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No sertão, enterrar umbigo dos recém-nascidos é plantar esperança

Marco Zero Conteúdo / 23/01/2024
Foto colorida de menino negro, de pele clara, vestindo camiseta e bermuda cinza, agachado em um ambiente rural, observando algo que está entre as plantas e flores.

Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

por Géssica Amorim, do Coletivo Acauã

Crédito: Coletivo Acauã

Quilombo Teixeira, zona rural de Betânia, Sertão do Moxotó, Casa de Dona Dora, 12 de janeiro de 2024:

– Quando a criança está madura, nascendo no tempo certo, a liturgia é essa: ir até a casa da mulher que vai ganhar o neném, olhar pra ela, sentir a barriga, ver se a criança tá na posição certa, ir massageando, acalmando a mãe, e a criança vem sem muita dificuldade. Quando ela nasce, a gente mede três dedos a partir do umbigo e corta o cordão. O pedaço que fica na criança, o coto umbilical, a gente amarra. Quando a placenta sai do útero, a gente enterra em algum lugar perto da casa da mãe, mesmo. Uns sete dias depois, o coto cai e é do costume enterrar também.

– Mas o povo enterra pra quê, Dona Dora? Por quê?

– Isso que resta do parto, você pergunta, né?

– Sim, a placenta, e, depois, o coto umbilical. Por que enterrar?

– A placenta, a gente enterra pra não jogar em qualquer canto, de qualquer jeito. Assim, os bichos brutos não mexem, não vão lá comer. O coto, que a gente chama mesmo de umbigo, tem quem diga que é pros ratos não comerem e acontecer de a criança crescer malina, mexendo no que é dos outros, dando até pra roubar.

– E, pra isso não acontecer, basta enterrar em qualquer lugar?

– Bom, aí, quem sabe é o pai ou a mãe. Se a criança já for grande, ela também pode escolher o canto. Mas o povo tem os lugares certos, sabe? É como uma simpatia, você entende? Tem gente que escolhe a porteira de uma fazenda ou de um curral, pra criança ser fazendeira quando crescer. Enterra no terreiro de uma escola, pra ser estudiosa. No pé de uma roseira, pra crescer bonita, e assim vai.

– A senhora acredita?

– Eu não! Tive 16 filhos e nunca enterrei o umbigo de nenhum. Nem sei que fim levaram. Até hoje, ninguém aqui de casa deu pra roubar. E, por aí, eu também nunca vi essa ruma de fazendeiro que devia ter se criado por aqui. É tudo invenção, mesmo.

– E de onde é que vem tudo isso, Dona Dora? De onde vem esse costume?

– Minha filha, quem fez primeiro, e a razão, eu não alcanço pra dizer. É coisa muito antiga, não sei quem sabe explicar. Já nasci vendo os outros fazendo.

Mais cética do que eu poderia imaginar, a parteira e agricultora aposentada Maria das Dores de Jesus, 79, conhecida como Dora, habitante do Sítio Teixeira, uma das comunidades quilombolas do município de Betânia, me falou sobre a condução do trabalho de um parto normal e sobre as possibilidades de destinos para dar aos seus resíduos – principalmente ao coto umbilical, que costuma se desprender do umbigo do bebê pelo menos sete dias após o parto.

Na barriga de quem está gerando um bebê, o cordão umbilical é a principal ligação física entre a pessoa gestante e a criança. Ele é fundamental para o desenvolvimento saudável e suporte vital do feto. Com o seu nascimento, já podendo respirar e se alimentar sem a necessidade da placenta e cordão umbilical, o coto não teria mais tanta utilidade. No entanto, desde muito tempo e para muita gente, enterrá-lo é parte de um ritual cercado de simbolismos e crenças que sustentam uma tradição popular brasileira: enterrar o umbigo de uma criança – dependendo do local escolhido – pode, de alguma maneira, influenciar o desenvolvimento da sua personalidade e o seu futuro.

A pedagoga Mailza Costa, também moradora do Quilombo Teixeira, conta que o umbigo do seu filho Dhonatas Samuel (foto de abertura), de 11 anos, foi enterrado ao lado de um xique-xique, espécie  de cacto que, assim como as demais, consegue se adaptar e sobreviver em ambientes secos. O xique-xique é arbustivo,  tem o caule ramificado acima da sua base e, geralmente, se desenvolve em afloramentos rochosos e solos areno-pedregosos. No período de estiagem severa, com a remoção dos seus espinhos, costuma ser utilizado na alimentação de muitos animais e chega a ser consumido por humanos. 

Laísa Magalhães. Crédito: Acervo pessoal

“Quando Samuel completou sete anos, eu decidi enterrar o umbigo dele. Como ele já estava grandinho, ele foi com o meu marido procurar um lugar pra fazer isso. O lugar escolhido foi ao lado de um pé de xique-xique. Dá pra ver aqui de casa. Pelo que diz o costume, eu torço para que ele cresça forte, protegido e saiba se adaptar ao que encontrar de dificuldade na vida, assim como o cacto”, conta Mailza.

Em dezembro de 2023, a produtora cultural Laísa Magalhães, de Serra Talhada, no sertão do Pajeú, enterrou o umbigo da filha Açucena, que acabava de completar três meses de vida. O local escolhido foi ao pé de uma bananeira, no sítio dos seus avós, na zona rural de Ipubi, outro município pernambucano a mais de 250 quilômetros e três horas de viagem. “Eu enterrei o umbigo dela em um pé de bananeira porque dizem que dá dinheiro”, brinca Laísa.

“Na verdade, eu sempre ouvi falarem a respeito dessa coisa de enterrar o umbigo das crianças e, quando engravidei, fui atrás de pesquisar sobre os porquês. Tem quem diga, por exemplo, que é pra prender a pessoa ao lugar onde o seu umbigo foi enterrado, mas isso não bastava pra fazer sentido pra mim. Eu alcancei um outro significado, algo maior, que tem relação com as minhas origens. A minha mãe faleceu quando eu tinha quatro anos. Açucena veio para me dar um amor que foi tirado de mim, que é o amor entre mãe e filha. Enterrei o umbigo dela entre as bananeiras do sítio onde a minha mãe nasceu porque enxerguei nisso uma forma de me reaproximar dela e superar o meu luto. Pra mim, foi como plantar a possibilidade para que o nosso amor cresça sem as dores do meu passado ”.

Sítio dos Nunes, Flores, Sertão do Pajeú, casa de Maria de Fátima, 13 de janeiro:

– Mãe, onde foi que a senhora enterrou o meu umbigo?

– Géssica, aqui mesmo, em Sítio. Acho que foi bem no quintal daquela casa, ali, onde Creuza mora. Aquela, que era de Zé de Adolfo. Eu morei lá uns meses, quando tu nasceu.

– E a senhora enterrou por quê?

– Porque o povo diz que tem que enterrar, pros bichos não comerem. Tem que enterrar.

– Só por isso? A senhora acredita?

– Eu não sei mais a respeito disso, não. De primeiro, eu acreditava. Agora, não acredito mais. Mas, por via das dúvidas, o caba enterra.

Dona Dora, a parteira que não acredita no significado da tradição de enterrar umbigos. Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

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Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

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