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Crédito: Ascom UFPE
Professores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) iniciaram uma campanha interna para mudar o nome do auditório do Centro de Educação, uma homenagem da instituição a Carlos Frederico Maciel, um professor e pesquisador da própria universidade, primo do ex-vice-presidente da República Marco Maciel e irmão do ex-reitor da universidade nos tempos da ditadura militar, Paulo Frederico Maciel. Os argumentos para a retirada do nome, no entanto, não são seus laços familiares, mas sim a sua atuação nos meses que se seguiram ao golpe militar de 1964.
Por décadas, o Centro de Educação conviveu sem problemas com a placa sinalizando o nome do auditório – os docentes mais jovens sequer sabiam de quem se tratava. As coisas mudaram quando o professor e historiador Evson Malaquias Santos, que pesquisa a repressão da ditadura militar na UFPE, encontrou no acervo do Arquivo Nacional documentos em que deixam claro o empenho de Maciel para desmantelar o legado de Paulo Freire e do Movimento de Cultura Popular.
Após fazer a descoberta, o professor Evson levou a proposta de retirada de mudança de nome do auditório para o conselho do departamento onde está lotado, o departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional. A ideia foi bem recebida e, agora, está em discussão nos outros três departamentos que compõem o Centro de Educação.
Segundo Evson, a mudança encontra resistência, curiosamente, entre vários dos professores que são considerados “discípulos” de Paulo Freire, o educador cuja obra é a principal influência para a área de Pedagogia da UFPE e cujas iniciativas foram alvo da atuação política de Carlos Maciel após o golpe. “Nosso compromisso tem que ser com as vítimas da ditadura, não com seus algozes. Não tem sentido homenagear alguém que foi interventor no MCP e ficou ao lado dos crimes e das perseguições”, explicou o pesquisador.
Em sua opinião, “não haverá futuro enquanto formos governados pelo passado que se oculta debaixo do tapete”. Por isso, ele anuncia que um grupo de docentes do qual ele faz parte, pretende, assim que as atividades presenciais forem retomadas, iniciar uma campanha para que a UFPE retire os títulos de doutor honoris causa concedida a políticos da ditadura diretamente ligados à perseguição contra estudantes e professores, como os ministros da Educação Jarbas Passarinho e Raymundo Moniz de Aragão. Em 1979, o próprio Carlos Maciel recebeu uma dessas honrarias, a medalha do mérito universitário.
A diretora do Centro de Educação, Ana Lúcia Félix dos Santos, foi lacônica ao comentar sobre a possibilidade de mudança do nome do auditório: “Esse tema ainda está em debate no nosso Centro”. Suas poucas palavras não resumem o mal-estar instalado entre os docentes dos quatro departamentos que funcionam no local que dirige.
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-doutor pela Universidade de Coimbra, Gildemarks Costa e Silva, conquistou notoriedade no meio intelectual por seus trabalhos em que analisa o pensamento de Paulo Freire e o compara com os de outros pensadores do século XX. Ele também foi evasivo, dizendo que “pelo pouco que acompanhei, o Professor Evson Santos propôs a alteração do nome do auditório e a proposta foi acolhida para discussão, a comunidade do Centro de Educação possui uma dinâmica de tomar decisões de forma democrática, envolvendo alunos, professores e funcionários, mas ainda não iniciamos a discussão mais ampliada”.
Apesar de não se posicionar explicitamente, entre as mensagens trocadas com este repórter, Gildemarks enviou um print de um artigo publicado no Jornal do Commercio pelo professor aposentado de Fundamentos da Educação e ex-vice-diretor do Centro, Flávio Brayner. No texto, Brayner assume posição contrária à retirada do nome de Carlos Maciel: “o passado não pertence apenas às suas vítimas que, hoje, pedem ‘reparação’: ele pertence também (nós gostemos ou não!) aos que nos dominaram, e sem conhecer nem lembrar dos dominadores apagaremos parte importante da memória da opressão. E sem compreender a opressão, nem lembrar o nome dos que nos oprimiram (aqueles que sempre tentam se esconder de seu passado, quando os ventos mudam) não chegaremos a nenhuma ‘libertação’.
