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Crédito: Milena Ferreira
“Eu sabia que a lógica de ter quatro policiais me segurando, para me conduzir para algum lugar, estava bastante errada e me revoltei. Porém, a minha reação naquele momento também era pelo medo de que eles disparassem uma arma acidentalmente e me atingir ou até cair por cima de mim e me machucar, me sufocar”. As palavras do artista olindense Afroito, de 27 anos, revelam os sentimentos experienciados por ele no dia 29 de maio, quando foi imobilizado e detido pelo Batalhão de Choque, durante o ato que pedia o impeachment do presidente e vacina para a população.
Quando saiu de casa pela manhã, acompanhado da amiga Maristella Lourenço, Afroito acreditava que participaria apenas de um ato pacífico. Após chegar ao ponto de concentração do ato, o artista deixou sua bicicleta na praça e seguiu o percurso da manifestação a pé. “Quando decidi participar do ato do dia 29 de maio, achei que teriam bem menos pessoas nas ruas. Quando cheguei no Derby, tinham vários idosos e crianças e, na minha cabeça, toda a guarnição policial que estava lá era para proteger os manifestantes”, afirmou Afroito, cujo nome de batismo é Ítalo Gomes, mas faz questão de ser chamado pelo nome com que assina sua canções e se apresenta no palco como cantor.
O ato seguiu tranquilamente, como esperava o artista, mas, após completar o trajeto planejado pelos manifestantes, no momento final, já perto da dispersão, Afroito foi surpreendido pela abordagem violenta, que resultou em detenção.
Afroito e Maristella decidiram ir até a avenida Guararapes só para comprar cigarro, mas foram detidos pela polícia. Nas imagens que viralizaram nas redes sociais, é possível perceber o desespero de ambos no momento da abordagem e a violência exagerada utilizada para mobilizar o artista.
As circunstâncias da prisão serão contadas pelo próprio artista:
“Tinha uma barreira do Batalhão de Choque e eu desviei da barreira, passamos pela lateral.Quando eu estava passando pela lateral, um dos policiais segurou o meu braço e, com calma, eu expliquei a ele que só queria passar pra comprar um cigarro e pedi para ele me soltar. Fui, comprei o cigarro e voltei pelo mesmo lugar. Quando estava passando, outro policial colocou a mão em mim, dessa vez com mais força, daí eu já me chateei e puxei o meu braço. Depois uma policial mulher, que estava na ponta da barreira tentou me segurar mais uma vez e eu pedi que ela me soltasse, puxando meu braço novamente. Depois disso eu saí andando e falei ‘Vocês não têm família? Deveriam estar do nosso lado, protegendo a gente’. Logo em seguida eles vieram correndo para me segurar. Eu não corri, porque eu sabia que se eles atirassem poderiam me ferir ou ferir outras pessoas que estavam próximas. Quando eu dei conta, já tinham quatro policiais em cima de mim e a partir desse momento o meu corpo reagiu, eu tentei me soltar, eu pedi para que eles me soltassem, porque na minha cabeça não fazia sentido que tantos policiais precisariam me segurar daquela forma para me conduzir para algum lugar”.
Após a abordagem, Afroito e Maristella foram levados à Central de Flagrantes da Polícia Civil onde foram ouvidos pelo delegado Gilmar Rodrigues, que imputou aos dois os delitos de descumprimento a medidas sanitárias, desobediência e desacato de ordem de autoridade.
Os policiais afirmaram que os amigos não acataram a voz de prisão dada e, por isso, agiram para impedir a fuga. Afroito nega a acusação: “A voz de prisão não foi dada antes da abordagem, vieram já me agredindo. Se eles tivessem dito ‘você está preso’ a minha reação seria estender os braços para que eles colocassem a algema, mas em nenhum momento eu apresentei ameaça para eles, tanto que eles nem chegaram a me algemar”.
Afroito nega com firmeza a acusação de desacato, que é baseada na afirmação dos policiais de que receberam xingamentos de “pau no cu”, vindo do artista. “Qualquer pessoa que tenha entendimento sobre as vivências de uma pessoa LGBT sabe que esse tipo de frase tem um significado totalmente diferente pra mim. Eu jamais xingaria qualquer pessoa como ‘pau no cu’ porque a maior parte da minha vida eu exerci a homossexualidade e sofri com isso, então não é algo que eu verbalizaria, é algo sem fundamento”, assegura Afroito.
Jovem, negro e morador de Caixa D’água, na periferia de Olinda, na Região Metropolitana de Recife, Afroito conhece os riscos que o seu corpo enfrenta em uma abordagem policial. “É só o velho ódio da burguesia querendo ser externalizado ao identificar um corpo dissidente como o meu”, especula o artista quando questionado sobre a motivação da ação violenta.
O artista relata que essa não é a primeira vez que a polícia o trata com brutalidade e conta que, por isso, já desenvolveu um quadro depressivo. “Desde 2017, eu passo por abordagens policiais violentas, eu tenho um grande trauma da polícia dessa cidade. Em 2018 eu entrei em depressão por isso. Eu comecei a questionar os meus amigos e as pessoas próximas o que elas fariam se elas estivessem comigo na rua e a polícia me abordasse, porque eu passei por três abordagens policiais entre 2017 e 2018 que foram enlouquecedoras, custaram a minha saúde mental”, disse.
Um dos episódios mais marcantes e traumatizantes para Afroito aconteceu em 2018, quando o artista levava um cachorro de estimação para uma consulta veterinária na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e foi abordado. “Os policiais pararam o carro que eu estava, me mandaram descer, me deitaram na pista, apontaram um fuzil na minha cabeça e perguntaram onde estava a droga, depois disso eu passei meses em casa”, relembrou o artista.
O ocorrido do dia 29 de maio será mais um episódio, entre tantos, difícil de esquecer. Em um só dia, Afroito precisou lidar com seus maiores medos: polícia e sangue. Ele e Maristella foram conduzidos até a delegacia em uma viatura suja de sangue. “Fomos colocados em uma viatura que estava suja de sangue, era por volta de uma hora da tarde, a gente não sabia para onde seríamos levados, eu fiquei desesperado e Maristella tentava me acalmar. Durante o percurso até a delegacia a gente entrou em uma crise de choro, porque a gente sabia que não era justo o que estava acontecendo”.
Após prestar depoimento na delegacia, no próprio sábado, Afroito e Maristella pagaram fiança com ajuda de representantes dos movimentos sociais que os acompanharam na delegacia e foram liberados sem precisar passar pela audiência de custódia. Por indicação da advogada Yelena Galindo, os dois passaram por exame de corpo de delito.
Os amigos esperam, em liberdade, por uma decisão judicial que vai definir se as prisões foram legais ou não. De acordo com Afroito, as advogadas responsáveis pelo caso analisam a possibilidade de, futuramente, entrar com uma ação contra o estado de Pernambuco. “Por enquanto a gente está esperando a decisão da justiça e torcendo para que não seja preciso pagar por crimes que a gente não cometeu”, afirmou o artista.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.