Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Okado ainda era um moleque de 11 anos quando começou a se ligar na edição dos vídeos dos b-boys gringos, principalmente a galera dos Estados Unidos e Coréia. Aquela mistura do break com o audiovisual mexeu com o jovem. Começou ali o desejo que realizaria mais tarde de editar os próprios vídeos de suas danças e músicas. Aprendeu participando de oficinas e cursos que iam aparecendo.
“Eu fui desenvolvendo esse gosto com o tempo. Sempre que a gente ia fazer algum trabalho da oficina de vídeo, como eu já dançava e fazia as rimas também, a galera meio que me pressionava para atuar, tá ligado? Daí durante um bom tempo eu atuei por livre e espontânea pressão, mas fui perdendo a vergonha e ganhando o gosto de estar de frente pra câmera.”, conta.
Foi de frente para as câmeras que Ellan Barreto, o Okado do Canal, 28 anos, se tornou conhecido para além da sua quebrada, na comunidade do Canal, no Arruda, Zona Norte do Recife. Primeiro com o longa A Princesa do Beco e o Lampião Cromado – de 2017, dirigido por Kurt Shaw e Rita de Cácia Oenning da Silva – e, mais recentemente, protagonizando o filme Rio Doce, de Felippe Fernandes, lançado em 2021 e vencedor na categoria Melhor Filme do Festival Internacional de Curitiba. Mas é atrás das câmeras que ele e a companheira Amanda Dias vêm construindo uma outra cena, investindo na criação de uma escola de cinema na periferia onde moram.
“De uns seis anos mais ou menos pra cá, eu comecei a perceber o quanto que a galera ficava impressionada com o meu talento. E eu ficava pensando, caramba, é fogo que a galera fique impressionada comigo, mas eu no final das contas não sou nem um terço do talento que a galera tem lá na minha quebrada, tá ligado? Daí, no meio de uma dessas produções, eu fiquei viajando em como seria se tivesse uma escola de cinema aqui”.
O aqui é o espaço cultural Ladobeco, que Okado coordena e que contou inicialmente com o apoio da ONG Usina da Imaginação. Funcionava como uma espécie de biblioteca, tinha ensaios de break, de rap, mas, com a inserção de Okado no mundo do cinema, veio a ideia de investir mais no audiovisual. Com o dinheiro do cachê de Rio Doce (“eu nunca tinha recebido uma grana daquela e nem sabia como gastar”), ele decidiu comprar um terreno para construir a escola de cinema ao lado do espaço cultural.
O audiovisual não mudou apenas a vida de Okado, ele também teve um impacto tremendo na trajetória de Amanda Dias, 24 anos, cogestora do espaço e companheira do rapper. Amanda trabalha com direção de arte, maquiagem, figurino… e também escreve. Além de tocar a direção de arte, alguns dos clipes de Okado foram roteirizados por ela.
“A gente tem crianças aqui que nunca estiveram num cinema e a experiência mais próxima do cinema foi em filmes que viram a partir de cineclubes que a gente fazia aqui no espaço, meio que na tora, com lençol. Qualquer casa que você for aqui tem sempre uma TV ligada e aí a gente ficou nessa lombra de incentivar esses jovens a perceber que a arte do audiovisual é muito mais do que o que passa na televisão. E aqui é um lugar muito rico de artistas que não sabem como se promover”, explica.
Para Amanda, “uma escola de cinema na quebrada vai abrir o horizonte e plantar mais essa sementinha, de que eu posso ser fotógrafo, trabalhar com marketing, ser músico, advogado, eu posso ser um médico, tem um estádio aqui bem perto e eu posso ser um jogador de futebol, eu posso ir pra lua, posso ser quem eu quiser ser”.
O espaço cultural praticamente salvou a vida dela, afirma, na medida em que foi aí que passou a entender que podia se inserir no mundo da arte. Antes dali, quando morava com a avó em outra comunidade, ela havia trabalhado em serviços gerais de bar, no bairro de Casa Forte, e em chapa de hamburgueria. Como ela mesmo fala, “trabalhos que você trampa de quatro da tarde até quatro da madrugada para ganhar 50 reais”. “Foi só quando eu vim pra cá que entendi que eu posso fazer um bom trabalho e posso receber bem, posso ser reconhecida”, afirma.
