Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Mulheres e crianças Warao têm direitos violados por conselheiros tutelares e policiais

Kleber Nunes / 25/03/2021

Maria Adreina Miguelez de la Rosa, Daiselis Baez Zapata e Bionalda Zapata Roja contam que foram ameaçadas pelos conselheiros tutelares e conduzidas pela Polícia Militar à Delegacia de Vitória de Santo Antão. Crédito: Divulgação

Se o poder público é ausente na garantia dos direitos dos indígenas Warao, povo originário da Venezuela, como a Marco Zero Conteúdo vem mostrando nos últimos dois anos, o mesmo não se pode dizer quando a política aplicada é a da repressão. Enquanto faltam ações de assistência social, acesso à saúde e à educação, sobram episódios de violência praticados por membros de forças policiais, sobretudo, contra mulheres e crianças.

Entidades da sociedade civil que atuam no vácuo do estado atendendo esses migrantes vêm colecionando queixas de indígenas Warao vítimas de violência por parte de agentes públicos de segurança. Desde o segundo semestre do ano passado, já foram registrados casos em cidades como Limoeiro, Bezerros, Gravatá e, mais recentemente, em Vitória de Santo Antão. Os relatos vão desde constrangimento, acusação de sequestro de crianças e ameaça de deportação, amedrontando os poucos que ainda moram no estado.

Bionalda Zapata Roja, 30 anos, Maria Adreina Miguelez de la Rosa e Daiselis Baez Zapata, ambas com 22 anos, e duas crianças de 4 e 7 meses saíram de casa, em Muribeca dos Guararapes, periferia da cidade de Jaboatão dos Guararapes, no dia 12 de fevereiro. O destino foi o município de Vitória de Santo Antão, onde desembarcaram por volta das 7h para fazer o que chamam de “recoleta”.

Com o avanço do agronegócio e do setor petrolífero na Venezuela, especialmente na década de 1960, os Warao foram sendo “empurrados” de suas terras no interior do país para os centros urbanos. Sem poder tirar o sustento da agricultura e da pesca, como seus antepassados, os indígenas precisaram se submeter a mendicância para sobreviver. Essa estratégia de coletar doações em dinheiro nos semáforos é a saída encontrada pelos migrantes também aqui para pagar as contas e comprar suprimentos como fraldas e leite.

“Um senhor que se apresentou como conselheiro tutelar estava nos perseguindo. Dissemos a ele que já estávamos indo para casa, mas ele não queria deixar e foi mandando a gente acompanhá-lo até o escritório dele e dizendo que se não fôssemos seria pior, pois tiraria nossos filhos e nós seríamos deportadas para a Venezuela”, relembra Daiselis.

Depois da tentativa de entrar no carro para seguir de volta a Jaboatão, uma viatura da Polícia Militar parou em frente às mulheres. Elas contam que uma agente feminina “saiu rapidamente da viatura com uma arma na mão”. “Foi como se fôssemos assassinas. Mandaram a gente seguir caminhando até o conselho tutelar. Disseram que seria uma conversa rápida de 10 minutos, mas fomos levadas para a delegacia aos gritos de que seríamos presas e que meu filho estava sofrendo comigo e que se tivesse com outra mãe seria muito melhor”, conta Daiselis.

Sessão de violências

Na Delegacia de Polícia da 61ª Circunscrição, as mulheres foram submetidas a uma sucessão de violações de direitos. Por quase seis horas, foram interrogadas por uma agente da polícia civil sem a presença de um advogado nem de intérprete de espanhol, enquanto os filhos foram deixados com os dois conselheiros tutelares que acompanharam a abordagem. As vítimas foram tratadas como suspeitas de terem sequestrado as crianças, por não estarem com documentos dos meninos.

“Não nos deram água nem comida, também não podemos ir ao banheiro. Mandaram assinar um papel e não nos deram uma cópia, deram um número de telefone falso que nós ligamos, mas ninguém atende. Disseram que não queriam mais nos encontrar pela rua, depois nos liberaram, pagaram um carro para a gente voltar, porém exigiram que voltássemos na segunda-feira seguinte com os documentos dos nossos filhos”, afirmaram Daiselis e Maria Andreina.

