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Mentiras e desinformação ameaçam matar o Tatu-bola

Marco Zero Conteúdo / 07/05/2024
A imagem mostra um tatu caminhando sobre um terreno coberto de pequenas pedras e terra. O tatu tem uma carapaça protetora composta por placas ósseas que formam padrões geométricos. As cores variam do marrom ao dourado, criando uma textura visual rica. O animal está em movimento, com suas patas curtas e fortes tocando o solo.

Crédito: Eguerius/Wikimedia Commons

por Felipe Melo*

Pernambuco tem uma das maiores áreas protegidas da Caatinga, você sabia? Localizada nos município de Petrolina, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, o Refúgio de Vida Silvestre Tatu-Bola abrange uma área de mais de 110 mil hectares com um trecho de Caatinga bem preservado e habitado tatu que inspirou o Fuleco, nome do mascote da Copa do Mundo de 2014. É nesse espaço também que várias populações tradicionais humanas como quilombolas e outros pequenos agricultores vivem há séculos, manejando a Caatinga com suas suas roças e bodes. Seres humanos e Caatinga vivem juntos nessa região, por isso o RVS Tatu-Bola foi criado para garantir que essa convivência continuasse indefinidamente. 

A criação do RVS Tatu-Bola foi uma demanda induzida em 2014 pela escolha da espécie de tatu endêmico da Caatinga como mascote da Copa do Mundo da FIFA em 2014. Muito dinheiro rolando no maior evento esportivo do mundo e nenhum centavo estava previsto para proteger a espécie que serviu de inspiração para os criadores do mascote da competição. Então um grupo de pesquisadores lançou o desafio ao governo brasileiro e à FIFA: proteger o Tolypeutes tricinctus, o tatu-bola-da-caatinga. Após meses de mobilização, abaixo assinados e repercussão mundial, a campanha para criar uma área protegida dedicada a salvaguardar a espécie e seu sistema socioecológico, foi finalmente reconhecida pelo governo de Pernambuco.

Fizemos um vídeo contando essa história:

Acontece que nos últimos meses, audiências públicas conduzidas reuniram um impressionante número de agricultores locais, todos favoráveis à revogação do Refúgio de Vida Silvestre Tatu-Bola (RVS Tatu-Bola). Uma busca rápida na internet devolve notícias alarmantes que mencionam desapropriações forçadas de terra e falência de agricultores, culminando com a criação de uma associação de afetados pelo RVS Tatu-Bola. Sobram queixas sobre os impactos da criação da unidade de conservação e sobram, ainda mais, desinformação e mentiras. Entre tantas, a mais cruel é que a existência do RVS Tatu-Bola implica em desapropriações forçadas de terra. Isso criou um pânico generalizado entre os moradores da região que, influenciados pela mentira, temem serem expulsos de suas terras. É preciso definitivamente afastar os fantasmas da sala para se ter uma conversa séria sobre o RVS Tatu-Bola.

Acontece que, legalmente, a categoria de ‘refúgio de vida silvestre’ não exige desapropriação, muito menos forçada. A desapropriação só é prevista nos casos onde não houver condições de conciliação entre proprietário privado e órgão gestor ambiental. Aliás, essa categoria foi escolhida por justamente permitir a produção sustentável na área regulada por um plano de manejo. Esta condição está escrita no SEUC (Sistema Estadual de Unidades de Conservação), lei estadual que rege a criação e gestão de UCs estaduais.

Veja o que diz a lei 13787 de 8 de junho de 2009:

“Art. 13. O Refúgio de Vida Silvestre – RVS tem como objetivo proteger ambientes naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória.

§ 1º O Refúgio de Vida Silvestre pode ser constituído por áreas particulares desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários.

§ 2º Para viabilizar a gestão da unidade poderá ser estabelecida parceria entre o órgão gestor e o proprietário da terra.

§ 3º Havendo incompatibilidade entre os objetivos da área e as atividades privadas ou não havendo aquiescência do proprietário às condições propostas pelo órgão gestor da unidade para a coexistência do Refúgio de Vida Silvestre com o uso da propriedade, a área deve ser desapropriada na forma da lei vigente.

§ 4º A visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão gestor, e àquelas previstas em regulamento.”

