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“Não tem como entender a democracia sem compreender a colonização que se dá a partir da racialidade”

Em entrevista exclusiva, o deputado estadual do Paraná, Renato Freitas (PT), fala sobre sua trajetória política

Giovanna Carneiro / 11/11/2024

Arnaldo Sete / MZ Conteúdo

Pela primeira vez no Recife para participar de um debate no Festival Rec’n’Play, que aconteceu entre os dia 6 e 9 de novembro, o deputado estadual do Paraná pelo PT, Renato Freitas, mostrou seu potencial enquanto liderança política do campo da esquerda lotando o auditório do Cais do Sertão e sendo ovacionado pelo público.

Em um diálogo conduzido pelo produtor cultural e realizador do Jornada de MC’s, DJ Big, e sob o tema “Vozes pretas: tecnologia e transformação Social”, Renato Freitas deu fortes depoimentos sobre a sua trajetória de vida marcada pela relação com o movimento Hip Hop e pelo enfrentamento ao racismo.

Nascido em Sorocaba, São Paulo, Renato Freitas chegou ainda criança ao Paraná, onde foi criado pela mãe em uma periferia da Região Metropolitana de Curitiba. O político teve o pai e o irmão assassinados e enfrentou uma infância e juventude marcadas pela escassez de direitos básicos e fundamentais como alimentação e moradia digna. Mesmo com todas as dificuldades, Freitas ingressou na Universidade Federal do Paraná onde se formou em Direito e com isso pôde trabalhar como advogado popular e professor.

Renato Freitas assumiu seu primeiro mandato em 2020 como vereador de Curitiba – eleito com 5.097 votos – e chegou a ser cassado pela Câmara de Vereadores por ter participado de uma manifestação antirracista em protesto pela morte do congolês Moise Kabamge, brutalmente assassinado em 2022 no Rio de Janeiro. O protesto foi pacífico e aconteceu em uma igreja da capital do Paraná. Na ocasião, integrantes da Câmara acusaram o então vereador de invadir a igreja e moveram a cassação por quebra de decoro parlamentar. A própria Arquidiocese de Curitiba se posicionou contra a cassação de Renato Freitas. Graças a uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), Freitas pôde retornar ao cargo de vereador.

Sempre engajado na luta por direitos da população vulnerabilizada, Renato Freitas construiu sua carreira política com o lema “Um de nós” e se colocou como representante da periferia, que é majoritariamente negra e pobre, no espaço político constitucional. Sua campanha para deputado estadual no Paraná resultou em uma votação expressiva e Freitas foi eleito com 57.880 votos, quase dez vezes o número de votos que recebeu em 2020 como vereador.

Sua postura combativa tem gerado diversos embates e discussões políticas na Assembleia Legislativa do Paraná, assim como ocorreu durante o seu mandato na Câmara de Curitiba, e Freitas faz questão de afirmar que não tem medo de “colocar o dedo na ferida” e expor suas opiniões e questionamentos na tribuna. Nas redes sociais do político é possível encontrar diversos vídeos com trechos de suas falas nas sessões plenárias na Assembleia e de fortes embates com os demais deputados na casa legislativa. Em um dos vídeos postados, Freitas acusa o deputado Ademar Traiano (PSDB), presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, de censura.

Nem o próprio partido escapa das críticas do parlamentar. Durante a palestra no Rec’n’Play, Renato Freitas deixou evidente o incômodo que sente pelo baixo número de pessoas negras e a ausência de uma equidade racial nos diretórios e cargos majoritários do PT. Para o político, os partidos de esquerda precisam “parar de escolher só algumas pessoas como representantes e retirar essas pessoas de seus lugares de origem para colocá-las em pedestais, criando bolhas de representação. É preciso deixar essas pessoas em seus territórios e fortalecê-las nesse lugar, nessas bases”.

Em entrevista a Marco Zero, o deputado estadual do Paraná falou sobre sua construção política e as alternativas para o campo político da esquerda no Brasil.

Marco Zero Conteúdo – Você já disse “o rap é meu pai” e utiliza muito da relação com o movimento Hip Hop para falar sobre sua formação política. Como você explicaria essa influência do rap na sua atuação política?

Renato Freitas – O rap salvou a minha vida e também me deu capacidade de articulação verbal, oral, para que eu consiga expressar os meus raciocínios, os meus sentimentos com desenvoltura. Foi graças ao rap que eu consegui me articular e me comunicar, e não à universidade, porque a universidade te induz a uma linguagem empolada, uma linguagem pedante, rebuscada, truncada, de difícil acesso, enquanto que o rap incentiva exatamente o oposto, uma comunicação aberta, transparente e popular. E isso se dá por uma linguagem simples. Eu acredito que qualquer realidade, por mais complexa que seja, tem que ser explicada de forma simples. Se você não conseguir explicar sua ideia de forma simples e rápida, é porque tem um problema muito grave na sua ideia que você está tentando esconder com a linguagem.

Você construiu toda sua campanha política com o lema “Um de Nós” e hoje existe um debate sobre um “identitarismo” nos partidos de esquerda, e alguns vêem isso como algo negativo. Como você contrapõe essa perspectiva negativa sobre o “identitarismo”?

Essa questão de identitarismo traz uma armadilha do poder simbólico. O que é o poder simbólico? É a pergunta que traz consigo a resposta, porque aqueles que nos diz identitaristas não dizem antes o que é o identitarismo, então vira uma conversa de louco.

Afinal, o que é identitarismo? Dou um exemplo: na minha cidade, Curitiba, Jair Bolsonaro teve sua maior votação no bairro de Santa Felicidade, que é um bairro italiano. Por quê? Porque as pessoas viam nele a descendência italiana, reivindicavam essa descendência, se identificavam com ele e votavam nele. Nunca vi ninguém acusar os moradores de Santa Felicidade de identitaristas. Então essa é a primeira questão, é preciso saber o que é identitarismo e essas pessoas que nos acusam não dizem.