O artigo de Brayner, aliás, foi intensamente compartilhado nos grupos de whatsapp dos professores do Centro de Educação. A Marco Zero Conteúdo também tentou colher a opinião de Maria Eliete Santiago, integrante da Rede Freireana de Pesquisadores e coordenadora da Cátedra Paulo Freire da UFPE, uma das mais destacadas herdeiras do educador pernambucano. Ela visualizou as mensagens enviadas, mas não respondeu.
A campanha pela mudança do nome do auditório parece ter mais simpatizantes fora do curso de Pedagogia e das pós-graduações que funcionam no Centro. O professor de História e Ciências Sociais Michel Zaidan Filho, por exemplo, acredita que “a UFPE modernizou a cabeça, mas os pés ficaram oligárquicos. Isso refletiu na composição de seu corpo docente. Existe a esquerda, mas o poder continua na direita”. Segundo ele, isso acontece porque a universidade sempre foi permeável à influência dos grupos oligárquicos de Pernambuco, com dinastias familiares controlando os departamentos e se reproduzindo no poder universitário”.
Segundo Zaidan, assim é possível entender porque “um centro paulofreireano contemporiza com símbolos de um passado maldito. E todos vão vivendo em paz, na harmonia. Ninguém quer tocar nas velhas feridas nunca cicatrizadas, não querem passar a limpo a história nem fazer justiça aos mortos e feridos”.
A presidente da Comissão de Direitos Humanos da UFPE, Maria José de Matos Luna, foi direto ao ponto. Em papel timbrado da comissão, que desde 1998 é uma instância oficial da universidade, ela cravou que a manutenção do atual nome do auditório “fere tanto os princípios estatutários da UFPE quanto aos nossos que tem como eixo central, os direitos humanos. Consideramos inaceitável a manutenção de uma homenagem a uma pessoa que teve presença marcante no golpe civil-militar de 1964. Foi INTERVENTOR (sic) do Movimento de Cultura Popular, assumindo sua presidência, afastando todos os seus colaboradores”.
O Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Federais de Pernambuco também se posicionaram pela mudança de nome.
Pouco depois de ser empossado pelos militares no lugar vago pela prisão de Miguel Arraes, o vice-governador Paulo Guerra anunciou Carlos Maciel para atuar interventor no Movimento de Cultura Popular, um projeto de alfabetização de adultos e de educação de básica criado em maio de 1960 em Recife por estudantes universitários, artistas e intelectuais, em ação conjunta com a prefeitura, quando o prefeito era Miguel Arraes.
Os resultados do MCP contribuíram para que o método Paulo Freire de alfabetização ganhasse prestígio internacional, o que explica a fúria com que os militares o desmantelaram, contando para isso com os serviços de Maciel. Ele também foi escolhido pelo governo militar para “limpar” um dos principais legados de Paulo Freire na UFPE, o Serviço de Extensão e Cultura, embrião da atual pró-reitoria de Extensão. Mais adiante, Paulo Guerra o nomeou para mais uma “faxina” anticomunista no Conselho Estadual de Educação.
Apesar das semelhanças na atuação política, Carlos Maciel não pode ser comparado, no Brasil do século XXI, a bolsonaristas como o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ou o secretário nacional de Cultura, Mário Frias, notórios pela irrelevância intelectual. Ele era um pesquisador respeitado na área de educação pública. Com uma breve pesquisa no Google foi possível localizar pesquisas de Carlos Maciel sobre a interiorização do ensino superior ou sobre o perfil dos estudantes secundaristas do Recife.
Os arquivos da Fundação Getúlio Vargas mantêm, por exemplo, uma carta de Anízio Teixeira pedindo a Maciel para receber e ajudar um pesquisador alemão que chegaria ao Recife em 1962 com a intenção de estudar o ensino secundário brasileiro. Teixeira, educador perseguidos pelas ditaduras de Vargas e dos militares, criou em 1935 a Universidade do Distrito Federal, uma das instituições que formaria a atual UFRJ, e também foi reitor da Universidade de Brasília (UnB). Em 1971, nove anos após a escrever a carta, Teixeira foi encontrado morto no poço do elevador do prédio onde morava. A polícia decidiu imediatamente por suicídio, mas até hoje sua família tenta provar que ele foi assassinado pela repressão.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.