Então, chegamos ao ponto chave do problema, que não é a área protegida em si, mas a ausência de seu documento mais importante para existir de fato para aléḿ do decreto de criação. O plano de manejo é um estudo de responsabilidade do órgão ambiental do estado, no caso a CPRH, que tem “esquecido” dele por quase 10 anos depois da criação da área. Este documento necessário, seria suficiente para resolver o conflito entre agricultores e o RVS Tatu-Bola. Explico: atualmente dizemos que um plano de manejo é construído em conjunto com os atores afetados e sua construção, por ser participativa, também passa por aprovação da população local em audiências. 

Aspas novamente para a lei do SEUC, no seu artigo 33:

“Art. 33. Todas as unidades de conservação devem dispor de um Plano de Manejo, que abrangerá:

I – área da unidade de conservação;

II – zona de amortecimento;

III – corredores ecológicos.

§ 1º O Plano de Manejo deverá contemplar medidas para promover a integração econômica e social das comunidades vizinhas à unidade conservação.

§ 2º Na elaboração, atualização e implementação do Plano de Manejo será assegurada a ampla participação da população local e da sociedade civil.

§ 3º O Plano de Manejo de uma unidade de conservação deve ser elaborado no prazo de até 05 (cinco) anos a partir da data de sua criação.

§ 4º O Plano de Manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável e da Reserva Extrativista deverá ser submetido à aprovação do respectivo Conselho Deliberativo.

Está cristalino que o plano de manejo do RVS Tatu-Bola deveria ser suficiente para regulamentar as práticas agropecuárias sustentáveis no local, assegurando tanto interesses ambientais quanto socioeconômicos da população local. Tem mais: outro instrumento valiosíssimo para a gestão da área é a formação de um conselho gestor. Novamente o SEUC prevê no seu artigo 35 prevê a criação deste instrumento de cogestão com participação dos proprietários de terra. Tudo isso feito, teríamos uma área conservada, sob gestão compartilhada com comunidades empoderadas e com potencial para ser um modelo nacional. Mas o Governo de Pernambuco parece ter um prazer sádico em assistir ao desespero dos agricultores e de ambientalistas ao mesmo tempo. 

É verdade que o processo de criação do RVS Tatu-Bola foi rápido, mas seguiu todo o rito legal e muito rigor científico, sendo aprovado em diversas instâncias, desde audiências locais até órgãos colegiados como o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Mas, não podemos fechar os olhos ao passado excludente das políticas de criação de áreas protegidas no Brasil e reconhecer que os modelos de conservação praticados historicamente geraram muitos prejuízos para populações locais menos favorecidas. Mas o SEUC mostra que aprendemos, e que os modelos foram aperfeiçoados e hoje se prevêem consultas, co-construção e co-gestão e amplo debate.

No caso do RVS Tatu-Bola, não foi a criação da área protegida, mas a desinformação, as fake news e a inação do estado de Pernambuco que causaram os prejuízos. No perfil do Instagram @revogatatubola há uma publicação mostrando que a população não é contra a conservação da Caatinga e do ex-mascote da copa de 2014, mas está desesperada e temerosa pela existência da área protegida. Algo para eles está errado, pois não lhes foi entregue o prometido: uma área protegida onde sua vida poderia prosperar de maneira sustentável. Algo está errado para nós da área ambiental, que dedicamos um grande esforço para fornecer todos os estudos para a criação do RVS Tatu-Bola. Todos queríamos gente e Caatinga vivendo juntos, como sempre foi. 

O Governo de Pernambuco ao longo de diferentes gestões preferiu deixar o pânico, a desinformação e o conflito prosperarem. Ou, simplesmente investir recursos em estratégias igualmente necessárias mas de maior apelo público como dedicar R$ 16 milhões para projetos de restauração da Caatinga. A ironia é dedicar esforços para recuperar enquanto não se protege o que está conservado. É como preferir tomar antibióticos para uma amigdalite enquanto deixamos uma cirrose avançar sem controle, consciente de tudo. Aliás, o que pensa a vice-governadora Priscilla Krause? O que pensará seu pai, um ex-ministro do meio-ambiente (1996-1999)? Todos vão assistir solenemente a morte do RVS Tatu-Bola ou vai agir para resolver o conflito sem prejudicar os agricultores e sem acabar com o RVS Tatu-Bola?

Já passou da hora desse falso dilema entre conservação e desenvolvimento ser resolvido. Povos da Caatinga são do mesmo time dos ambientalistas que insistem em defender o RVS Tatu-Bola. Que fique claro, não existe Caatinga sem caatingueiro. Alguém está ganhando com esse pânico e a divisão que ele gera e não são nem a Caatinga e muito menos os camponeses locais.

*Ecólogo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Nottingham Trent University (Inglaterra).

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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