O elemento racial indígena e negro constitui, inclusive, a ordem política e econômica vigente, que é a democracia capitalista. Não tem como compreendê-la sem compreender essa colonização que se dá a partir da racialidade. Por isso eu quero saber o que é esse tal identitarismo, para que eles me provem que é um elemento menor, porque nós temos os argumentos históricos, e eles têm algumas palavras soltas, sem significado.

A segunda dimensão dessa discussão é a seguinte, nós somos um país construído a partir do genocídio indígena e da escravização negra, como colônia de exploração. E hoje nós somos neo-colônias do imperialismo norte-americano e do imperialismo europeu. E, nesse sentido, o capitalismo é uma tecnologia de organização socioeconômica determinada e imposta às neo-colônias como forma de expropriar, de explorar essas neo-colônias.

Então, como colônias, nós temos cidadãos de segunda classe e os de primeira classe. Os de primeira classe são os colonizadores da metrópole. E quem são os cidadãos de segunda classe? Aqueles que foram exterminados e escravizados. E os brancos que tiveram diversos privilégios e que herdaram as riquezas e também o poder simbólico e cultural dos colonizadores, funcionam no Brasil como agentes avançados, representantes da colônia. Por isso, essa vergonha do país, essa vergonha de ser brasileiro, essa vergonha do próprio povo, essa vergonha da própria cultura, por isso se referenciam tanto nos Estados Unidos e na Europa.

Por isso também que a exploração aqui é implacável e desumana, porque não se lida com cidadãos, se lida com cidadãos de segunda classe ou até com inimigos, como é o paradigma do direito penal. O que eu quis dizer com isso é que o elemento racial indígena e negro constitui, inclusive, a ordem política e econômica vigente, que é a democracia capitalista. Não tem como compreendê-la sem compreender essa colonização que se dá a partir da racialidade. Por isso eu quero saber o que é esse tal identitarismo, para que eles me provem que é um elemento menor, porque nós temos os argumentos históricos, e eles têm algumas palavras soltas, sem significado. Então, eu acredito que essa discussão tem que ser feita com mais honestidade.

E quais estratégias você acha que os partidos de esquerda, nesse caso especificamente seu próprio partido, podem realizar para que mais pessoas negras possam ocupar o espaço da política institucional?

O primeiro e mais urgente dos passos é dar autonomia e protagonismo para a população negra, para que ela não seja apenas cabo eleitoral de luxo, que é o que ocorre hoje. Os mandatários brancos, de famílias tradicionais, mesmo de esquerda, vão até as lideranças dos povos de terreiro, da capoeira, da luta pelos direitos humanos, do hip-hop, do samba e de tantas outras expressões onde o nosso povo se organiza, identifica as lideranças e copta essas lideranças com vantagens, com salário, com trabalho e, realmente, o nosso fraco é, o nosso calcanhar de Aquiles é a pobreza.

Nós herdamos a pobreza absoluta no processo pós-escravização e, até hoje, nós não temos propriedades. Por isso, se aproveitam disso para nos controlar. É difícil para a gente fugir desse controle, porque precisamos pagar aluguel, sustentar os filhos e, também, porque a gente acredita no partido, e acredita que qualquer pessoa que estiver lá vai representar os nossos interesses. Mas a história tem demonstrado que não é bem assim, que em qualquer momento de crise somos nós os primeiros a ser sacrificados. Então, esse é o primeiro caminho pragmático que o partido deve tomar. É só olhar a executiva do partido. Quantos brancos, quantos negros, qual que é a proporção? A proporção é desigual. Então, o partido tem que saber e conseguir antecipar minimamente o mundo que quer criar na sua própria instância, senão, é hipocrisia.

A reforma agrária convém ao nosso povo e convém a toda a população brasileira

Você defende diversas pautas importantes que apresentam uma ligação na luta antirracista, mas que também estão baseadas em questões sociais e econômicas que afetam toda a sociedade como a desmilitarização das polícias e a legalização da maconha. Contudo, se você pudesse escolher a pauta mais urgente a ser debatida pela sociedade, aquela que apresenta soluções imprescindíveis, qual seria?

Com toda certeza, sem sombra de dúvida, é a redistribuição das riquezas que a humanidade produz, que, no caso brasileiro, é produzida, sobretudo, historicamente, pela população negra. Entre essas riquezas, uma delas se destaca, porque é permanente, que é a terra. Então, a reforma agrária convém ao nosso povo e convém a toda a população brasileira, mas, especialmente, ao povo preto, porque houve a Lei de Terras em meados do século XIX, que preparou a falsa abolição lá na frente, retirando o direito de ter a terra pela posse, deixando a terra apenas por título. E como nós não éramos vistos, sequer, como seres humanos, como a gente ia comprar propriedades, sermos proprietários? Impossível.

Então, a partir disso, todas as pessoas que moravam e tinham seus lugares, suas terras, começaram a ter o seu direito adquirido retirado à força. Pessoas que moravam há dez, vinte, trinta anos, no meio do nada, onde ninguém nunca teve interesse em morar ou reivindicar como seu, a partir desse momento, é esquadrinhado no mapa e todas as pessoas negras que estavam ali, pobres, acabaram sendo expulsas daquela terra, independentemente do quanto que construiu, do tempo que morou, da plantação que tinha ou que não tinha. Então, essa foi uma estratégia cruel de empurrar o nosso povo para os morros, para as margens dos rios, para os alagados e para as demais submoradias, afastadas dos centros urbanos e, portanto, sem acesso aos bens culturais, políticos e econômicos produzidos nas cidades.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.