A morte de Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos, na terça (2), expõe sem retoques a brutalidade do racismo por trás das desigualdades no Brasil. A criança caiu do 9o andar das Torres Gêmeas, no bairro de São José, centro do Recife, quando procurava a mãe, a trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, que passeava com os cachorros da patroa Sarí Gaspar Côrte Real, esposa do prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker.
Em plena pandemia de coronavírus, Mirtes e Miguel deveriam estar em sua casa, protegidos e com o salário integral da mãe garantido.
A patroa era atendida no apartamento por uma manicure e não cuidou de Miguel como Mirtes cuidava dos filhos dela. Sarí deixou a criança de apenas 5 anos entrar no elevador sozinha e, mais do que isso, apertou no 9o andar e voltou para a casa.
Presa, pagou fiança de R$ 20 mil para responder em liberdade por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), segundo o delegado Ramon Teixeira, responsável pelo caso.
Nas redes sociais, entidades da sociedade civil e ativistas pelos direitos humanos e antirracistas se manifestaram expondo o racismo estrutural por trás da tragédia da morte de Miguel. Criticando os silêncios e as contradições das elites, da polícia e da mídia.
“A nossa indignação se justifica pela inaceitável negligência e não valorização da vida de uma criança de apenas 5 anos, por ser filho de uma empregada doméstica, mulher negra e pobre. Não seria importante a vigilância e atenção devida aos cuidados que se requer de qualquer adulto para uma criança nessa fase de desenvolvimento?
A situação abre espaço para um debate de classe e de raça, fundamental para a compreensão do que é ser pobre e negro num Brasil que em tempos de pandemia uma mulher negra, para manter o sustento de sua família, precisa sair de casa, levando seu filho de 5 anos , para trabalhar num serviço que não é essencial, e lhe é cobrado os cuidados com os cachorros dos patrões e sentem na pele a negligência e morte do seu próprio filho”
Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP
“Não foi acidente! Sari foi autuada por homicídio culposo e foi liberada para responder o processo em liberdade, mediante fiança. Trata-se de evidente desprezo e coisificação da vida negra. Miguel morreu no dia em que a PEC das Domésticas completou cinco anos e esse aniversário da legislação de proteção das domésticas diz muito sobre nosso país que não superou sua herança escravagista e racista. Miguel era um menino robusto e alegre, diz sua tia, que não acredita na justiça dos homens”.
Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas- Quilombo do Arruda- Fórum de trabalhadores de Saúde Mental do estado de PE- Marcha Mundial das Mulheres – Fórum de Mulheres Negras do PT- Secretaria de Mulheres do PT-PE – Seremos Resistência- Cantadas Progressistas- Coletivo Pão e Tinta – Coletivo boca no Trombone- Roda Cultural do Bronx- Coletivo Fazedores de Cultura Periferia-PE- Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE- ACELADORA Social palaffit- Mulheres do Audiovisual de Pernambuco – Coletivo Luta Saúde – Coletivo Teia Feminista – Coletivo ressignificando vidas- COMFRA (Coletivo mães feministas Ranusia Alve)- Coletivo Fotocante- Juventude do PT-PE- Grupo Curumim
“Nós que fazemos a Articulação Negra de Pernambuco repudiamos a morte do menino Miguel, e exigimos justiça para ele e sua família!! Estaremos lançando um documento de denúncia e recolhendo assinaturas dos movimentos que desejam apoiar esse pedido de justiça para mais uma criança negra tirada do nosso convívio de forma tão drástica”.
Articulação Negra de Pernambuco
“Nossos jovens e crianças continuam sendo mortos. E junto com eles, morrem quem fica, quem cuida e quem ama. Nossos dias, bem antes da pandemia, têm sido para denunciar esses crimes. Não temos tempo de secar nossas lágrimas”.
