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“Não consigo nem imaginar até onde vamos chegar”, desabafa cientista

Maria Carolina Santos / 01/04/2021

Desde o começo da pandemia da covid-19 no Brasil, o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19, se dedica voluntariamente a esmiuçar a evolução do vírus pelo Brasil. No começo do mês de março, fez uma projeção de que o Brasil chegaria ao número de quatro mil mortes diárias no final de abril. A nefasta marca parece estar bem mais próxima: há quatro dias seguidos o Brasil registra mais de 3,6 mil mortes diárias.

Em entrevista à Marco Zero Conteúdo, o pesquisador gaúcho afirma que a quantidade de dias que dura uma quarentena é importante, mas que é preciso ficar atento principalmente à mobilidade dos moradores. E quanto mais alto o número de infecções, mais dias de quarentena e mais restrições à mobilidade devem ser aplicadas. “Se Pernambuco tivesse feito essa mesma quarentena lá no final do ano, provavelmente teria freado no começo e não teria subido nesse nível”, afirma.

Ele vê que Pernambuco está seguindo o caminho do Rio Grande do Sul: um platô elevadíssimo de casos. “Quando a transmissão está desacelerando e há uma flexibilização, há o aumento de pessoas em contato umas com as outras. Quando se faz isso, na melhor das hipóteses, o foguete vai ficar parado lá no alto. Isso tem a chance de reacender e começar a subir de novo. Esse platô não resolve nada”.

Essa é a íntegra da entrevista concedida pelo pesquisador:

Pernambuco fechou por 14 dias. E hoje já está reabrindo, mesmo as UTIs com mais de 95% de ocupação e mais de 2.000 novas infecções por dia. Quais os perigos de sair de uma quarentena sem que haja uma queda sustentada?

Quando tem uma subida exponencial de casos, quando a taxa de crescimento está muito alta, eu faço a analogia de um foguete subindo para a estratosfera. Quanto mais alto, mais casos. O combustível da doença são os doentes. Quantos mais doentes, mais doentes podem gerar, pela transmissão. Quando a gente faz uma quarentena, a primeira coisa que acontece, ao tirar as pessoas do contato umas com as outras, começa, depois de uns 14 dias, esse foguete começa a desacelerar a subida. Em Pernambuco é isso que está começando a acontecer agora. O foguete está começando a frear. Só que ele continua lá em cima. E o que acontece? Vou dar um número redondo para ficar mais fácil. Se está com 10 mil casos por dia e taxa de transmissão em 2, de uma pandemia descontrolada, significa que 10 mil vão gerar 20 mil casos, que vão gerar 40 mil…. Quando se faz o esforço da quarentena e baixa para 1 a taxa de transmissão, os 10 mil ainda vão gerar 10 mil. É muita gente, muita internação. Quando está desacelerando e há uma flexibilização, há o aumento da mobilidade, de pessoas em contato umas com as outras. Quando se faz isso, na melhor das hipóteses, o foguete vai ficar parado lá no alto. Um platô bem alto, com muitas pessoas morrendo. Isso tem a chance de reacender e começar a subir de novo. Esse platô não resolve nada.

O que aconteceu no Rio Grande do Sul, que fez uma movimentação parecida com o que Pernambuco está fazendo?

Aqui fechou até mais dias que em Pernambuco: o estado inteiro do dia 27 de fevereiro até o dia 21 de março. No dia 22 de março começou a abrir aos poucos e a mobilidade aumentou. Nesse período de quarentena aconteceu a desaceleração, mas com o foguete lá em cima. As hospitalizações e as UTIs continuaram em alta. As UTIs estão com fila de espera, que está começando, bem devagarzinho, a baixar. O que gente está notando agora é que está começando a aumentar o número de pessoas que estão reportando sintomas. O dado que analisamos é uma pesquisa da Universidade de Maryland em parceria com o Facebook, que sorteia os usuários diariamente para responder a um questionário. Uma dessas perguntas é se a pessoa está sentindo sintomas da covid, quais sintomas e a partir de que data. Isso resulta em uma amostra grande de pessoas do Brasil, diariamente. Como é algo mais rápido, não tem o atraso dos dados oficiais. No Rio Grande do Sul, o estouro nos hospitais aconteceu no dia 14 de fevereiro, mas nesses dados do Facebook o estouro já havia começado no dia 30 de janeiro. Quando começou a restrição, teve uma queda também nessa pesquisa dos sintomas. Aí, agora, teve o aumento da flexibilização antes de ter uma queda sustentada pra valer, já estabilizou e já estamos vendo um aumento nas pessoas reportando sintomas.

