
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro anunciava a possibilidade de enviar um projeto de Garantia da Lei e Ordem (GLO) do Campo para o Congresso Nacional, no dia 25 de novembro, três acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) passavam por violentos despejos no município de Juazeiro, no norte da Bahia. Um integrante do movimento foi baleado durante ação das polícias federal e militar com o apoio de milícias armadas da região. Ao todo, 700 famílias viram suas casas desmoronarem e foram despejadas das terras que ocupavam desde 2012.
GLO é um recurso previsto na Constituição Federal, que autoriza o uso das Forças Armadas em situações de “pertubação da ordem”, e que pode ser demandado apenas pelo presidente da República. Bolsonaro citou esse projeto destinado à zona rural logo após encaminhar para a Câmara Federal a proposta de excludente de ilicitude em operações de GLO que, em resumo, considera a maioria das ações de agentes de segurança e militares como “legítima defesa”.
No projeto, a “legítima defesa” de agentes públicos é prevista em atuações para quatro situações: prática ou iminência de prática de terrorismo; prática ou iminência de prática de conduta capaz de gerar morte ou lesão corporal; restrição da liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça e porte ou utilização ostensiva de arma de fogo. O projeto proíbe ainda a prisão em flagrante dos agentes e policiais.
Situações marcadas por vários tipos de violência, como aconteceu em Juazeiro, na Bahia, foram recorrentes em 2019, como mostra o levantamento do MST de Pernambuco (confira nas artes abaixo). No estado, oito acampamentos dos sem terra sofreram despejos e 17 são alvos de processos de reintegração de posse. Caso o excludente de ilicitude em GLOs seja aprovado pela Câmara e Senado Federal, a zona rural será a mais prejudicada.


Sendo a questão fundiária no Brasil uma disputa desigual já tão regada a sangue, por que o presidente aposta no endurecimento das medidas de reintegração de posse criando o excludente de ilicitude em GLOs e uma GLO específica do campo?
A resposta parece óbvia: aumentar a pressão sobre os movimentos sociais no meio rural, sufocando seus meios de sobrevivência e resistência. Essa e outras medidas e ações efetuadas neste primeiro ano de governo fazem parte de um desmonte das forças do campo e de um projeto de país que não enxerga os agricultores, agricultoras familiares e as populações tradicionais do campo – quilombolas e indígenas – como prioridade.
A preocupação de Bolsonaro, como ele mesmo afirmou no dia 25 de novembro, é com a “propriedade privada”. Sua postura intensifica a guerra de classes no campo, que acontece entre o latifúndio e os trabalhadores rurais. Por trás do latifúndio, está a bancada ruralista que apoiou veementemente a eleição do atual presidente. Por mais que as relações entre Bolsonaro e todas as forças neoliberais que o apoiam sejam instáveis, muito do que foi prometido pelo presidente em prol de uma elite social e econômica tem sido colocado em prática.
Reformas previdenciária e sindical
O MST não é o único alvo. Sindicatos rurais se movimentaram fortemente para que a Reforma da Previdência não alcançasse os trabalhadores do campo e conseguiram de certa forma uma vitória com a manutenção da idade mínima para aposentadoria, mas a burocracia tem se intensificado. A possibilidade de uma reforma sindical, que Bolsonaro vem tentando articular, também ameaça a força de mobilização dessas organizações.
Em maio, o Ministério Público Federal (MPF) chegou a mover uma ação para cobrar do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que cumprisse o prazo legal de 45 dias para concessão do benefício de aposentadoria. Atualmente, esse prazo tem sido estendido para seis meses e há casos em que a espera passou de 12 meses.

No campo, essa dificuldade tem sido ainda maior. Antes, com o trabalhador rural apresentando documentos que comprovassem sua filiação ao sindicato em 15 anos de atuação profissional já eram suficientes. Isso evidencia justamente o papel indispensável das entidades sindicais na garantia dos direitos da categoria dos agricultores familiares. Hoje, esses trabalhadores precisam comprovar muitas vezes a produção de seu trabalho.