Amanda critica a falta de continuidade das iniciativas sociais que aparecem pelas quebradas, fomentam o lugar e, “quando o pessoal tá com gás”, simplesmente vão embora. “Acaba que os meninos voltam e se perdem para um caminho muito mais fácil. Com uma escola de cinema dentro da comunidade, não tem como. A galera vai ter que vir aqui, vai ter que escutar que aqui tem uma escola de cinema, que aqui tem um estúdio, que se você quiser gravar seu clipe de brega funk aqui você vai gravar, se você quiser aprender só sobre áudio, gravar sua música, também. Vir de outra comunidade pra cá…”.
Foi preciso muito trabalho para limpar o terreno onde Amanda e Okado pretendem construir a escola de cinema. Tiveram que aterrar uma área insalubre, onde alguns moradores criavam porcos. Hoje, com o concreto, já rola batalha de break, de MCs e outras atividades. Os dois pretendem tocar as obras sem pressa, de forma pensada, para garantir uma boa infraestrutura, com salas, copa. “E aí a gente tá indo aos poucos, vendo como é que faz cada parte, mas sonhando que um dia isso aqui vai estar lindo”.
O investimento em audiovisual já é uma realidade. No ano passado, os dois aprovaram projeto pela Lei Aldir Blanc e o espaço realizou uma série de oficinas de roteiro, atuação, cenografia, maquiagem cinematográfica, figurino, captação de áudio e trilha sonora, acessibilidade no audiovisual e design gráfico, entre outras. O objetivo era abranger todas as áreas do cinema para que os alunos e alunas entendessem cada uma das etapas envolvidas na produção de um filme e aprendessem também como divulgar a sua produção.
Este ano, em maio, formaram-se duas turmas para oficinas de fotografia e edição de vídeo. Amanda conta que, quando vem gente de fora da comunidade para ministrar as oficinas, às vezes as pessoas da comunidade ficam mais acanhadas porque não entendem a linguagem. “Quando são oficineiros como Yane, é diferente. Yane é da favela, fala a língua que a gente tá falando aqui”.
Yane Mendes é cineasta periférica e uma das coordenadoras da Rede Tumulto. Por quatro dias, ela ministrou aulas de fotografia para duas turmas do Ladobeco, no Arruda. As aulas de edição de vídeo ficaram a cargo de Quentin Delaroche. Yane se sentiu desafiada e preparou um plano de aula para estimular a troca de experiências entre a turma e trazer vivências suas que vão para além do audiovisual autoral, abordando também o seu dia a dia na assessoria da mandata das codeputadas Juntas e na atuação junto a grupos de coletivas que contratam o seu trabalho.
Ela divide a coordenação da Rede Tumulto com Flora Rodrigues e Elizabeth Fernanda. “A gente acredita que não tem mais como a gente funcionar só, sabe? A cidade, o estado, o país precisa entender que, quando a gente trabalha em rede, a gente consegue enfrentar quem realmente são os nossos inimigos”. O espaço Ladobeco é um dos integrantes da Rede, que conta ainda com outros colaboradores e articuladores no Arruda e em outras regiões da Região Metropolitana do Recife.
No curso, Yane expandiu a perspectiva do audiovisual para a ideia de comunicação popular. No entendimento de que nem sempre vai dar pra fazer um filme, mas pode rolar de colocar um cartaz na rua e sair colando. Ela trouxe essa provocação. Pegar um trecho de um texto que um amigo escreveu e que despertou um novo olhar para um tema, tirar xerox, botar na padaria e distribuir.
“A rede tumulto vem pra dizer que, em várias linguagens e de diversas maneiras, a gente tem que se comunicar, a gente tem que trocar, a gente tem que falar das nossas dores e das nossas potências. Não dá mais para a gente ficar calado enquanto tem rostos e corpos que predominam tomando conta das nossas narrativas. E nem sempre são corpos que, sei lá, tão falando de contra ao que a gente acredita, mas não são os nossos, entende?”.
Yane costuma dizer que ela mesma é fruto de um projeto social, o Oi Kabum!, e desde o início da sua trajetória encara a questão da formação como uma missão de vida. Por isso, nas aulas, ela tratou do audiovisual, da fotografia, da criação de imagem, mas principalmente “do olhar político que só a gente que é da favela, que vivencia tudo, de bom e de ruim, mas tudo muito intensivo, só a gente tem”.
“Estou falando de questão de respeito a gênero, sobre a questão da autoestima do povo preto, sobre o reconhecimento como artista e o autoreconhecimento”. Ela diz que deu altos bisus sobre orçamento e como utilizar as redes sociais, mas também “como a gente pode trabalhar o audiovisual de maneira que ele chegue nos nossos e a gente não só produza para umas pessoas que a gente nunca vai saber o que elas acharam sobre os nossos filmes”.
