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Ministério Público do Ceará tenta impugnar candidatura coletiva de mulheres pretas

Raíssa Ebrahim / 01/10/2020

Crédito: Sara Vieira Rosas

Três mulheres pretas, periféricas e ativistas na luta por um mandato coletivo na vereança de Fortaleza. Adriana Gerônimo, Louise Santana e Lila Salú formam a chapa Nossa Cara, do Psol. Nesta semana, elas foram surpreendidas por uma ação de impugnação de registro de candidatura por parte do Ministério Público do Ceará (MPCE). O motivo alegado pela promotora Ana Maria Gonçalves Bastos de Alencar é que o nome fantasia que aparecerá na urna fere a legislação eleitoral por “não se tratar do nome, prenome, cognome, sobrenome, apelido ou nome pelo qual a candidata é conhecida”.

O número de iniciativas compartilhadas cresceu nestas eleições, extrapolando inclusive o campo progressista, onde o movimento surgiu de forma orgânica e ganhou espaço no último pleito, em 2018. Esse crescimento agora pode vir acompanhado por reações institucionais como essa que aconteceu com a Nossa Cara e pelo risco de minar candidaturas coletivas.

Na legislação, não existe previsão para esse tipo de chapa. Apenas uma pessoa recebe o registro, disputa a eleição, presta contas e, em caso de vitória, é diplomada. Existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no Congresso (nº 379/17), da deputada Renata Abreu (Pode-SP), para legitimar os mandatos compartilhados, mas a matéria ainda está em tramitação.

O artigo 25 da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) n°23.609/2019 diz que “O nome para constar da urna eletrônica terá no máximo 30 (trinta) caracteres, incluindo-se o espaço entre os nomes, podendo ser o prenome, sobrenome, cognome, nome abreviado, apelido ou nome pelo qual o candidato é mais conhecido, desde que não se estabeleça dúvida quanto a sua identidade, não atente contra o pudor e não seja ridículo ou irreverente”.

Mas o que para a promotora cearense é uma questão de rigor da lei e evita propaganda inverídica e que o eleitorado seja induzido ao erro achando que está votando em três pessoas, para as candidatas pode ser visto como uma tentativa de apartá-las do processo eleitoral atacando o modelo que escolheram para fazer política.

A candidatura coletiva foi uma forma escolhida pelas três para conseguir participar da disputa eleitoral e enfrentar as dificuldades cotidianas desse processo e da política institucional através da união e das pautas que as atravessam. Para mulheres negras e de periferia, esse tem sido muitas vezes o único caminho possível. Exemplos de experiências coletivas bem-sucedidas do ponto de vista da conquista do mandato e da quebra de barreiras são as deputadas estaduais Juntas (Psol-PE) e a Mandata Coletiva (Psol-SP). A Gabinetona, em Belo Horizonte, é outra caso, mas diferente no formato, por reunir quatro mandatos parlamentares em um mandato coletivo.

Na ação, a promotora Ana Maria argumenta também que, em Ata de Convenção do Psol, não constam os nomes de Louise e Lila. Ela entende que, caso quisessem concorrer à vaga na Câmara Municipal de Fortaleza, deveriam ser filiadas a um partido, ser escolhidas em convenção e apresentar individualmente seus respectivos registros de candidatura.

“As demais ‘candidatas agregadas’ podem até fazer propaganda para a Candidata/Requerente e lhe emprestar apoio, no entanto, a divulgação de uma candidatura tripla implicará em uma situação de fato sabidamente inverídico, induzindo o eleitorado a erro”, diz o texto da peça.

O registro da candidatura e a foto a aparecer na urna são de Adriana e é ela, portanto, o alvo da ação. Ela ficou sabendo da novidade através de um contato feito pela Marco Zero Conteúdo para solicitar entrevista nesta quarta-feira (30). Na sequência, acionou o advogado do Psol no Ceará e montou uma assessoria jurídica junto com outras parceiras para preparar uma defesa. O prazo para contestação é de sete dias, contados a partir da quarta (30).

Adriana irá se amparar na subjetividade da lei e nas experiências do mandato das Juntas (Psol-PE), formado por cinco codeputadas na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), registrado no nome de Jô Cavalcanti. Em 2018, o nome que apareceu na urna foi “Juntas”.