Mas, como comprovar ou pôr em termos oficiais um trabalho que acontece de maneira tão artesanal como é o caso da agricultura familiar? Para as mulheres, é mais difícil. Muitas vezes as terras não estão registradas nos nomes delas, os programas de financiamento muito menos. Como comprovar o trabalho dessas mulheres e até a dupla jornada que elas enfrentam?
São questões que a burocracia não resolve, mas funciona para prejudicar a vida de muitas famílias.
E existe um agravante. Não há um critério regional para definir quem avalia os pedidos de aposentadoria no sistema digital do INSS. Funcionários de outros estados podem analisar a documentação de um agricultor familiar do interior do Nordeste, por exemplo.
De acordo com a presidenta da Federação de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape), Cícera Nunes, isso tem impactos significativos no andamento dos benefícios previdenciários rurais, já que nem todos os funcionários conhecem “a realidade do campo e dos trabalhadores de cada lugar”.
Já o projeto de reforma sindical, deve ser apresentado ao Congresso Nacional em março de 2020. Cícera enxerga a possível reforma como uma tentativa de enfraquecer as organizações do campo e, com isso, tirar a força dos agricultores e das agricultoras familiares.

A proposta de Bolsonaro pretende afastar o Estado da fiscalização dos sindicatos e afrouxar as regras para a criação das entidades. Atualmente, organizações sindicais só saem do papel com o registro dado pelo governo, o que ajuda a garantir a unicidade sindical. Hoje, é proibido o estabelecimento de mais de um sindicato representativo de uma categoria na mesma base territorial.
“Ter uma unidade sindical dá mais força às nossas lutas. A categoria já foi separada entre os trabalhadores assalariados e os agricultores e as agricultoras familiares, porque a relação de trabalho é diferente. Enquanto os assalariados têm o valor assegurado na carteira, a agricultura familiar tem a terra. O que não faz sentido é desmembrar a categoria dos agricultores familiares criando vários sindicatos e espalhando os trabalhadores. Essa é uma forma de nos enfraquecer”.
Semiárido
No que diz respeito ao acesso à água em regiões do campo, apenas uma chamada pública foi feita pelo Governo Federal às organizações da sociedade civil para a implantação de cisternas, em 2019. Segundo a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), isso evidencia a falta de atenção do Governo Federal com as políticas públicas voltadas para o semiárido.
O governo Bolsonaro tem mantido os contratos de construções de cisternas que existem antes da sua gestão e feito novos contratos para a instalação dessas tecnologias em escolas. Contudo, essas medidas não garantem o suporte à questão da produção de alimentos, o que não corresponde com o grande potencial de produção alimentar do semiárido.
A redução de investimentos no Programa Cisternas começou ainda em 2015, e aumentou no segundo ano da segunda gestão de Dilma Rousseff (PT), em 2016, quando o país enfrentava uma crise política e econômica que resultou no golpe que levou à presidência da República Michel Temer (MDB), com o apoio da bancada ruralista.
“O país não está criando condições para que se conviva com o semiárido e, não conviver com o semiárido significa uma não expansão da agroecologia, por exemplo. A região foi olhada durante alguns governos e o fato de se ter politicas voltadas adequadamente fez com que o semiárido se desenvolvesse. Fez com que tenhamos passado oito anos de estiagem sem ter uma morte humana. Perdemos alguns animais e plantas, mas ninguém morreu por causa disso. E, anteriormente, nós chegamos a ter um milhão de mortes.”, conta Naidison Baptista, da coordenação nacional da ASA.

Segundo matéria publicada no site UOL, entre 2015 e 2019, as verbas destinadas aos orçamentos do programa representaram 80% do valor investido em 2014. A ausência de recursos vai de encontro à fila de espera por cisternas, já que, segundo a ASA, 343 mil famílias do semiárido brasileiro não têm cisternas ou outra fonte de abastecimento ou reserva de água. O valor de investimento orçado para o Programa de Cisternas em 2019 foi de R$ 75 milhões, mas, ainda segundo a ASA, seriam necessários R$ 1,25 bilhão para atender à demanda.
