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Na avenida Rosa e Silva, busto em prédio do Exército homenageia ditador e violador dos direitos humanos

Maria Carolina Santos / 12/09/2023
Busto do marechal Castello Branco, em material cinza metálico, sobre um pedestal preto com placa metálica onde há o brasão do Exército brasileiro.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Quem passa hoje pela avenida Rosa e Silva, uma das principais corredores da zona norte do Recife, vê um busto do marechal Castello Branco. De faixa presidencial, o busto do ex-ditador, um dos articuladores do golpe militar de 1964, está exposto no jardim de um prédio do Exército, construído com dinheiro público, quase em frente ao Hospital Ulysses Pernambucano, na Tamarineira. Depois de oito anos em construção, o edifício Marechal Castello Branco deve ser inaugurado ainda neste mês. É um prédio residencial para oficiais.

O busto e o nome do prédio causam indignação pelo desprezo às instituições democráticas e à memória das vítimas da ditadura: em pleno 2023, o Exército Brasileiro está fazendo uma dupla homenagem ao ditador e um dos articuladores do golpe militar de 1964.

Castello Branco figura como o primeiro dos 377 nomes que estão no relatório final de violadores dos direitos humanos da Comissão da Verdade. Desde 2016, quando começou a ser construído, o prédio tem esse nome – está nos documentos oficiais e estava nas placas de construção, mas o letreiro ainda não foi colocado. O busto começou a ser visto nas últimas semanas, quando uma lona que cobria a grade foi retirada.

Para o advogado e cientista político Manoel Moraes, coordenador da Cátedra Unesco/Unicap de Direitos Humanos Dom Helder, a dupla homenagem é uma afronta. “Colocar o nome de um ditador em um prédio é um desconhecimento da história. O país parou durante a ditadura militar, a educação e a saúde regrediram, cartilhas de Paulo Freire foram queimadas. Ditadura é uma coisa para se ter nojo”, diz Moraes, que foi membro da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara.

“Isso prova que o Exército e os militares não reconhecem e não acreditam nos pilares básicos da democracia. É um ataque à dignidade dos anistiados políticos, aos que até hoje não têm respostas sobre o desaparecimento de um irmão, de uma filha, do pai. Pessoas marcadas por um luto que não termina. O Brasil foi considerado culpado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos por não investigar e não apurar graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. É uma dor perceber que o Brasil não tenha transitado para uma democracia plena”, lamentou.

O prédio está na mira dos defensores dos direitos humanos há, pelo menos, três anos. Em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) deu entrada em uma Ação Civil Pública para que o Exército mudasse o nome do prédio. A ação foi julgada improcedente e não cabe mais recurso. O busto ainda não existia. Na quarta-feira passada, o MPF abriu um procedimento para apurar a colocação do busto.

Na primeira ação, já existia a lei estadual 16.629, de autoria das codeputadas Juntas e sancionada pelo então governador Paulo Câmara (PSB), que proibia a administração pública estadual de fazer qualquer tipo de homenagem ou exaltação ao golpe militar de 1964, ao período ditatorial e também a pessoas que constem no relatório final da CNV como responsável por violações de direitos humanos.

O então juiz federal Francisco Alves dos Santos Júnior, da da 2ª Vara Federal/PE, julgou a ação improcedente. Ele considerou que leis municipais e estaduais, relativas à denominação de imóveis públicos, não valem para a União. E que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade não têm peso de lei, questionando a inclusão do nome do ditador na lista. “A recomendação (…) não goza da unanimidade do que pensam todos os historiadores, relativamente ao papel do Marechal Humberto Alencar Castello Branco no regime militar que se implantou no Brasil em março de 1964”.

Sem jamais citar a palavra “ditadura”, o juiz, além de por em dúvida a Comissão da Verdade, também questionou as intenções das leis estaduais de Pernambuco e do Piauí, que proíbem homenagens a ditadura: “Note-se que esses Estados, quando do advento de tais Leis, eram e são administrados por Partidos Políticos cuja orientação era contrária ao referido regime militar”, escreveu na sentença. Nesse trecho e nos outros da sentença do juiz transcritas aqui, foi mantida a grafia original, com exagerado uso de letras maiúsculas.

“Aliás, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, cearense de Fortaleza, sempre foi considerado, por vários historiadores, como um militar moderado que até pensava em realizar eleições antes do final do seu mandato como primeiro Presidente da República do regime militar, instalado em 1964, e aventa-se até que, por isso, o acidente de avião no qual faleceu pode não ter sido um mero acidente”, diz outro trecho.

