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Luíza Cavalcante. Credito: Fiona Forte
Por Chico Ludermir, com colaboração de Anthony Santana
No final dos anos 1990, Luíza Cavalcante ocupava, junto com outras 300 famílias, uma terra que estava há 25 anos improdutiva, na zona rural de Tracunhaém, Mata Norte de Pernambuco. Depois de conflitos que se arrastaram por uma década, o que incluiu o despejo violento dos acampados, o envenenamento da terra e o assassinato e prisão de trabalhadores e trabalhadoras, o conjunto de assentamentos Chico Mendes foi, enfim, demarcado (ver filme Engenho Prado – Guerra de Baixa Intensidade na Zona da Mata Norte de Pernambuco).
Quando saiu de Casa Amarela, no Recife, onde nasceu, em busca de um terreno para plantar e colher, Luíza ainda não sabia que o lugar para onde estava indo era o mesmo onde sua bisavó tinha sido escravizada. Conversando com a avó, escutou: “Você foi buscar suas raízes” e teve a certeza de que era aquele o seu espaço. Firmada naquela terra onde estão as marcas da sua história e a do Brasil, Luíza, mulher negra, de meia idade, começou a construção de um novo mundo, que chamou de Sítio Ágatha, em homenagem à sua neta – um espaço agroecológico, feminista negro e matriarcal.
Em meio à pandemia que, sem previsões de fim, destroçou o mundo da maneira que o conhecíamos, busco em Luíza a partilha da sabedoria de quem nunca deixou de lutar pela sua vida e pela dos seus e suas: a experiência de quem firma o compromisso diário com a transformação e que tem colocado em prática outras formas de se relacionar com a natureza e com o consumo. Ao mesmo tempo, essa conversa, que tivemos às vésperas do São João, faz parte de um gesto de descentralização das narrativas acerca do presente. A zona rural, que está sempre às sombras das luzes do centros urbanos, como ela relata, está às voltas com a miséria. “A gente tem presenciado a fome”, comenta sobre seus vizinhos.
Na entrevista que segue, mais uma parceria da Marco Zero Conteúdo com o Programa Entre (Rádio Paulo Freire e Universitária FM), Luíza fala sobre como a zona rural tem vivenciado as crises sanitárias, políticas e econômicas; sobre as possibilidades de uma perspectiva afrocentrada de agroecologia e sobre formas de resistir e sobreviver: “Estar organizado politicamente é uma maneira de se manter vivo. Estar sempre junto, nunca andar só”, afirma.
Confira a íntegra da entrevista:
A sua história de vida e a do sítio Ágatha são simbólicas e representativas da luta pela terra. Queria que você contasse o que desemboca na criação desse espaço?
A minha relação com o Sítio Ághata é bem ancestral. Vem da história de minha mãe, de minha avó e de minha bisavó. Vem da ancestralidade do povo negro que foi arrancado de suas raízes em África e trazido para serem escravizados aqui nas terras do Engenho Vinagre – e assim foi com meus bisavós maternos. Minha avó nasce aqui (onde hoje é Tracunhaém) e depois migra para Casa Amarela, no Recife, quando casa. Teve minha mãe, que me teve em Casa Amarela, um quilombo urbano ou “peri-urbano” como eu costumo dizer. Daí eu venho para a luta pela terra aqui, na Zona da Mata Norte. E é aqui que a gente, de posse da terra, vai se firmando. Compreendemos que é uma herança nossa. Uma herança da ancestralidade. É aqui onde estão nossas raízes da diáspora. Foi aqui que minha bisavó desapareceu quando minha avó era criança: ela foi buscar água no rio e nunca voltou. O rio nunca devolveu o que não tomou. Para gente é uma questão muito importante de tornar esse sítio um lugar de fato de vida, um lugar de bem viver, de força, de mulheres.
A gente sempre tem muito mais acesso às narrativas a partir dos centro urbanos. Mas as experiências rurais têm diversas particularidades que são apagadas e invisibilizadas. Como vocês do sítio têm lidado com esse momento? O que você tem observado das redondezas, do assentamento Chico Mendes ou de outros espaços que você tem tido notícias?
Aqui no nosso entorno a gente tem sentido, vivenciado, presenciado a fome. Já existe fome. Embora nós estejamos numa área de assentamento, os nossos vizinhos no entorno têm necessidades. Eles vivem da cana-de-açúcar, desse trabalho sazonal. São seis meses trabalhando, seis meses não. A gente sabe que o Bolsa-Família não atende as necessidades completamente, então esse povo, a maioria preto, cheio de crianças, tem sentido esse impacto da fome mesmo. Está faltando alimento.
