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Mestre Martelo: memória, voz e alma do cavalo-marinho

Maria Carolina Santos / 28/01/2024
Foto colorida de Mestre Martelo: ele é um homem negro, idoso, de sorriso escancarado, usado um chapéu enfeitado de miçangas e fitas, usando uma fantasia típica feita de retalhos de tecido colorido.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

É numa pequena casa em Condado, na Mata Norte, que o mestre Martelo, de 87 anos, conta das suas artes. É uma longa vida dedicada à cultura popular. Por mais de 60 anos brincou de caboclo de maracatu rural. Há 68 anos, é o Mateus (ou Mateu) em brincadeiras de cavalo-marinho. O mais antigo em atividade. Faz seus próprios adereços e sabe de cor centenas de versos e loas da cultura popular da Zona da Mata. São inúmeros “causos”. Uma memória que é um acervo sobre a cultura popular pernambucana.

O cavalo-marinho talvez seja a mais complexa das brincadeiras surgidas nas paisagens monocromáticas da cana de açúcar: uma encenação musical com 76 personagens, em que há loas, toadas, música e dança. Há homens, bichos e figuras fantásticas. Muitos usam máscaras. A dança é ágil, levantando poeira no terreiro.

Na tradição, os ensaios começam em julho (no sábado mais perto do dia de Santana) e se encerram no Dia de Reis. Não havia cavalo-marinho no carnaval.

As apresentações eram feitas para varar a noite, terminando por volta das 7h e durando mais de 8 horas.Mestre Martelo sabe de cor todas as falas dessas muitas horas de encenação. “Hoje, não tem mais isso. É apresentação de uma hora, 40 minutos. Nem ensaio querem fazer mais”, reclama. Conta que a figura do Mateu – que, na encenação, disputa Catirina com o personagem Bastião – é quem dá o tom da noite no cavalo-marinho. Não só é figura da brincadeira, também ajuda a organizá-la. Evita brigas, controla os bêbados.

Sebastião Pereira de Lima, o nome dele de batismo, conta que aprendeu cavalo-marinho observando. “E assonhando”, diz. Ainda criança, se escondia da polícia para poder ver a brincadeira noite adentro. A primeira vez em que foi ser Mateus, aconteceu de supetão. Outro bricante o chamou. Não tinha carvão – que é como os Mateus pintam a cara. Cuspiu na terra e melou o rosto. Tinha 19 anos.

A partir daí, foi Mateus em vários grupos. Há 45 anos brinca no Cavalo Marinho Estrela de Ouro. Perdeu as contas de quantas vezes evitou confusões. “Não bebo, não fumo e não tomo café”, diz, deixando a tarefa de ficar longas noites acordado ainda mais difícil para uma pessoa comum. Mas não para ele.

De repente, o assunto muda: Martelo conta a história de um caboclo de lança que fez um trato com o “bichinho”. Iria brincar 21 carnavais na sua melhor forma. “Ele chegava pulando as janelas”, diz. Às vésperas do 22º carnaval, ele ainda queria brincar. Mas recebeu uma visita misteriosa. Era o “bichinho” quem queria brincar o carnaval agora. Martelo diz que ele enlouqueceu. Foi até para uma instituição. Pergunto se ele também fez um trato, pra brincar tantos carnavais assim. Ele pisca o olho, sorri e nega. Carnaval é coisa séria. E emenda falando de um outro caboclo, que também enlouqueceu: era meia-noite e um minuto quando ele chegou em casa, já na quarta-feira de Cinzas. “Caboclo brinca até a terça-feira. Ele passou um minuto”, diz.

Foto colorida de Mestre Martelo; homem idoso, negro, usando chapéu enfeitado com miçangas e fantasia típica feita com retalhos coloridos.

Martelo não faz distinções entre a vida e a arte. Ele e o Mateus da festa são uma coisa só. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Vida e brincadeira, uma coisa só

Quando fala, Sebastião Pereira de Lima quase não faz distinções entre vida e arte, entre o que é episódio da vida dele e o que são características, trejeitos e falas de Mateus. Ao contar da vida miserável da infância, trabalhando em engenhos e vendo quatro irmãos morrerem, para e declama uma loa de cavalo marinho. Ainda tem orgulho da época em que cortava cana: “Enchia sozinha um caminhão de manhã e outro caminhão de tarde”.

Ele não apenas interpreta Mateus, mas se confunde com o personagem. “Comecei a brincar de Mateus em 1956. Saí no carnaval em um urso. Em 1957, no dia sete de janeiro, vim para aqui (Condado)”, conta, antes de começar as falas da negociação do Mateus com o Capitão Marinho participar de uma festa de cavalo marinho, ou de brincadeira de terreiro, como era chamado. “O Mateu certo, ele nem chega bebo, nem bebe. Por que ali (no terreiro) ele vai tomar conta”, diz.

Na tradição, só havia homens na encenação. Mas mestre Martelo não é um homem parado no tempo. Apoia e recebe, na sua casa, como uma residência artística, pessoas de todo o Brasil interessadas nas tradições da cultura popular. A artista paulista Cibele Mateus foi uma delas. Ela brinca de Mateus e recebeu todo o apoio do mestre. Assim como Odília Nunes, também artista, pesquisadora, palhaça. Juntas, elas organizaram o livro Mateus de uma vida toda, com apoio do Funcultura, em que mestre Martelo narra sua vida e obra.

Um desafio do livro foi manter na obra a oralidade do mestre Martelo. “O livro surgiu a partir de uma conversa minha com ele. Ele estava cantando a repartição do boi (uma das partes do cavalo-marinho) e pediu para eu anotar, porque ele queria me ensinar. Quando eu estava anotando, ele perguntava quantas páginas dava. Ele olhou pra mim e disse: isso não dava um livro?”, conta Cibele.

Mestre Martelo não tem estudo formal. Sabe apenas assinar o próprio nome. Um desafio do livro foi preservar sua forma de contar histórias. “A oralidade dele não é linear. É espiralar, transitando no passado, no presente, na brincadeira. Nas entrevistas para o livro, fomos puxando alguns focos. Para falar de quando ele nasceu, por exemplo, ele vai primeiro falar da mãe dele, do pai dele, como se conheceram, dos irmãos dele…”, explica.

Foram 40 dias de conversas para fazer o livro. “Martelo preserva a tradição da oralidade na cultura popular.Para todo mundo que chega na casa dele, ele tem uma história para contar. As histórias dele se confundem com as histórias da própria brincadeira. Ele é o tempo todo Mateus”, diz Cibele.

Para a artista e co-organizadora do livro Odília Nunes, a contribuição do mestre Martelo para a cultura pernambucana é imensa. “Estamos muito felizes com o livro porque estamos conseguindo fazer isso com Martelo ainda em vida. O livro é também um apelo: vamos olhar para esse homem, ele ainda está aqui. Este patrimônio cultural está vivo, está aqui, e tem muito para contribuir com as pessoas que estão começando a brincar de cavalo marinho. O livro também é um grito para que o Estado, os gestores, para que as pessoas olhem para ele como o grande mestre que ele é, apesar de ele não gostar dessa palavra”, diz Odília, acrescentando que mestre Martelo não é patrimônio vivo de Pernambuco, apenas do município do Condado.

O livro Mateus de uma vida inteira custa R$ 60 e pode ser adquirido por meio de contato pelo e-mail nomeuterreirotemarte@gmail.com.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com