“Sabemos que inúmeros motivos são construídos para a manutenção de uma lógica onde nós, mulheres pretas e periféricas, sejamos afastadas do espaço de disputa da política institucional”, diz a nota publicada pela Nossa Cara no Instagram nesta quinta-feira (1).

O advogado do Psol no Ceará Walber Nogueira acrescenta que, apesar de não existir uma permissão para as candidaturas coletivas, também não há uma proibição. Sobre o argumetno da indução ao erro, ele defende exatamente o contrário, que ter o nome coletiva na urna é mais uma forma de mostrar a realidade da proposta.

Ele cita que há outra candidatura coletiva, no Crato, interior do estado, chamada Sementes, também do Psol, e que, até o momento, não sofreu qualquer ação de impugnação. “Sabemos que é uma outra zona eleitoral. Mas, do ponto de vista jurídico, a justiça eleitoral é uma só, apesar de ser exercida por pessoas diferentes. É estranho que, dentro do mesmo estado, tenhamos um Ministério Público que vê a candidatura coletiva como irregular e outro que vê como regular”, argumenta.

Confira a nota da Nossa Cara na íntegra:

A candidatura coletiva Nossa Cara foi surpreendida na noite de ontem (30/10), com a informação da existência de um pedido de impugnação do registro de candidatura pelo Ministério Público Estadual (MPE) 117 ª Zona Eleitoral. Na ação, o MPE apresenta a argumentação que não haveria respaldo jurídico para uma candidatura no modelo coletivo e que as cocandidatas estariam induzindo o eleitorado fortalezense ao erro.

No entanto, as experiências de mandatos coletivos e compartilhados são uma realidade. Até 2018, existiram quase 100 candidaturas coletivas espalhadas pelo Brasil. Atualmente existe uma mandata coletiva de codepudatas em exercício, as Juntas, em Pernambuco. Tecnologia de ocupação da política desenvolvida e aplicada pelo mundo, os mandatos coletivos têm conseguido fortalecer os debates sobre a reforma política e ampliam a lógica de democracia participativa.

Sabemos que inúmeros motivos são construídos para a manutenção de uma lógica onde nós, mulheres pretas e periféricas, sejamos afastadas do espaço de disputa da política institucional.

Os espaços de poder pensados sem a real intervenção das maiorias sociais sentem o peso de iniciativas que chegam para desorganizar suas tão velhas engrenagens e propor o novo. Esse processo inclui o modo como são formuladas as leis, a operação e interpretação das mesmas, que seguem a lógica colonialista onde nossos modos de fazer a política acontecer não são incorporados a esse velho modelo.

Lemos isso como um ataque direto ao modelo que escolhemos para fazer política, um modelo que agrega corpos negros, periféricos, LGBTQIA+, de trabalhadoras e trabalhadores que ousam subverter a lógica dos lugares pré-estabelecidos, que reserva lugares para os mesmos nomes perpetuando uma história de ausências de acesso e direitos para o nosso povo.

A velha cara da política diz que se renovar assume uma face de perseguição e amedrontamento, mas nós não recuaremos. Queremos a Nossa Cara na Política! Somos muitas e vamos juntas construir uma Fortaleza.

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Professora e ativista questiona prioridades do MP

"Pode ser uma perda de mobilização histórica, sobretudo para mulheres negras", diz Evorah Cardoso. Crédito: Gui Mohallem

Na avaliação de Evorah Cardoso, professora, ativista, co-diretora do #MeRepresenta e integrante do #VoteLGBT e da Rede Feminista de Juristas (deFEMde), há uma questão de subjetividade no tema em questão. “E como se esse fosse o grande problema a ser fiscalizado nestas eleições”, provoca. Ela acredita numa perseguição à ideia de mandatos coletivos e diz que não se pode descartar a possibilidade de racismo institucional. O #MeRepresenta é uma organização, com plataforma online, formada por coletivos de mulheres, pessoas negras e LGBT+ em busca de promoção da igualdade.

“Em vez de o Ministério Público estar preocupado em fiscalizar recursos para candidaturas negras, está preferindo fazer uma cruzada contra as candidaturas coletivas. Corre-se o risco de minar várias dessas iniciativas este ano e isso pode ser uma perda de mobilização histórica, sobretudo para mulheres negras”, comenta a advogada paulistana.

