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A defesa da democracia vai ganhar cores e traços pintados nos muros de Recife e Olinda. Seguindo a tradição do muralismo político de Pernambuco, está nascendo a Brigada da Hora. Num momento em que uma onda conservadora respaldada por um governo interino coloca em xeque direitos individuais e coletivos conquistados desde a redemocratização, grafiteiros e artistas plásticos decidiram ocupar de modo criativo e crítico a paisagem das duas cidades.
A certidão de nascimento da Brigada foi emitida na noite do dia 8 de junho, em uma reunião que juntou 30 artistas e ativistas no número 99 da Rua Treze de Maio, no Carmo, em Olinda. Lá fica a sede da Casa do Cachorro Preto, espaço cultural nascido há quatro anos com o propósito de dar oportunidade para artistas locais exporem seu talento. Agora, a Casa é também o novo quartel-general da Brigada da Hora.
Tudo começou com uma provocação. Isso mesmo, os jovens grafiteiros foram provocados pelo experiente e premiado artista plástico Raul Córdula, de 73 anos, e pela fotógrafa e ceramista Amélia Couto. Por que não unir a energia de sua juventude e a força estética de seus desenhos para levar às pessoas nas ruas a defesa dos princípios democráticos e do respeito à diversidade?
A provocação de Raul e Amélia foi feita à jornalista Sheila Oliveira e ao artista plástico Raoni Assis, coordenadores da Casa do Cachorro Preto. Os dois decidiram então convocar pelo Facebook e email os colegas do meio artístico. A expectativa foi mais do que superada na noite do dia 8, quando as pessoas começaram a chegar e ocupar o círculo de cadeiras montadas no quintal.
Estavam lá artistas como o arquiteto piauiense Demétrio Albuquerque, autor do Monumento Tortura Nunca Mais; o baiano mais olindense de toda Olinda, o artista plástico e músico Paulo do Amparo; Bozó Bacamarte, um artista que se firmou nas ruas com os traços marcantes da xilogravura popular; Glauber Arbos, que você pode até não conhecer, mas já deve ter sido impactado pelos seus trabalhos nos muros do Cais de Santa Rita e no bairro de Casa Forte; Manoel Quitério, que dá vida a muros e espaços públicos com as cores fortes de sua arte em Olinda e Recife, mas também em Paris e Amsterdam; a artista plástica Joana Liberal, integrante dos coletivos Gráfica Lenta e Art Monta; Johny Cavalcanti, membro do coletivo 33 Crew e coordenador do Recifusion; o ilustrador e designer João Lin, entre tantos outros.
Estava lá também o cartunista Cleriston Andrade, que recentemente lançou o livro Minha Verdade Sobre a Ditadura em 64 Charges. Foi de Cleriston a ideia do nome da Brigada da Hora, uma homenagem ao escultor, desenhista, gravador e ceramista Abelardo da Hora, referência no Brasil de arte engajada, compromissada com as causas democráticas e sociais. A fome e as dores do trabalhador nordestino foram temas recorrentes na obra do artista morto aos 90 anos em setembro de 2014.
Abelardo integrou o Partido Comunista Brasileiro (PCB) a partir dos anos 1940. Sentiu na pele o resultado do modelo repressivo da política brasileira contra aqueles que defendem uma divisão mais equânime das riquezas nacionais. “Fui secretário de agitação e propaganda do partido. Fui preso mais de 70 vezes. Umas 30 somente na época da campanha a favor do monopólio estatal do petróleo. Eu terminava o discurso e já tinha a polícia me esperando”, relembrou em entrevista ao portal G1 poucos meses antes de sua morte.
A obra do artista, que serve de inspiração política e estética aos jovens grafiteiros da Brigada da Hora, também ocupa as ruas do Recife. Fundador do Movimento de Cultura Popular (MCP) e do Ateliê Coletivo, nos anos 1960, Abelardo da Hora deixou sua marca em esculturas espalhadas pelas praças da capital pernambucana: os violeiros e o vendedor de caldo de cana no Parque 13 de Maio; o sertanejo na Praça Euclides da Cunha em frente ao Clube Internacional; o vendedor de Pirulitos, no horto de Dois Irmãos; os retirantes nordestinos no Parque Dona Lindu.
A fotógrafa e ceramista Amélia Couto explica o porquê do nome da brigada: “A hora é o momento, é a urgência. Mas é uma homenagem ao nosso querido e combativo Abelardo da Hora, que até o último momento manteve a sua posição. Ele merece isso. E hoje ele retrata, mesmo não estando vivo, a urgência de nós estarmos na rua. O nome dele diz isso. É um presente nosso à sua memória. Então é da Hora com H maiúsculo mesmo. Brigada da Hora”.
Não há como falar do novo grupo sem lembrar o pioneirismo da Brigada Portinari, fundada em 1982 por artistas como o próprio Cleriston, Luciano Pinheiro e Cavani Rosas. A brigada surgiu em apoio à candidatura de Roberto Freire a deputado federal e de Hugo Martins a deputado estadual. Naquele ano, Marcos Freire disputava pelo MDB o Governo do Estado. A brigada levou para os muros do Recife a defesa da democracia e a crítica ao agonizante regime militar que vivia seus últimos anos de vida.