A gente tem desenvolvido por aqui uma campanha de doação de kits para o enfrentamento (ao coronavírus), não só de limpeza, mas de comida, para o enfrentamento da fome. Aos poucos temos conseguido cestas básicas e distribuído para essas pessoas. Juntamos isso a produtos agrícolas – a macaxeira, o milho… Quem tem esses produtos está também distribuindo a esses outros companheiros e companheiras que estão sofrendo já esse impacto. A gente sente também a falta de informação. A informação ainda chega muito raramente nesses lugares. Muita gente ainda não conseguiu entender de fato o que é que está acontecendo esse momento de pandemia, qual é de fato o perigo desse vírus. Informação, formação, alimentação: isso tem faltado muito na zona rural.
Eu sei que não é de agora que você tem pensado formas de organização, resistência e transformação, elas atravessam por completo toda sua história de vida. Mas, diante do agora, nesse cenário, o que você consegue enxergar como possibilidade?
Eu enxergo como possibilidade essa organização que as pessoas vêm fazendo, especialmente, nas periferias. O movimento de solidariedade, de distribuição de kits, de alimentos, de estar cuidando desse povo, aponta para o tipo de governança que a gente quer e para o tipo de relação que a gente quer estabelecer com os outros e outras. Eu tenho esperança que isso sirva como um instrumento de reflexão e de fortalecimento. O afeto, o cuidado, a solidariedade são as bases para sustentar um sistema de governança de um povo num território e muita gente está se voltando para isso: para fazer, ou melhor, para intensificar o que já vinha fazendo. A gente sabe que quem está fazendo agora já vinha antes atuando dentro das comunidades e agora se fortalece com mais gente chegando e participando.
A gente reconhece nas práticas comunitárias um lugar de potência e transformação. Por outro lado a gente vive uma instituição politica que esmaga essas práticas, assim como tenta eliminar a diferença. A gente tem visto que na gestão dessa pandemia a prática política institucional é deixar as pessoas morrerem de diversas formas – de fome, também, como você citou. Eu queria te convidar a pensar essa gestão da política institucional brasileira e te perguntar como você entende que a gente consegue incidir sobre o que extrapola a nossa comunidade.
Nesse momento, a gente vive um sistema que é um sistema de eleição. Tudo se resolve pelos partidos. É o que temos. Nesse estado de governança por partidos é preciso que a gente pense bastante em quem a gente quer que nos represente. É uma sociedade de representação. Quem me representa? Quem eu quero lá? Então esse é um chamado que eu faço para que as pessoas reflitam sobre isso. A gente olha para dentro desse país e vê que quem tá lá decidindo as nossas vidas são homens brancos. Qual é a cultura do homem branco nesse país senão a de extorsão, de violação de direitos, de negação da vida. A história de que o lucro é deles e cada vez mais deles. Romper com isso é necessário nesse momento para que a gente possa de fato estabelecer uma governança boa. Quando a gente olha para a governança de mulheres – desde a casa, o seu lar, as associações comunitárias e as outras organizações – é sempre uma gestão eficaz, boa, afetuosa e solidária. A gente olha e pensa o todo, pensa em todos e todas. É um momento que a gente chama para isso: para que a gente pense e reaja no sentido de colocar mulheres no poder. Chega de homem branco decidindo a nossa vida. Vamos mudar. Se é esse o sistema que a gente tem para o momento, mudemos de posição. Pensar as mulheres, pensar as mulheres negras no poder para esse momento, é necessário. Nós sabemos gerenciar. A gente vive a vida inteira administrando pouco. A gente sabe como administrar, como distribuir para todo mundo igualmente: como pegar um ovo e alimentar dez, como pegar um pão e alimentar dez. Uma mulher, especialmente negra, em espaços de poder, administrando uma prefeitura, um estado, uma assembleia legislativa, uma câmara de vereadores, um senado, a presidência da república, essa mulher vai saber favorecer de fato toda a nação, todo o território.
A agroecologia é um conjunto de práticas que apontam para outra relação entre humano e natureza. Sei que é um tema que você tem se debruçado há muito tempo – tanto estudado como colocado em prática. O que você acha que a partir da agroecologia é possível enxergar e transformar?