“Quando eu falo do olhar político, eu falo de um olhar que eles sabem que seu conteúdo tem que servir para o mundo, sabe? O seu conteúdo não é só para si. Ele tem que ter função. Quando eu falo de olhar político, eu falo da pessoa que tá com a câmera e tá valorizando o momento que ela tá com a câmera”.
O olhar político sobre o mundo e a valorização do momento de estar com a câmera nas mãos foi justamente o que atraiu a historiadora Ingrid Santos, 26 anos, para o projeto. Criada em Dois Unidos, Zona Norte do Recife, Ingrid hoje mora em São Lourenço da Mata, de onde se deslocou de segunda a quinta por duas semanas para o curso no Arruda. Ela já havia feito uma oficina com Okado e Amanda promovida pelo Paço do Frevo no Compaz da Caxangá e não teve dúvidas de se inscrever agora quando soube da nova oportunidade no espaço Ladobeco.
Ingrid pesquisa arte urbana periférica, arte negra periférica dos centros urbanos, também faz produção artística e cultural. “Tem muita mulher negra fazendo assessoria com outras meninas, então eu tenho feito um trabalho muito nesse sentido e eu acho que falta registro. Acho que a imagem é uma coisa que toca muito, é um processo que, às vezes, qualquer pessoa consegue captar sem você dizer nada. E aí eu tô a fim de fazer um documentário e queria começar a entender um pouquinho, começar a fazer alguma coisa nesse sentido”, explica sobre a opção pelo curso.
A linguagem e a relação com o território foram dois pontos importantes para Ingrid escolher o curso do Ladobeco, reforçando a opinião de Amanda de que a maneira de construir um diálogo de proximidade é fundamental. “Aqui você se identifica muito, então é uma galera muito parecida comigo. Uma galera preta, uma galera periférica, que tá fazendo um corre pra comunidade, tá ligado? Então você se identifica em tudo”, conta Ingrid, falando da dificuldade de se ligar numa aula apenas teórica, “fechada”, abordando “umas coisas que você acha que não consegue fazer”.
“Eu acho que há a possibilidade de continuar projetos futuros, sabe? Depois dessas vivências com a galera eu tenho pensado muito mais nesse formato, porque você aprende o básico, tipo como organizar um roteiro, como botar uma ideia pro papel e depois executar. Então acabei pensando mais na perspectiva do audiovisual do que eu conseguia pensar antes de ter essas vivências”.
Além de produção cultural e pesquisa de arte urbana, Ingrid também trabalha com educação popular, cerâmica … e escolheu o audiovisual para ajudá-la nesse corre do empreendedorismo, especialmente no instagram, aprendendo um pouco sobre fotografia, um pouco sobre edição de vídeo para conseguir engajar as pessoas nas redes sociais.
Por trabalhar profissionalmente há oito anos com fotografia, Marconi Meireles, de 31 anos, morador de Santo Amaro, formado na Focca com bolsa do Pro Uni e hoje cursando uma pós na Unicap, pensou que poderia encontrar mais do mesmo nas aulas de fotografia do curso que ele tomou conhecimento pelas redes, mas mandou o currículo mesmo assim na esperança de ser selecionado porque estava querendo investir no audiovisual, onde tem pouca experiência.
“Eu achava que ia encontrar a mesma coisa relacionada à fotografia que eu já vi, porque já fiz faculdade, tô fazendo pós… e, na verdade, eu pude ver a fotografia de um estilo novo, sabe? Yane me passou uns olhares da galera do audiovisual mesmo, porque, querendo ou não, quando você vai pro audiovisual, para o movimento, as perspectivas são diferentes, então foi muito enriquecedor”.
Assim como Ingrid, Marconi pretende produzir um documentário. Uma história sobre os impactos da pandemia em pessoas que perderam seus empregos e tiveram que se virar em outras atividades para viver num período de crise social e econômica, como um produtor de eventos de música que ele conheceu e hoje é motorista de uber, ou mesmo pessoas que perderam tudo, passaram a morar e trabalhar na rua para sobreviver. Marconi vai focar nos trabalhadores que estão em atividade durante a noite. A ideia partiu do desejo de produzir algo mais autoral. “Todos os trabalhos que eu tenho publicado são em parceria, algo que eu gosto muito de fazer. Mas dessa vez é uma concepção minha. Um olhar meu. Meu primeiro documentário”, conta.
