaram pobres, negros, povos e comunidades tradicionais em situação de maior vulnerabilidade, Maria Eduarda explica que o próprio capitalismo, no Brasil, nunca conseguiu dar estabilidade para a classe trabalhadora. A tendência é piorar a situação até de quem tem emprego. “O capitalismo brasileiro é problemático pelo tipo de trabalho que ele conseguiu gerar. Temos um grau de precariedade e informalidade muito grande. A industrialização brasileira não foi capaz de gerar trabalho regular”, diz.
Além disso, a informalidade vem crescendo exponencialmente nos últimos anos. É o caso de trabalhadores de aplicativos de entrega, por exemplo. Nesse cenário, com a suspensão das atividades econômicas por causa do coronavírus, quando o governo defende a continuidade do trabalho sem qualquer responsabilização de empresas, ele “condena formais à condição de informais”, avalia.
É importante lembrar que o problema não é só no Brasil. A jornalista canadense Naomi Klein, autora de A Doutrina do Choque: A Ascensão Do Capitalismo Do Desastre, explicou como, nos Estados Unidos, o presidente Trump, lobistas e grandes corporações vêm atuando para enriquecer ainda mais os super ricos e desproteger a população dos efeitos econômicos, sociais e na saúde causados pela pandemia do coronavírus.
O problema é o capitalismo, em si. Já estamos vendo isso por aqui, em terras tupiniquins, com Bolsonaro socorrendo bancos e companhias aéreas.
Alguns filósofos, a exemplo do esloveno Slavoj Zizek, enxergam que o coronavírus pode abrir uma fissura na sociedade para que um outro sistema – que não o capitalismo, tampouco o socialismo – surja. Para a socióloga Maria Eduarda Rocha, a crise do coronavírus traz à tona a urgência de reconhecer a importância do Estado.
“O que a epidemia trás é um senso de urgência de ação do Estado. Não só do Estado, mas de construção de laços comunitários, para além do mercado. O que o momento apresenta é justamente a contradição. E a contradição é a brecha do aprendizado. O presidente que deveria estar protegendo as pessoas, não está. Então a gente tem que colocar o dedo na ferida”, argumenta.
Para a professora, no entanto, a resposta tem que vir, necessariamente, de uma mobilização da sociedade civil que não seja apenas de classe média. Por exemplo, quando funcionárias de telemarketing se recusaram a trabalhar em condições de super exposição ao coronavírus.”O potencial político de uma crise como essa é perceber como a condição é coletiva. O medo do futuro, a falta de sentido, tudo isso que aparece agora como sendo problema do coronavírus já era um problema do sistema. As pessoas viviam isso na solidão e agora percebem como uma condição coletiva”, explica.
A outra ponta desse debate é saber quais são as empresas e quem são os donos de empresas que estão dispostos a colocar pessoas em risco para manterem seus lucros. Para alguns movimentos, o caminho mais estratégico é boicotar quem viola direitos. Isso porque decidir não consumir de determinada corporação é um ato não só político, mas também uma ação objetiva e que surte efeito rápido. Afinal, a perda ou a redução da margem de lucro são os principais temores dos empresários.
Nas redes sociais, vários perfis também passaram a questionar o capitalismo como problema central no combate à pandemia e às violações de direitos de trabalhadores. A página Coronacapitalismo surgiu há uma semana e já tem mais de 33 mil seguidores. A iniciativa é inspirada nos movimentos de boicote à África do Sul para pressionar pelo fim do apartheid e no movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanção (BDS), que defende o fim da colonização e ocupação militar israelense no território da Palestina.
O objetivo é simples: reunir denúncias de empresas que estão cometendo violações de expor trabalhadores à contaminação ou medidas de retirada de direitos. O trabalho, por outro lado, é enorme. Só nos primeiros dias a página recebeu, via formulário disponível online, mais de 3 mil denúncias.
As pessoas envolvidas na iniciativa, de maneira anônima, devido à segurança, fazem análise das denúncias, checam os fatos e dados, produzem conteúdo, revisam para, então, publicar na página. Até o momento, entre as empresas mais denunciadas por trabalhadores estão a Riachuelo, Havan, Bradesco, JBS, Cocobambu, Uber e Itaú. Muitas empresas de call centers também figuram na lista.
“O que nos revolta é que são grandes empresas de praticamente todos os segmentos sociais, que até ano passado vinham ostentando recordes de lucro e que estão nesse momento desrespeitando seus trabalhadores ao colocarem o lucro acima da vida deles, expondo ao vírus ou realizando medidas que precarizam seu trabalho e sua condição de sobrevivência financeira nessa crise”, afirma uma das pessoas organizadoras da página.
O coletivo defende também que o isolamento social “envolva a transferência imediata de todo trabalho não-essencial para o combate ao coronavírus para funções remotas e home-office e, nos casos que não seja possível essa modalidade de trabalho, que seja concedida licença remunerada aos trabalhadores tanto do salário fixo quanto da média variável dos últimos 3 meses sem férias compulsórias, sem afastamentos sem remuneração, sem reduções de salários e sem demissões nesse período de crise”.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.