Crescimento neopentecostal
O desmonte que visa a desmobilização da esquerda na zona rural acontece também por meio de outros fenômenos sociais como o avanço do conservadorismo na América Latina e também do fundamentalismo religioso. O padre Hermínio Canova, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPTNE2) desde 1988, aponta que um dos marcos do primeiro ano de governo Bolsonaro no campo é o crescimento do fundamentalismo neopentecostal nas comunidades rurais.
A comissão acompanha 87 comunidades camponesas em Pernambuco e 300, ao todo, nos estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Durante a realização de uma pesquisa de atualização de dados, a organização constatou que há muitos conflitos religiosos entre as famílias dessas comunidades. Houve o aumento de instalações de igrejas neopentecostais nas localidades, que são adeptas do que o padre explica ser a Teologia da Prosperidade.
“Essas igrejas têm muita influência do pentecostalismo americano e do capitalismo e enxergam a riqueza material como uma benção de Deus. Não têm se espalhado como nas periferias das grandes cidades, mas é real. O que vemos no contato com as comunidades é a disseminação do individualismo, da preocupação com a prosperidade e da meritocracia. Com isso, as pessoas deixam de entender que a luta pelos direitos é uma luta coletiva.”, conta Hermínio.
Em 2019, segundo dados da CPT divulgados no dia 10 de dezembro, o número de lideranças indígenas mortas em conflitos no campo foi o maior em onze anos. Ao todo, foram sete lideranças assassinadas, mais que o triplo do ano passado quando foram registradas duas mortes. O integrante do Conselho Missionário Indígena da Regional Nordeste (CIMI), Angelo Bueno, alerta para a ameaça às populações originárias em meio ao clima de guerra que toma conta da zona rural.

“As populações tradicionais estão ainda mais vulneráveis, porque falta também uma identificação com esses povos, entende? Nós enxergamos o posicionamento do governo Bolsonaro como uma tentativa de retomar a colonização no Brasil, um plano de voltar para o ano 1.500. Isso tudo é por terra, para explorar desenfreadamente os recursos naturais do país. A postura do presidente diante das queimadas e do crescimento do desmatamento na Amazônia são prova disso. Os povos tradicionais se tornam inimigos porque são justamente aqueles que preservam esses recursos.”, afirma Angelo.
O CIMI também vê a ausência de resolução do Governo Federal para as questões ambientais apresentadas em 2019 como uma ameaça às populações originárias.
Com um aumento de 29,5%, comparando o período entre agosto de 2018 e julho de 2019, o Brasil bateu o recorde de desmatamento na Amazônia da última década, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) analisou imagens de satélite e constatou que 70% dos alertas de queimadas emitidos pela Nasa, na Amazônia, foram feitos em áreas produtoras de gado e próximas a frigoríficos.
Outro fator importante é o sucateamento da Fundação Nacional Indígena (Funai) que segue em curso. Em outubro, o atual presidente da fundação, Marcelo Augusto Xavier da Silva, substituiu antropólogos de dois grupos responsáveis por identificar terras indígenas em Pernambuco por indicações mais afinadas com a sua gestão. Marcelo prometeu modificar os critérios para as demarcações das terras indígenas porque, em sua avaliação, houve demarcações feitas de forma “ideológica e açodada”, como afirmou em entrevista ao jornal Valor Econômico no mês de novembro.
Sobre as populações quilombolas, ainda não há dados desse ano. Mas, em 2018, o número de assassinatos de vítimas desses povos cresceu 350%, de acordo com a publicação “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”, organizada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e outras entidades. Foram 18 assassinatos em 2017, o que já demonstrava um aumento significativo, já que o número registrado em 2016 foi de quatro mortes. Entre 2008 e 2017, ocorreram 29 assassinatos na região Nordeste. Desses, 13 foram na Bahia.
A violência de gênero também se expressa de maneira específica nessas realidades. Em 66% dos casos de assassinatos de mulheres quilombolas, foi constatado o uso de arma branca e métodos de tortura.