Ele se prepara para inscreve o projeto em editais e queria ampliar sua visão política, considerando que vem de uma comunidade que é marginalizada pela própria mídia, que tem uma fama de ser violenta mesmo que essa realidade local tenha mudado. “Muita gente quando a gente fala que é de Santo Amaro, chega e diz ‘pei, pei’ (imitando o som de tiros). E a gente diz que não é assim, que você entra e sai e ninguém mexe com você, pelo contrário, a galera diz ‘vamos fazer o tour por Santo Amaro’ porque são comunidades que têm coisas enriquecedores e a gente precisa mostrar. Então, entrar em uma outra comunidade que é vista marginalizadamente como a minha e ver o tanto que a galera vem criando e tem vontade de criar, me estimulou ainda mais a continuar com esse projeto que eu estou elaborando”.
A vontade de criar e de se autorreconhecer como criador e criadora de cultura e comunicação é que movimenta as atividades do espaço cultural Ladobeco e de midiativistas como Yane Mendes. “O importante é nunca parar de ousar e de dizer: ‘pô será que eu tô falando sobre algo que ninguém olhou ainda? Talvez a galera olhou, mas não enxergou com o olhar que só a gente tem, sabe? Só a gente que eu digo é quando a gente tem o acesso a arte e cultura e quando a gente sabe o que fazer com isso porque somos o resultado disso. Eu não digo que o audiovisual pode dar certo, eu digo que ele já deu certo porque ele mudou a minha trajetória de vida”, conta a cineasta periférica.
Ela tem incentivado que os jovens adolescentes das periferias coloquem seus rostos e corpos nas redes sociais, ocupem esse espaço virtual com novas linguagens em plataformas como o tik tok. Se é para se comunicar por dancinha, que seja, mas pode aproveitar para trazer um tema local pro debate. “Eu estou cada vez mais pesquisando e trabalhando o afrociberativismo, tá ligado? Uma parada de trazer, de colocar a cara na internet, de colocar as minhas opiniões, que não deixam de ser coletivas porque são opiniões que, eu sempre reforço, não deixam de ser coletivas porque são opiniões construídas nas ruas, por essas comunidades, construídas também pelas minhas vivências”.
Essa relação entre redes e ruas está na essência do olhar de Yane sobre a comunicação. “Eu acredito que um dos maiores ganhos da rede tumulto é a gente acreditar na comunicação online e na comunicação offline e dizer que as duas são importantes. A galera agora entendeu isso. O território offline é necessário, inclusive, pra gente levar coisas inovadoras pro território online”. Sobre a convivência com os chamados haters, ela diz que quem faz produção periférica já convive com eles há muito tempo e fora das redes. “Tem uma galera que só vai assistir o filme da gente pra dizer, ´ei, pô, o áudio tá ruim´, mas nem sabe como é que a gente captou aquele áudio, o recurso que a gente tinha”.
Entrevista Okado do Canal
Por que esse desejo de montar uma escola de cinema na sua quebrada?
A gente foi premiado com o filme que a gente fez aqui na quebrada, a gente foi premiado nos Estados Unidos. Muitas pessoas despertaram esse desejo de ser atrizes, de ser atores, ou talvez só colocaram isso pra fora, externaram isso, porque no final das contas, talvez, muitos deles e delas já tinham esse sonho, mas não tinham coragem de falar, né? Porque sempre o sonho da gente da quebrada é reprimido. A gente é sempre programado para seguir o mesmo padrão. E daí é isso.
O cinema feito aqui vai trazer o olhar daqui, diferente de quem olha e projeta a quebrada de fora?
A ideia do espaço aqui é fomentar que a galera mostre a sua cara, conte a sua própria história, a sua própria narrativa. Frequentando alguns festivais de cinema eu percebi que tem muitos filmes que até falam da periferia, mas a periferia não se identifica porque falam de cima pra baixo, de fora pra dentro. Muitas vezes atores e atrizes que interpretam pessoas da periferia nem da periferia são, estão ali só para poder fazer o seu trabalho e pronto. Não tem uma pesquisa profunda ou não é algo que é real, tá ligado? Como seria se tivesse alguém da periferia atuando naquele filme ou se o diretor fosse periférico. A ideia aqui do espaço é isso. Alimentar esse desejo da galera querer ser atrizes e atores, diretores e diretoras, roteiristas. É exportar cinema de dentro pra fora, saca? É o que a gente está fazendo aqui.
A internet muda esse processo?