Em comunicado à imprensa esta semana sobre o assunto das candidaturas eleitorais, o presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE), desembargador Frederico Neves, comenta que “Pela legislação em vigor, a candidatura é um ato individual. A Justiça Eleitoral examinará as condições de elegibilidade e eventuais causas de inelegibilidade de apenas uma pessoa. Acresça-se que somente um nome será admitido na urna eletrônica e será votado, vindo a assumir o cargo e a exercer as funções a ele inerentes, acaso eleito”.

“Particularmente, vejo com simpatia a iniciativa, por estar convencido de que, duas ou mais pessoas especializadas, imbuídas num mesmo propósito, poderão prestar à sociedade, serviços mais abrangentes e de forma mais eficiente. Ocorre que, pela legislação em vigor, ainda não é possível a candidatura compartilhada”, complementa.

Procurado pela reportagem, o MPCE enviou uma nota. A reportagem não conseguiu entrevista com a promotora Ana Maria.

Confira a nota do MPCE na íntegra:

O Ministério Público Eleitoral, por meio da Promotoria da 117ª Zona Eleitoral, confirma que já foi protocolada a Impugnação desde o dia 27 de setembro de 2020. O prazo final para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE/CE) e os demais Tribunais julgarem as impugnações de registro de candidatura é dia 26 de outubro de 2020. No caso em exame, a impugnação da candidatura de ADRIANA GERÔNIMO VIEIRA SILVA, ao cargo de vereadora, pelo partido PSOL, foi somente em relação ao nome da Urna, a saber, “Nossa Cara”, que não identifica a candidata e não obedece ao artigo 25 da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) n° 23.609/2019. Em 30 de setembro de 2020, através do Mural Eletrônico, foi feita a citação da candidata para, no prazo de sete dias, contestar a impugnação. Em redes sociais constam propagandas eleitorais e postagens da candidata Adriana Jerônimo, apelidada por “Nossa Cara” em referência à candidatura coletiva envolvendo mais duas pessoas, em total discrepância com a legislação eleitoral, que não prevê tal situação. Após a impugnação do nome, o Ministério Público Eleitoral adotará medidas para que não sejam divulgadas informações inverídicas na propaganda eleitoral, ou seja, propaganda de pessoas que não ostentam a condição de candidata.

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Conheça as mulheres da candidatura coletiva Nossa Cara

Lila e Adriana e Louise. Crédito: Sara Vieira Rosas. Crédito: Sara Vieira Rosas

Adriana Gerônimo

Com 30 anos, Adriana é mãe de duas meninas e “militante fazedora de política no cotidiano”, como ela mesma define. Assistente social de formação, vive na comunidade Lagamar e também luta na disputa por equipamentos públicos – passou um ano para conseguir uma vaga na creche para a filha mais nova. Também milita no movimento por moradia e segurança pública na esfera popular.

Louise Santana

Com 30 anos, formada em pedagogia, está professora substituta numa escola pública da periferia de Fortaleza e é estudante de direito na Universidade Federal do Ceará (UFC). Cresceu no loteamento Santa Terezinha, na regional cinco, uma das mais precarizadas da cidade. Cristã, entrou cedo na movimento popular a partir da igreja, de associações de bairro e do movimento estudantil. Depois se organizou no movimento de mulheres. Em 2012, foi vítima de violência doméstica, fato que também faz parte da sua construção de luta social. Atualmente atua na Rede de Mulheres Negras do Ceará e na luta do movimento por direito à moradia.

Lila Salú

Com 32 anos, iniciou a militância aos 14 atraves do movimento hip hop e depois trilhando os caminhos com os movimentos LGBTQIA+ e feminista negro. Faz parte do grupo Tambores de Safo, que milita a partir da arte e da percussão. Nascida e criada na favela da Verdes Mares, hoje é moradora do conjunto Jardim União, no bairro Passaré. Estudante de bacharelado em humanidades na Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira). Além de ativista, é tia, irmã e filha a pauta a luta da mulher preta, trans, sapatão e da quebrada que ocupa o espaço de referência dentro de casa e do cuidado, sobretudo de crianças e idosos, além da questão da violência contra mulheres, crianças e adolescentes.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com