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Por Beatriz Santana*

É possível imaginar o carnaval pernambucano sem o som vibrante do frevo? Tão presente nas ruas e ladeiras, o ritmo nem sempre foi o símbolo da festa. Foi apenas no início do século XX, nas capitais do litoral nordestino, que a manifestação popular ganhou o formato conhecido hoje. Em Pernambuco, o frevo se consolidou como a principal expressão cultural do estado.
O crescimento urbano, abolição da escravidão, o advento da República, a industrialização e, sobretudo, o incentivo do poder público foram fatores históricos que contribuíram para Pernambuco ter se tornado um polo de difusão do frevo. Muito além da folia e do espetáculo turístico, o ritmo carrega as marcas da cultura negra, das lutas sociais e da construção da identidade pernambucana.
Em entrevista exclusiva, o historiador Luiz Vinícius Maciel, pesquisador do Centro de Documentação e Memória do Museu Paço do Frevo, destaca a importância de compreender o frevo não apenas como um momento de celebração, mas também de reflexão. “É um processo que ganha muita força com esse apelo estatal, por conta mesmo dessa eleição do frevo como representante do que é o povo pernambucano, sabe? Do que é Pernambuco imageticamente para o turismo”, explica Maciel.
Quando o Galo da Madrugada cruza a ponte no Recife e o Homem da Meia-Noite confirma a festa nas ladeiras de Olinda, o carnaval se transforma em um ritual coletivo. “A gente sua junto, se machuca junto, pega o suor do outro, se mela de cerveja”, descreve o historiador. É nesse contexto de comunhão que o frevo adquire sua força simbólica e afetiva e também seu valor como produto cultural.
“O que se vende enquanto frevo é um olhar que parece estar atrás de uma vitrine, separando o observador de quem executa. Constrói-se essa ideia do frevo como um bibelô, como um item de acervo, de zoológico”, alerta Maciel. A crítica aponta para o risco de o frevo ser reduzido a mero espetáculo. Algo a ser assistido, e não vivido. Fora de Pernambuco, as apresentações de passistas podem até emocionar, mas muitas vezes o público participa apenas como espectador, e não como parte da experiência.
Por trás das cores vibrantes e dos adereços com a bandeira de Pernambuco, há uma história marcada por resistência e ancestralidade. “Existe um processo muito forte de branqueamento do frevo nesse percurso”, observa o historiador. “É uma manifestação que tem um surgimento intenso e forte junto às comunidades periféricas do Recife, sobretudo comunidades negras. As grandes lideranças, nesse início, eram pessoas racializadas, pessoas negras.”
Reconhecer essas origens é fundamental. O frevo nasceu do corpo, da rua, das disputas e da força das comunidades negras e populares. Mais que um ritmo alegre, ele é também um espaço de memória e resistência. Valorizar essa dimensão é compreender que o frevo não é um território neutro, mas um campo político que carrega as marcas da história do país.
Há quem diga que, nas veias dos pernambucanos, o que corre é frevo. Para Maciel, mesmo quem prefere outros ritmos acaba sendo atravessado por ele:
“Uma frase que resume tecnicamente o que é o frevo é isso: uma manifestação cultural complexa e universal, que permeia várias linguagens artísticas.”
Assim, o frevo continua vivo porque é reinventado continuamente — nas ruas, nos corpos e nas novas gerações. Mas o desafio permanece: fazer com que o frevo periférico, político e social receba o mesmo reconhecimento que o frevo turístico e institucionalizado. “Tudo que a gente resolve pausar, congelar, é aquela velha história que a gente já conversou sobre o próprio zoológico, sobre a própria vitrine. Se você isola e coloca aquilo ali, sem as pessoas participarem, inventarem em cima, criarem algo novo, aquilo só tende a morrer junto com as pessoas”, reflete.
Ao final, o historiador deixa um convite para quem deseja se aproximar dessa tradição. “Se o frevo existe junto das pessoas, junto das infâncias, das juventudes, é porque existem comunidades comprometidas com ele. Então, como tudo na vida, pisar devagar nesse território que não é nosso.”
Com respeito aos mestres e mestras e à ancestralidade que o moldou, mergulhar na história do frevo é deixar-se atravessar por uma força que faz o corpo arrepiar e o coração bater no compasso de Pernambuco.
* Beatriz Santana é estudante de Jornalismo da UFPE.
As reportagens publicadas aqui fazem parte da parceria entre a Marco Zero Conteúdo e o projeto de extensão “Cartografias do Frevo”, desenvolvido por professores e alunos do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A iniciativa busca mapear a contemporaneidade do frevo a partir de entrevistas com mestres, músicos, passistas e artistas que reinventam o ritmo.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.