Mesmo diante desse cenário de intensa e constante ameaça às populações rurais, o missionário do CIMI Angelo Bueno carrega resistência em sua fala: “Os povos tradicionais são sementes da esperança e não se intimidaram com os ataques”.
Resistência e articulação
Provavelmente, uma das frases mais ditas em 2019 foi “ninguém solta a mão de ninguém”. O que muita gente não havia percebido é que esse já era um lema dos movimentos rurais há muito tempo. Como muitos movimentos urbanos têm percebido, ocampo é a vanguarda da resistência e é para lá que se deve olhar quando tudo parece perdido.
Após doze anos no poder, uma das maiores críticas no campo progressista feita ao Partido dos Trabalhadores (PT) é o distanciamento da base. É recorrente ver essa crítica sendo estendida aos movimentos de esquerda que compõe esse mesmo campo político, mas essa realidade não se manifesta da mesma forma no campo.
Os movimentos, sindicatos e organizações continuam seus processos de formação de base e estão em constante tentativa de diálogo com a população. Não há um só dia de descanso entre despejos, reformas e assassinatos políticos dos seus. A conjuntura política atual que foi sendo desenhada bem antes do Golpe de 2016 evidenciou a necessidade das pautas urbanas e rurais andarem lado a lado.
“Tem que estar junto do povo e o povo tem que criar alternativas para conseguir dar saltos. No nosso caso, a gente não quer que exista acampamento, quer que exista acesso à terra. Acontece que nesse período os acampamentos estão aumentando e, por aí, eu acho que a gente pode ir fazendo um diálogo com o povo nos mais variados modos.”, diz Paulo Mansan, da coordenação estadual do MST.
Ele aponta os espaços das feiras agroecológicas organizadas por várias entidades rurais, o Armazém do Campo e o Movimenta Cineclubes, iniciativa de audiovisual presente em várias comunidades do Recife, como algumas maneiras de estabelecer diálogo com a população e chama atenção para a criação da Frente Popular e Parlamentar em Defesa da Soberania Nacional.

Faz parte da resistência intervir no andamento da política institucional e também cobrar dos políticos eleitos pela esquerda. A presidenta da Fetape, Cícera Nunes, relembra que nas eleições de 2018 os movimentos do campo conseguiram chegar a um acordo e eleger duas candidaturas no estado, a de Doriel Barros (PT) para a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) e a de Carlos Veras (PT) para a Câmara Federal.
Contudo, as articulações não se restringem apenas à legenda petista e têm sido feitas com PSOL, PSB, PDT e PCdoB. As eleições de 2020 se anunciam também como uma oportunidade de eleger representantes de origem popular para as câmaras municipais.
Alexandre Pires, da ASA, afirma que a Frente Parlamentar em Defesa da Convivência com o Semiárido e o Consórcio Nordeste, que reúne os governadores da região, são espaços onde as organizações estão demarcando presença e fazendo reivindicações.
“O que nós temos defendido na ASA e na Articulação Nacional de Agroecologia é que nós precisamos valorizar as lideranças locais, os trabalhadores e as trabalhadoras, para ocuparem as cadeiras nas câmaras de vereadores e nas prefeituras. Precisamos que o nosso povo, os trabalhadores e trabalhadoras votem em trabalhadores e trabalhadoras comprometidas e comprometidos com as necessidades e os sonhos e com os desejos de uma sociedade mais justa. Não dá mais para trabalhador continuar votando em patrão, em pessoas que são bonitinhas porque são de uma família de políticos. Precisamos renovar e renovar significa votar nos trabalhadores e trabalhadoras.”
Não à toa, a maioria dos movimentos e entidades do campo hastearam conjuntamente a bandeira em defesa da liberdade do ex-presidente Lula (PT). Para além de englobar as pautas da esquerda, sejam elas de classe ou identitárias, do campo ou da cidade, o petista significa para muitos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade uma possibilidade de retomar a força de articulação e diálogo para a restauração das bases sociais da democracia. Um desafio que está posto para 2020.