E como seria uma queda sustentada, que daria para flexibilizar as restrições com segurança?

Quando a gente analisa os casos, a gente analisa quanto eles crescem de um dia para o outro. Por exemplo, hoje eu tenho 100 e amanhã 110. Aí eu faço a média móvel dos sete dias, porque há disparidades nos fins de semana, com serviços que não funcionam. Pega essa média móvel e vemos como está crescendo, se a taxa de crescimento estiver positiva, significa crescimento. Quando essa taxa começa a cair, e vira não uma taxa de crescimento, mas uma taxa de queda, com menos casos a cada dia, e isso se mantém por pelo menos 14 dias, aí podemos falar em queda sustentada.

Então uma quarentena com menos de 14 dias adianta?

Adianta pouco. Ela até reduz a mobilidade, e o primeiro passo é a desaceleração da subida. Quarentena de oito ou cinco dias pode dar uma pequena desaceleração, mas as de final de semana não adiantam. Porque a pessoa vai pegar o vírus na sexta, vai ficar com ele e incubado e só começa a transmitir na segunda ou terça-feira. Mesmo que fosse um pessoa cuja período infeccioso começasse no sábado, que é o primeiro dia desse tipo de quarentena, ainda estaria transmitindo na segunda-feira. Não adianta. O prazo é o mínimo dos mínimos o ciclo do contágio, que é de 14 dias. E tem que reduzir a mobilidade. No Rio Grande do Sul permitiram cultos com até 30 pessoas, o que é um potencial para surtos muito alto. Isso acaba comprometendo a quarentena.

Pernambuco dá sinais de desaceleração, mas ainda é um patamar altíssimo. Quando vem a nova alta, já vem forte?
Vem alto. Porque vamos supor que há dois mil casos por dia e se estabiliza assim. Depois de 4 ou 5 dias de flexibilização vai para 2,1 mil, 2,2 mil, 2,4 mil…Quanto mais alto o número que se estabiliza, mais rápido é para aumentar. Para um caso virar dois mil casos, demora mais do que dois mil virar 4 mil. De dois para 4 mil casos pode acontecer em questão de dias. Por isso que usar a ocupação de leitos para abertura não faz sentido, porque mesmo que se tenha 50% de ocupação, em questão de uma semana é possível esgotar os outros 50%, se a transmissão não estiver controlada.

As novas variantes do coronavírus, que são consideradas mais transmissíveis, mudam o comportamento das curvas de aceleração da pandemia? Vocês notam, nas análises dos dados, um crescimento mais rápido nesse ano em comparação a 2020?

Na verdade, o que a gente está notando mais é uma maior gravidade, por conta da carga viral maior, do que um maior contágio. Quem está sofrendo mais são os hospitais. Muitas pessoas graves nos hospitais ao mesmo tempo. A velocidade em que os casos estão crescendo não é de duas vezes. A velocidade segue a mesma. O que acontece é que há mais pacientes graves e mais pacientes jovens, que naturalmente vão lutar mais pela vida em uma UTI. E vai acabar ficando mais tempo internado e ocupando aquele leito por mais tempo e os leitos vão acabar mais rápido também. É uma agravante desse momento.

Como seria uma quarentena ideal em um estado como Pernambuco que se mantém há mais de um mês com ocupação de UTIs acima dos 95%, mesmo tendo aberto mais de 500 leitos nesse período, e 2.000 casos por dia?