Também cearense, Francisco Alves dos Santos Júnior se tornou no ano passado desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5, pelo critério de antiguidade, após 34 anos como juiz federal.

Após a sentença, o Ministério Público Federal interpôs apelação e o processo foi submetido à análise do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que, por unanimidade, manteve a decisãodojuiz.

Construção do edifício residencial do Exército levou sete anos depois para ser concluída. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Moraes lembra que não houve nada de moderado no golpe militar de 1964. “No dia primeiro de abril de 1964 dois estudantes, Ivan da Rocha Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros, foram assassinados com tiros em um protesto na avenida Dantas Barreto contra a prisão do então governador Miguel Arraes . A ditadura já começou sangrenta em Pernambuco”, diz.

O cientista político enfatiza que essa disputa pela memória da ditadura é exclusiva do Brasil. “Não há homenagens no Chile, no Uruguai, na Argentina. Se o exército da Argentina homenagear um ditador, a população faz uma revolta. Infelizmente é uma característica do Brasil”, critica. “Mas, enquanto no Recife há homenagens a Castello Branco, em Fortaleza, o movimento contrário está ocorrendo”, diz.

Ele se refere ao anúncio do governador Elmano de Freitas (PT) de retirar o mausoléu de Castello Branco do Palácio da Abolição, sede do governo do Ceará. No lugar, a ideia é um monumento em homenagem a abolicionistas cearenses, como Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, jangadeiro que recusava fazer o transporte de pessoas escravizadas.

Edifício custou mais de R$ 11 milhões aos cofres públicos

A construção do Edifício Marechal Castello Branco foi iniciada em 2016. De acordo com o Exército, o contrato inicial foi executado, parcialmente, até meados de 2019, a um custo de R$ 3.855.280,87. Em seguida, a obra foi paralisada, pois houve rescisão contratual formalizada em meados de 2020.

Houve uma nova licitação e a construção foi retomada em janeiro de 2021, a um custo de R$ 7.704.572,22. Ou seja, o edifício deve custar mais de R$ 11,559 milhões aos cofres públicos.

No Recife, lei proíbe homenagens a ditadores

Se o Exército foi além do nome e colocou também um busto de Castello Branco, o MPF também conta com uma nova lei para evitar que a ditadura militar seja homenageada no Recife. É a lei 18.963, de 22 de julho de 2022, sancionada pelo prefeito João Campos (PSB) e de autoria da então vereadora do Recife e hoje deputada estadual Dani Portela (PSOL), que também é presidenta da comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular.

“A lei proíbe as homenagens a ditadores no âmbito do município do Recife e é válida desde sua publicação. O executivo regulamenta a lei no que ele achar necessário, não o fez até agora, mas isso não impede a eficácia da norma”, disse a deputada.

“Óbvio, o judiciário pode fazer sua interpretação da lei como bem entender, mas nós precisamos cobrar que ele não desrespeite a legitimidade do processo legislativo, nem a luta pela memória e verdade. É uma grande luta que, infelizmente, vai além da aprovação de uma lei ordinária municipal, sabemos. Passa pela conscientização política da sociedade e pela disputa da nossa memória e verdade. Mas devemos defender que o que foi aprovado seja executado”, afirmou Portela.

No despacho para apurar a retirada do busto, a procuradora Mona Lisa Duarte Aziz, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, escreveu que a estátua “atenta contra a preservação da memória histórica do país, vai em sentido contrário a recomendação da Comissão Nacional da Verdade e a precedentes da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, para além de violar normas expressas da legislação estadual (lei estadual n.º16.629, de 20 de setembro, de 2019) e municipal (lei municipal n.º 18.963, de 22 de julho de 2022)”.

A Marco Zero questionou o Exército sobre o motivo da escolha do nome. A resposta foi a mesma que foi encaminhada à Justiça Federal no processo de 2020: o Exército alega que seus imóveis têm nomes, datas ou fatos de personalidades históricas. E que a escolha de Castello Branco foi pela sua “carreira militar exitosa”, citando a participação dele na Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a 2ª Guerra Mundial.

Essa justificativa, porém, parece cair por terra quando o busto colocado na frente do prédio está não com o uniforme dos pracinhas, mas sim com a faixa presidencial do Brasil.