De acordo com nota da Polícia Militar de Pernambuco, foi lavrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência contra as indígenas venezuelanas. Na cópia do documento, ao qual a reportagem teve acesso, a acusação é de que as mulheres estavam praticando mendicância e nesse ato colocando crianças em risco.

“Pedimos a elas que não continuassem pedindo aqui, mas não quiseram sair, aí foi chamada a força policial. Foi uma condução tranquila, não houve constrangimento e elas não foram para a delegacia contra a vontade delas. Chamamos a polícia porque elas estavam bravas e tememos por nossa integridade física”, alegou o conselheiro tutelar, Cláudio Júnior.

Desrespeito à convenção internacional

A agente do Serviço Pastoral do Migrante do Nordeste (SPM NE) Raíra Pereira tem acompanhado de perto esses casos de violência contra o povo Warao. Para ela, o que vem acontecendo com uma certa frequência “são atitudes racistas”.

“Está claro o racismo contra os indígenas venezuelanos. Eles não podem aparecer em um sinal de trânsito que a polícia vai lá, aborda e tira. É preciso compreender que essas mulheres não estão lá porque querem, elas precisam pagar aluguel, contas de luz e água, além de comprar alimento e outras necessidades para os filhos”, diz.

Raíra também questiona o despreparo dos agentes públicos ao lidar com os Warao, e se surpreende com as atitudes dos conselheiros tutelares em episódios como o de Vitória de Santo Antão. “O conselheiro tutelar deveria estar preocupado com o porquê as crianças não estão na escola. Ao invés de prender mãe, questionar as prefeituras sobre a falta de políticas públicas para proteger essas crianças”, avalia.

Em 2017, o Brasil instituiu a Lei de Migração, que enterrava de vez o Estatuto do Estrangeiro, herança da ditadura militar, que era baseada na perspectiva da soberania nacional em detrimento à dignidade da pessoa humana. “A legislação é muito clara quando proíbe a criminalização da migração, ou seja, deve-se evitar ao máximo esse processo de tratar o migrante sempre como uma ameaça, de ser levado para uma delegacia de polícia”, explica o defensor regional de direitos humanos da Defensoria Pública da União (DPU), André Carneiro Leão.

No caso dos Warao existe a peculiaridade de serem de uma etnia indígena. Essa condição, segundo o defensor, obriga a aplicação também da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Basicamente, o tratado do qual o Brasil é signatário determina que é preciso respeitar a cultura, a tradição e as perspectivas peculiares dos povos originários, estabelecendo o diálogo quando eventualmente houver prática de uma cultura que seja distinta da cultura local.

“Historicamente somos um país de imigrantes e emigrantes, apesar disso o Brasil não tem a cultura do acolhimento humanitário e é, sim, xenofóbico. No caso dos Waraos, para além de tudo isso o poder público não fornece condições de se manterem ocupados, as mães não têm com quem deixar as crianças, ou seja, sequer essa questão social foi percebida pelo estado”, analisa Carneiro Leão.

Também notificada sobre os casos de violação de direitos por parte de policiais, a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pernambuco (OAB-PE) está preparando uma nota técnica para entregar aos governos municipais e ao estadual. O texto pretende apresentar de maneira pedagógica como respeitar as leis em relação aos migrantes.

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”.

Seja mais que um leitor da Marco Zero

A Marco Zero acredita que compartilhar informações de qualidade tem o poder de transformar a vida das pessoas. Por isso, produzimos um conteúdo jornalístico de interesse público e comprometido com a defesa dos direitos humanos. Tudo feito de forma independente.

E para manter a nossa independência editorial, não recebemos dinheiro de governos, empresas públicas ou privadas. Por isso, dependemos de você, leitor e leitora, para continuar o nosso trabalho e torná-lo sustentável.

Ao contribuir com a Marco Zero, além de nos ajudar a produzir mais reportagens de qualidade, você estará possibilitando que outras pessoas tenham acesso gratuito ao nosso conteúdo.

Em uma época de tanta desinformação e ataques aos direitos humanos, nunca foi tão importante apoiar o jornalismo independente.

É hora de assinar a Marco Zero

AUTOR
Foto Kleber Nunes
Kleber Nunes

Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com