A edição de 1 de setembro de 1982 da Revista Veja explicava a ação da Brigada: “o resultado é um colorido vale-tudo em que convivem caricaturas do ministro Delfim Neto, flores, bichos, cenas de trabalho e até personagens de histórias em quadrinhos, como o Capitão América”. Luciano Pinheiro arrematava na revista: “A politização que o mural provoca é muito mais importante que o resultado estético”.
A referência agora a Abelardo da Hora segue a tradição política e artística da homenagem ao pintor Cândido Portinari, feita há 34 anos. Assim como Abelardo, Portinari militou no PCB até pouco antes de sua morte, em 1962. Sua obras retrataram em diversos momentos a saga de luta e dor do trabalhador e do povo brasileiros. Seus murais ganharam o Brasil e o mundo. Um dos mais conhecidos deles, intitulado Guerra e Paz (14mx10m), ocupa o hall de entrada da sala da Assembléia Geral, no prédio sede das Organizações das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque.
A Brigada Portinari inspirou outras tantas brigadas (Olinda Somos Nós, Amar Olinda, Henfil) e teve papel de destaque no Recife na candidatura vitoriosa de Miguel Arraes ao governo de Pernambuco em 1986. O muralismo brigadista pernambucano de certa forma tem a influência do muralismo mexicano, que ganhou força a partir dos anos 1920, filho direto da Revolução Mexicana do começo daquele século, que cativou jovens artistas como José Clemente Orozco e Diego Rivera.
Para o artista plástico Raul Córdula, cuja provocação fez nascer a Brigada da Hora, a arte pode ser um instrumento de aproximação e identificação com o cotidiano das pessoas. “Há um conceito sobre arte que é a estética da existência. Não é que qualifique ou enquadre. Mas que indique uma identidade, do grafiteiro, do desenhista de história em quadrinhos, do cineasta, de quem faz arte, vídeo-arte, instalações. Isso está muito envolvido com a questão da existência. É muito diferente da atitude do pintor com seu cavalete, em sua casa, dentro do seu mundo, para reproduzir a natureza ou não”.
A reflexão feita pelo artista sobre a gravidade do momento político atual e a importância de uma arte que fale diretamente às pessoas nas ruas está na raiz da reunião do dia 8, que originou a nova brigada. “Essa existência é de um cotidiano que nós vivemos plenamente. A cidade, a urbe. Então eu não podia deixar de pensar na brigadas Portinari e nas outras brigadas, aqui de Olinda, que fizeram história. O outdoor você vê de longe, mas uma pintura que você passa em frente fala ao seu pé do ouvido. É um meio fantástico, especialmente com o propósito político, porque junta esse sentido do engajamento político e social num diálogo direto do artista com o outro”.
A arte engajada de rua não é novidade para os jovens grafiteiros da nova Brigada da Hora, individualmente ou em coletivos eles têm ocupado os muros e paredes de Olinda e Recife nos últimos anos com seus traços questionadores. São traços que se impõem contra a homofobia, o racismo, o preconceito e as desigualdades sociais.
O artista plástico Manoel Quitério gosta de lembrar que a rua é um espaço de afirmação de identidades. “Existe um movimento natural de mostrar na rua a sua mensagem. Você desce ali embaixo e vê que no muro tem um cara que pintou com graxa “V8”, que é o nome da comunidade em que ele mora, aqui em Olinda. Ele pintou com graxa e você vê que tem uma organização estética ali, tem um estudo. E ali está uma mensagem de quem quer se expressar. Essa voz lá de baixo vai subir e vai subir com graxa. É uma voz que quer falar e que vai crescer. É um movimento natural. Uma resposta. É uma contrapropaganda do povo”.
A ação coletiva dos artistas que pintam muros e paredes nas ruas é uma necessidade que se impõe pelas circunstâncias. “Um segura o outro. Os espaços são grandes e às vezes um tem que subir nas costas do outro para chegar ao local e pintar. O trabalho é coletivo”, explica o artista plástico e coordenador da Casa do Cachorro Preto, Raoni Assis. “Eu comecei a me instigar para a arte vendo o desenho de outras pessoas e a rua era muito importante nisso porque você é obrigado a ver. Não tem escapatória”.
Raoni conta que mesmo que nunca tenha cobrado ingresso para acesso às exposições que realiza na Casa do Cachorro Preto, muita gente não entra para olhar os quadros, mesmo quando demonstram interesse pelas obras. “A galera passa aqui na frente, eu vejo que estão interessados e chamo para entrar, mas alegam que estão mal vestidos e ficam olhando da janela. Na rua, as pessoas perdem essa cerimônia. Elas não têm como escapar da obra que está ali, ao lado delas, diante de seus olhos, num espaço público”.
O grafite nos muros é provocativo, ele captura a atenção das pessoas que passam na rua. “Eu conheci muita gente que começou fazendo grafite feio. É preciso ter prática, fazer muitas vezes e ter tempo para fazer. Na comunicação, o conteúdo é importante, mas a forma também é muito importante. Quando você vê um grafite muito bem feito, aquilo cativa você. Faz você pensar sobre o tema. Eu comecei no grafite neste sentido. Queria sair do ambiente apenas da galeria e atingir outras pessoas”, conta Raoni.