Quando a gente pensa agroecologia, acaba sempre pensando como um espaço de produção de alimentos. A agroecologia é um espaço de produção de conhecimentos, de produção, de novas relações acima de tudo. Esse tem sido o grande desafio da gente: estabelecer relações de fato solidárias, saudáveis, de um bem viver entre as pessoas e de chamar as pessoas a refletirem sobre ser um animal e ser também uma semente. Como tal, eu preciso estar bem com esses dois reinos – animal e vegetal. A agroecologia faz isso. Mas, para além disso, nós temos sido provocadas e temos, a partir da agroecologia, pensado as estruturas de poder. Repensar, olhar e reagir com relação ao patriarcado e como ele afeta esse campo, especialmente rural. A agroecologia hoje, através de um movimento de mulheres, em especial, a articulação de mulheres da Ana (Associação Nacional de Agroecologia), e também através da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, vem trabalhando nesse aspecto do patriarcado e os impactos dele na vida das mulheres no campo agroecológico e não agroecológico também. Quando a gente vem para o rural são muito fortes as opressões que são estabelecidas. Visibilizar isso e lutar contra é uma obrigação que a gente tomou para si no campo agroecológico também. Se há racismo, não há agroecologia. Se há opressão contra a mulher, não há agroecologia. Então, sem feminismo não há agroecologia. A gente tem trazido esse debate pela divisão justa do trabalho doméstico e no enfrentamento a essas relações patriarcais. Ao mesmo tempo, há muito racismo. Em geral, quando se vinha para o campo pensando agroecologia enquanto produção de alimentos, a gente encontrava sempre os agricultores das famílias brancas nos espaços de feiras e também na mídia. O casal branco bem sucedido. Isso denuncia as estruturas de sociedade. Hoje o povo negro e indígena tem dito: “Estamos aqui. Somos povos ancestrais que trazem consigo esse conhecimento e prática. A gente não mais cede e nem permite mais que tomem nossa voz, nosso papel, que nos invisibilizem. Estamos fazendo e queremos estar também nos espaços de tomada de decisão”. E minimamente temos conseguido isso. A agroecologia vem cumprindo um papel muito importante de pensar o todo. Não só a produção do alimento, mas tudo o que envolve essa produção. Do alimento ao conhecimento. A produção também dos enfrentamentos às estruturas que trazem desamor, destruição.
Você que tem na sua história a luta pela reforma agrária, que se colocou em confronto com grupos muito poderosos – com latifundiários, com a polícia, com o Estado e toda essa estrutura complexa de opressões, de gênero, de raça, como é possível enfrentar esse momento?
Tomar água! (risos). Beber água é uma forma de se manter vivo. Mas se organizar, estar organizado, é uma maneira de se manter vivo. Se organizar dentro de casa com seus filhos, seus irmãos, seus pais, seus parentes, seus familiares; se organizar consigo mesmo; se organizar dentro da comunidade, nos sindicatos, nos grupos de mulheres, nos grupos de leitura; se organizar socialmente nos grupos de cultura. Se organizar, mobilizar, estar juntos é uma maneira de a gente se manter vivos neste tempo. Não andar só. Lembrar que a gente olha no olho do outro para confiar, como dizem os mais velhos: “o olhar é o portal da alma”. Você olha no olho do outro e vê a alma. Se você vê que a alma do outro é ruim, foge. Não confie em homem fardado e nem em determinadas instituições que a gente já sabe, são falidas. Elas vivem para nos negar o direito e violar a vida. Estar sempre juntos e beber muita água.
Como eu tenho feito para todos os meus entrevistados e entrevistadas, eu queria terminar esse programa te fazendo o que eu tenho chamado de “pergunta entre”. Pensando nesses outros possíveis, que têm que ser imaginados e refeitos, que outro mundo precisa entrar? Ou que experiências, práticas e sujeitos precisam entrar nesse outro mundo que é urgente criar?
Precisa entrar um mundo de bem viver. Um mundo sem racismo, sem lesbofobia, sem homofobia, sem machismo. Um mundo sem patriarcado e sem capitalismo. Um mundo sem tudo isso que vem nos matando, mas, sim, um mundo de afeto, solidariedade. Um mundo de partilha e de compaixão. Esse mundo precisa retomar seu lugar e a gente tem muito em que se mirar: estão aí os povos indígenas, estão aqui os povos negros. Quando a gente olha para trás e para o lado – nem precisa olhar muito longe – existem muitos grupos resistindo, e reexistindo com uma vida de qualidade, lutando por isso, por um bem viver de fato. A natureza, ela é o maior exemplo. Você olha o campo – e a gente está aqui vivendo esse momento do cuidado – você olha o sol, os elementos da natureza, as plantas, as flores, os frutos, o ar, o vento, a noite, as estrelas, a lua, a água. Você olha todos esses elementos que estão aqui fartamente disponíveis. É cuidar disso, aprender a conviver com isso. Aprender a respeitar. É esse mundo que precisa entrar: um mundo que eu olho para tudo em volta de mim – e todas e todos – e respeito e me sinto bem. A gente se dá as mãos. Esse mundo.
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