O que a gente tem visto é que além da quarentena, é preciso acompanhar os indicadores de mobilidade. Eu acompanho pelo Google, que divide por categorias como transporte público, comércio…porque essa mobilidade tem que baixar junto com o decreto, ou com que for feito para que ela baixe. Araraquara, por exemplo, fez um lockdown bem interessante, fechou tudo e só deixou farmácia e hospital abertos de 21 de fevereiro a 02 de março. É um período relativamente curto, mas como é que funcionou bem? Quando olhamos a mobilidade em Ararauqara vemos que começou a cair bem antes, no dia sete de fevereiro, e não no dia 21, quando o lockdown foi decretado. Os hospitais lá se esgotaram no dia 06 de fevereiro. Principalmente em cidades pequenas, acredito eu, as notícias de que o primo foi intubado, um vizinho faleceu…gera um isolamento. E o lockdown foi a última cartada. Então a queda de mobilidade lá durou do dia 07 de fevereiro até 07 de março, porque quando acabou o lockdown as pessoas não saíram correndo para as ruas. Aí conseguiram baixar. Mas a tendência, depois que reabriram, já está querendo voltar a subir. Aí o que deve ser feito? Teste e rastreamento, para entender onde estão os surtos enquanto os casos estão baixos, para não deixar crescer de novo. Porque aí fica um abre e fecha eterno, se deixa para fechar só quando está lá em cima.

Com catorze dias de quarentena bem feita, com redução de no mínimo 60% da mobilidade em comparação ao que era pré-pandemia, começa a se ver uma redução. O restante do tempo que vai ser necessário de quarentena vai depender até onde se deixou chegar. Se for um número baixo, como na Austrália, que fazem lockdown com 13 casos, em dezoito dias podem abrir tudo. Não deixam o foguete subir e zerou logo a transmissão comunitária. O Reino Unido tentou salvar o natal e fez um lockdown em 04 de janeiro e só agora, entrando em abril, é que estão flexibilizando.

No Brasil os motivos para quarentena se baseiam muito em números de mortes e em ocupação de leitos de UTI. E não em número de infecções. Quais as implicações disso?

Isso é um erro. Eu uso sempre uma analogia de que as infecções são a fumaça, que indicam onde vai ter incêndio. E o Brasil se baseia em cinzas, escombros. “Agora, tem um monte de escombros, vamos cuidar”. Ou seja, já tá pegando fogo há tempos. Isso é um problema sério. Se a gente apertasse um botão mágico e a covid parasse de ser transmitida, só morresse quem já está contaminado. Mesmo assim, iriámos ficar um mês ou mais com números altos de morte. Olhar para as mortes é olhar, no mínimo, para infecções de um mês atrás. É muito errado se basear em leitos e mortes, tem que se olhar a velocidade de crescimento dos novos casos. Quanto mais rápido notificar, melhor enxerga. O indicador de positividade, que são os testes RT-PCR positivos, divididos pelos testes totais, que mostram as pessoas com o vírus ativo, tem que ficar baixo. Uma porcentagem de controle é 3%, 3,5%. No Distrito Federal está em 50%. Se calcular a taxa de transmissão com uma subnotificação alta, ela vai dar baixa. Então é preciso analisar a taxa de positividade dos testes também. Aqui no Brasil não controlamos a subida, não controlamos a mobilidade, não controlamos início de sintomas, não controlamos testagem. A gente só percebe que o negócio está sério quando os hospitais começam a lotar, os cemitérios começam a lotar. E aí é tarde demais.

No ano passado, Pernambuco viveu o pico de mortes em maio. E depois baixou. Em setembro e outubro teve até dias sem mortes notificadas no Recife – embora o governo ainda esteja notificando hoje mortes ocorridas em abril do ano passado. A gente pode esperar nesse ano alguma sazonalidade parecida da covid-19?