A Casa do Cachorro Preto nasceu justamente com essa pegada urbana, de ilustração e grafite. Quatro anos após sua inauguração, ela já abriu espaço para trinta exposições individuais. Muitos artistas fizeram sua primeira individual na Casa. Artistas que se firmaram nas ruas, como Bozó Bacamarte e Manoel Quitério. Duas coletivas entraram permanentemente para o calendário anual da Casa do Cachorro Preto, a das Mulheres, que acontece no mês de março; e a da Pilhagem, uma retrospectiva do ano que termina e uma perspectiva do ano que se inicia, realizada em dezembro.
Na reunião do dia 8 de junho, os participantes discutiram o viés político da Brigada e chegaram à conclusão de que o movimento não deve ser partidarizado. Uma postura diferente do que aconteceu na época da Brigada Portinari, diretamente ligada ao partido de oposição ao regime militar, o MDB, que tinha como figuras de referência Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos e Miguel Arraes. “O momento era outro. Era diferente. Naquela época tudo era muito definido, quem era contra e quem era a favor da ditadura. A vida política e partidária se organizava assim. O que nos une agora é a defesa da democracia, uma unidade na cultura, mas sem vínculo partidário”, explica Sheila Oliveira.
Num outro sentido, Sheila vê aproximações perigosas entre o período da ditadura militar, nos anos 60, e agora, em pleno século XXI, com o governo do presidente interino Michel Temer. Ela lembra que após o golpe de 1964, os militares ainda tentaram dar um caráter institucional ao regime (apesar de todos os pesares), mas que a máscara autoritária e antidemocrática caiu de vez em 1968, com o Ato Institucional Número 5, que fechou o Congresso Nacional, derrubou o que restava dos direitos políticos dos defensores da democracia e intensificou a tortura e os assassinatos nos porões dos DOI-CODI.
Este foi um tema discutido na reunião dos fundadores da Brigada da Hora. “Eles tiram Dilma do poder e depois o que vai acontecer? Já temos uma amostra muito grave nestes primeiros 30 dias. Nos anos 1960 houve um extermínio da luta dos movimentos sociais. O que pode acontecer agora? Esta foi uma preocupação recorrente na conversa que tivemos com os artistas”, afirma a jornalista.
A defesa intransigente da democracia e dos direitos sociais e individuais conquistados ao longo dos últimos anos dá o tom do discurso de Amélia Couto: “O recado tem que ser direto: respeitem o nosso voto. Eu quero meu voto de volta. Por isso eu defendo o Fora Temer e o Volta Dilma. Esta é a minha posição pessoal. Quero de volta os direitos constitucionais que conquistamos com muita luta em 1988 e que estão sendo retirados agora. Nossa democracia está sendo ferida, cortada. Não podemos aceitar isso”.
É muito simbólico que a primeira ação da Brigada da Hora vá acontecer neste domingo, dia 19, à tarde, nos muros e paredes (ou seria melhor dizer ruínas) do antigo Cine Duarte Coelho. Inaugurado em 1942, o cinema está desativado desde 1980, embora várias gestões municipais tenham se comprometido a restaurar e reativar a sala. Um descaso com a arte que perdura por mais de 30 anos em plena cidade dos artistas.
A ação é simbólica também porque o cine Duarte Coelho, localizado no Varadouro, de certa forma divide a cidade histórica da comunidade V8. Ou seja, divide a cidade dos cartões postais e do turismo, conhecida e admirada em todo o Brasil, daquela outra cidade pobre, periférica, invisível.
É para dar luz e olhar a esta invisibilidade cultural e também política que nasce a Brigada da Hora. Provocativa e engajada como a experiência que Raul Córdula viveu ao expor seus quadros na galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, em 2012. Aos 70 anos, Córdula convidou um grupo de jovens grafiteiros que dançavam break a visitar a exposição. Eles não queriam entrar na galeria porque sentiam-se incomodados com a grandiosidade do lugar. Raul então colocou painéis do lado de fora para que os grafiteiros pudessem fazer e mostrar sua arte.
No último dia de exposição pediu que um grupo dançasse break em cima de uma de suas obras – um desenho de 4 metros por 1,5 metro fixado no chão da galeria – que representava os desaparecidos políticos durante o regime militar, como uma espécie de cova em que estavam escritos os nomes de todos os desaparecidos. Os garotos estranharam a proposta, mas aceitaram o desafio. “De alguma forma eu achava que havia uma ligação. Aquelas pessoas enterradas ali embaixo e os corpos acima em movimento”.
É o que acontece agora com a arte engajada que será produzida pela Brigada da Hora. Uma ligação com as lutas do passado, que a Brigada Portinari tão bem representou e pintou nos anos 80, com os desafios impostos pelo tempo presente e o futuro. Uma ação de “guerrilha artística”, como gosta de classificar o provocador Raul Córdula.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República