Resposta do Exército à MZ sobre a escolha do homenageado:

“i) a União é possuidora de imóveis, Próprios Nacionais Residenciais (PNR), com a finalidade de moradia para os militares na ativa;

ii) todos os imóveis jurisdicionados ao Exército possuem denominações de data, fatos ou personalidades históricas;

iii) o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, militar do Exército Brasileiro, foi um dos principais responsáveis pela campanha do Brasil, por meio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a 2ª Guerra Mundial, tendo a escolha da denominação considerado a sua carreira militar exitosa;

iv) como órgão da administração pública, está adstrito “a cumprir à lei (em sentido formal), o que não se subsome ao caso em tela”;

v) não houve procedimento formal prévio para a aludida escolha, tendo a administração militar se valido da discricionariedade que lhe cabe para optar pelo nome escolhido.”

Na resposta, o Exército também cita a decisão do então juiz federal Francisco Alves dos Santos Júnior para justificar o descumprimento à lei municipal do Recife:

“Por conseguinte e analogicamente, o Exército Brasileiro tem o mesmo entendimento sobre a aplicação de Leis Municipais. Cabe ressaltar que a Lei nº 18.963/22, do município do Recife, teve sua vigência iniciada em 22 de julho de 2022, ou seja, entrou em vigor em momento posterior ao da escolha do nome do imóvel”.

Para a deputada Dani Portela há uma diferença clara entre as duas leis, a estadual, na qual o MPF baseou a primeira ação civil pública, e a municipal. “A lei aprovada pelas Juntas tem seu âmbito de atuação mais restrito mesmo. Ela proíbe que a administração pública estadual realize homenagens a violadores dos direitos humanos. A nossa lei proíbe homenagens no âmbito do município do Recife, como um todo”, afirma.

Audiência pediu intercessão de ministro de Lula

Em junho passado, ocorreu uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco, proposta por Dani Portela, sobre mudanças de nomes em imóveis públicos que homenageiam violadores dos direitos humanos. Na ocasião, foi solicitado que o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio Almeida, interceda pela alteração do nome do prédio Castello Branco.

A audiência também também solicitou que Governo de Pernambuco substitua o nome do Instituto Criminalístico Professor Armando Samico. Secretário de segurança de Pernambuco na ditadura militar, Samico consta no relatório da Comissão da Verdade de Pernambuco por participação na tortura e morte do estudante de agronomia Odijas Carvalho de Souza, entre outros crimes.

Na audiência, a Secretaria de Educação e Esportes se comprometeu a realizar escutas para ver qual a melhor forma de realizar a substituição das homenagens a torturadores em nomes de escolas públicas estaduais. Também foi solicitado ao ministro Silvio Almeida a criação de um órgão do Governo Federal que acompanhe as recomendações da Comissão da Verdade e a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Criada como política de estado em 1995, a comissão foi extinta por Bolsonaro e ainda não foi recriada pelo governo Lula, apesar de inúmeros pedidos.

Atualização 11/10/2023

A Prefeitura do Recife respondeu a um pedido da Lei de Acesso à Informação da Marco Zero sobre a fiscalização da lei afirmando que “a definição do(s) órgão(s) responsável(eis) pela fiscalização do cumprimento das disposições normativas, aplicável a próprios e bens públicos da administração direta e indireta do município, ocorrerá a partir da regulamentação da aludida Lei, mediante decreto”. 

A prefeitura também afirmou que tem um entendimento diferente do da deputada Dani Portela em relação à abrangência da lei: “O comando proibitivo do rol definido no art. 3° da Lei Municipal nº 18.963/2022, revela-se adstrito tão somente aos próprios e bens públicos municipais e não aos bens públicos de outros entes federativos.”

A prefeitura citou na resposta um trecho da decisão judicial da 2º Vara Federal de Pernambuco sobre o nome do prédio, destacando que “leis municipais e estaduais, relativas à denominação de próprios públicos, não obrigam a União na fixação de nomes para os seus próprios públicos”.

A prefeitura ainda informou que a lei não institui penalidades administrativas. Confira aqui a resposta completa.

O que diz a lei municipal 18.963

Art. 1º Fica proibido homenagear violadores dos Direitos Humanos no âmbito do
Município do Recife.

Art. 2º Para efeitos desta Lei, consideram-se violadores de Direitos Humanos:
I – agentes sociais individuais ou coletivos que possuem ligação direta com:
a) a ordem escravista;
b) as práticas de tortura;
c) a ditadura militar, cujos nomes estejam presentes no relatório final da Comissão
Nacional da Verdade como agentes estatais violadores de Direitos Humanos
no referido
período ditatorial.
II – agentes do Estado condenados por violações aos Direitos Humanos.

Art. 3º Inclui-se na proibição tratada nesta Lei a denominação a:
I – logradouros;
II – prédios;
III – monumentos;
IV – bustos;
V – estátuas; e
VI – totens públicos.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org