“Essa pandemia é de quê? Dizem que é de covid-19, mas pra nós tem sido muito mais que isso: tem sido também o recrudescimento do sistema capitalista, patriarcal e racista, avanço do fascismo e desvalorização da vida. Da vida de quem já não tem tanto valor para o Estado, para a elite branca racista. Desvalorização da vida de quem move as engrenagens desse país mesmo que tentem negar isso há quinhentos anos. Tua morte não é um caso isolado, Miguel. E nem mais um dos tantos casos. Tua vida, tua história, teu amor… O amor dos teus. Tu és gente, Miguel, mesmo que eles neguem”.
Marcha Mundial das Mulheres
“Para a família, não se trata de fatalidade. Fatalidades são inevitáveis. A morte de Miguel poderia ter sido evitada se esse país fosse tão antirracista quanto mostram as postagens das redes sociais. Se a imprensa poupasse a dor da família de exposição e estampasse a imagem e o nome da indiciada, se Justiça não fosse vendida por 20 mil. Como disse a tia Cristina: “A justiça dos homens pode ser falha. Mas a de Deus, não”. Xangô proverá!”
Lenne Ferreira, jornalista e integrante do coletivo Afoitas
“Nenhum jornal havia noticiado o nome dessa mulher branca, SARI MARIANA GASPAR CORTE REAL! Esposa do prefeito da cidade de Tamandaré. Que foi presa por menos de 24h, pagou uma fiança de 20mil reais e foi liberada para responder o processo de homicídio culposo de uma criança em liberdade. Agora me pergunto, se fosse ao contrário? Se fosse o filho da mulher branca que tivesse caído do 9andar? Será que a mulher preta poderia responder em liberdade? O racismo mata de muitos jeitos todo dia! E a justiça branca todo dia passa pano na cara do Deus branco. Até quando?”.
Ingrid Farias, ativista da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – REMFA
“Desvelam-se os necessários debates de raça e classe, diariamente ignorados de forma sistemática e estrutural, uma vez que a negligência com as vidas de Miguel e de Mirtes se trata de uma das faces da racionalidade perversa de desvalorização da vida de quem é negro, pobre e trabalhador, no Brasil. Isso ao colocar uma mulher negra para trabalhar em meio a uma pandemia, e prover o sustento de sua família, sem, nem mesmo, ter com quem o filho deixar.
Esta é mais uma vez em que o racismo não apenas matou uma pessoa, mas despedaçou o futuro de uma criança, que sonhava em ser jogador de futebol, e de sua família, que o amava e acreditava nesse sonho”.
Movimento PE de Paz
“Muita gente tem defendido a tese de que, inclusive, houve homicídio DOLOSO, configurado dolo eventual. Afinal, que adulto coloca uma criança de cinco anos, que está chorando pela mãe, sozinha, num elevador, e não calcula a possibilidade de um acidente? Houve sim o cálculo de risco, porque tenho certeza de que essa adulta não faria o mesmo com os próprios filhos, ciente do perigo dessa conduta de abandono. No caso de Miguel, é mais grave. Ele é morador do Barro, bairro pobre. Qual sua familiaridade com elevadores e andares altos? Trata-se de evidente desprezo e coisificação da vida negra, herança de nossa cultura escravocrata e racista”.
Liana Cirne, professora da Faculdade de Direito da UFPE
“Assim como no Brasil colonial, uma criança preta brinca no chão da casa, enquanto a patroa continua sendo patroa. E a sua mãe continua sendo a empregada. Sari ordena que a empregada vá passear com o cachorro, pois o risco que Mirtis correu até chegar ao local de trabalho parece não ter sido suficiente. O menino, sentindo falta da mãe, chora. Se fosse seu filho, Sari certamente o distrairia com algum brinquedo de última geração. O pegaria no colo. Cantaria alguma música para acalmá-lo. Como era o filho da empregada, Sari o coloca dentro do elevador e aperta o nono andar. O cachorro teve que passear. Mirtis teve que voltar para casa e descobrir que o seu filho não estava mais vivo.
O Brasil de hoje continua o Brasil dos quadros de Debret. A branquitude continua tratando pretos e pretas como serviçais e suas crias como um mero pedaço da carne mais barata”.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República