Eu não apostaria de maneira alguma na sazonalidade baseado no que a gente viu no ano passado. O Brasil tem uma curva sazonal de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) causada por vírus respiratórios que começa na semana epidemiológica 7 no Norte, depois no Nordeste e daí Centro-Oeste, Sudeste e Sul. E ela faz todo um caminho muito conhecido. Quando entrou 2020, com a covid, essa curva da Srag até estava seguindo esse desenho, mas numa quantidade muito, muito, muito maior. Mas aí o que aconteceu? A nossa mobilidade estava muito mais baixa. A gente praticamente eliminou a gripe e o vírus sincicial respiratório em março. A queda da covid tem muito mais a ver com a mobilidade do que com a sazonalidade. E o que aconteceu? A partir de setembro a mobilidade começou a aumentar. Teve feriado de 7 de setembro, 11 de outubro, 2 de novembro, eleições…isso foi pondo mais lenha na fogueira e a doença se descolou da curva sazonal. Em setembro, já avisamos que a taxa de queda tinha começado a frear. Em outubro virou. Começou a aumentar em novembro e virou exponencial em dezembro. A sazonalidade é ligada também ao comportamento. Começa em fevereiro porque também é o início das aulas. No Sul, os ônibus fecham as janelas com o frio. Se a gente enlouquecesse e deixasse a janela aberta mesmo com chuva, a sazonalidade ia ter um efeito menor. Só que no caso da covid, como ela é exponencial, faz muita diferença esse comportamento.

Pela análise dos dados que temos hoje, você vê alguma luz no fim do túnel? Alguma indicação de quando vai começar a melhorar?

Vai depender muito do nosso comportamento. Algo que mudou do ano passado para cá é que a epidemia no Brasil está interiorizada. Começou nas capitais e foi indo para as outras cidades. Havia estados com capitais com muitos casos e cidades sem nenhum. Agora não temos mais isso. A curva está síncrona, praticamente igual. Aumentamos a mobilidade quando não deveria. Se Pernambuco tivesse feito essa mesma quarentena lá no final do ano, provavelmente teria freado no começo, não teria subido nesse nível. Estamos em alta em todo o Brasil, praticamente. Fecha, porque está meio obrigado a fechar, porque o negócio está muito sério, mas já quer reabrir logo, não quer esperar. O Distrito Federal está fazendo isso, Pernambuco, Rio Grande do Sul. Ontem vi que Salvador vai reabrir tudo, mesmo sem ter UTIs, com o argumento de que tem 11% do município vacinado com a primeira dose. Isso não significa nada.

A previsão para o Brasil então é tenebrosa?

Se continuar assim, em abril vamos ter um platô, talvez até um crescimento no final do mês, e em maio um novo crescimento. Não consigo nem imaginar até onde vamos chegar. Fiz uma projeção no começo de março, sempre tentando ser otimista, e calculei 4.000 óbitos para o final de abril. Na época, estávamos com 1.900 mortos por dia. Aí hoje a gente já está com 3.800. Tem uma projeção do professor Carlos Machado, da Fiocruz, que projeta cinco mil mortes diárias para o final de abril. Ele levou em conta também a mortalidade por conta do colapso dos hospitais, o que leva as pessoas a morrerem mais rápido, sem atendimento. É um número plausível, infelizmente não é maluquice.

E com a vacinação ainda muito lenta no Brasil…

A solução não é a vacina em si, mas a cobertura vacinal. Quando tivermos uma boa cobertura é que vai começar o efeito global de uma pessoa blindar a outra. Os maiores de 80 anos já podem estar vacinados, mas eles não vivem em uma bolha. Vivemos em uma população heterogênea. Os poucos vacinados estão circulando entre vacinados e aumentando a chance deles de pegar a doença. Porque aquele percentual da vacina é relativo: é a chance de não pegar a doença em comparação com os não vacinados. Se é uma vacina com 65%, você tem 65% mais chances de não pegar a doença comparado com uma pessoa que não se vacinou. Agora, se há um ambiente de pandemia descontrolada com aumento de chances de um não vacinado pegar, você também está aumentando as chances do vacinado pegar, só que ele tem 65% a menos. Precisaríamos muito de uma coordenação nacional, porque inciativas isoladas acabam descredibilizando as ferramentas de contenção. Um prefeito fechou tudo em janeiro, começou a baixar, mas o estado não fechou. E quando Belo Horizonte, por exemplo, estava pronta para reabrir, o estado começou a enviar pacientes para lá. E aí começou a lotar os hospitais e a infecção voltou a subir em Belo Horizonte. Essa descoordenação pode descredibilizar as ferramentas, porque não vai funcionar direito, vai ser uma quarentena mal feita.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com