A gente sabe que hoje, graças a essa ferramenta do audiovisual estar muito mais presente na vida da gente, da periferia, surgem novas referências também, né? Com a internet aí e tal. Porque antigamente a gente não tinha tantas referências assim. Eu tava até comentando esses dias com amigos, que eram poucas as nossas referências. Eu não consigo lembrar pra além de Lázaro Ramos, Taís Araújo, Ronaldinho Gaúcho… Tava até comentando, caramba, a gente via tão pouco as pessoas pretas na TV que em algum momento na minha vida eu achava que Djavan era um cara branco, tá ligado? Quanto eu vi ele, e vi que era um negão assim, pá, pra caralho, é isso… A ideia é essa, mano, criar nossas próprias referências, ser nossas próprias referências e entender qual referência também a gente quer ser, saca?
Se a produção vem da quebrada a narrativa é diferente, não é? Você coloca a tua ambiência ali na história, de onde você veio, teu jeito de olhar o mundo…
Sim, véi, é uma coisa que os alunos da turma da manhã estavam trocando aqui quando finalizou. Já fizeram vários cursos e a maioria dos cursos que a galera fez eram cursos que eram muito teoria, teoria, teoria e teoria… Às vezes, umas coisas técnicas assim, coisas que eles já sabiam, mas que não era algo que preparava, às vezes parecia que era tudo muito bonito. Yane já veio quebrando tudo isso, falando sobre as produções dela de guerrilha, as produções sobre como foi até ela conseguir grana pra fazer os trabalhos dela, conseguir ter um equipamento foda. Falando de vivência também, que nem tudo é as mil maravilhas, que a gente vai fazer coisas que a gente ama, mas vai fazer coisas que são necessárias, que a gente precisa fazer para poder ganhar a mixa e pá, toda essa construção né?
Essa vivência é importante para preparar o pessoal que tá fazendo os cursos?
Uma das coisas que a gente mais foca aqui é na questão da vivência, mano, tá ligado? Que a gente aprende fazendo… Tem clipes meus mesmo que a galera fica de cara, que foram produzidos através da minha experiência no cinema. Eu tava ali fazendo a preparação de elenco… tinha uma pessoa que estava me preparando para poder atuar no filme e daí eu já fui aprendendo técnicas que essa pessoa usou comigo e eu já usei com uma galera que nunca tinha atuado para poder preparar essa galera pra atuar no meu clipe, sacou? E é isso, a gente ir pegando a manha de como fazer e transformando isso para o nosso jeito de fazer, para que o nosso povo entenda, na nossa linguagem.
Tem cursos que não se preocupam com isso.
Eu já fiz cursos e já entrei em editais que, caramba, tinha várias palavras que eu pensei assim, caralho, isso aqui é inglês? Isso aqui é de comer? Aí você vai pesquisar no google e não tem uma parada bem explicativa e tal sobre o que é. Porque, afinal de contas, mano, a gente aqui da quebrada tem que escolher. A gente estuda, tá ligado, e fica com fome. Só a mãe da gente se fodendo. Ou a gente vai largar os estudos e trabalhar desde cedo para ajudar nossas mães a sustentar nossos irmãos, sustentar a casa, tá ligado, é isso.
A realidade se impõe.
No final das contas a gente aprende muitas coisas na prática mesmo, não tem tempo de estudar a teoria e tal, principalmente quem sonha muito né, mano? A gente sonha sempre acordado mesmo, enquanto está no trampo. Diz assim: ‘caralho quando chegar em casa hoje, nem vou pra casa, vou direto pro treino ou vou direto pra aula, pro curso, sei lá… Ou vou pegar o celular e filmar um clipe porque hoje é o dia, tá ligado?’ É tudo muito hoje, agora, a gente precisa fazer… A gente vai se capacitando a cada produção. Eu costumo dizer que cada produção é um treino pra próxima. A gente vai aprendendo e uma coisa que a gente deixou passar nessa agora (‘eita o audio ficou com ruído’), a gente vai ter que botar essa pra frente agora e, na próxima, a gente presta atenção nisso. Ou porque teve um bagulho aqui que ficou um pouco desfocado, tremeu um pouco e tal, aí na próxima vez a gente vê como estabiliza, mas não vamos deixar de fazer não. Porque, no final das contas, a dificuldade é que força a criatividade e, muitas vezes, a galera fica doidinha com algumas estéticas que surgem da favela, mas que surgiram de acordo com alguma dificuldade que a gente teve e a gente não deixou de fazer, saca?
Você já falou em cinema de guerrilha. Você acha que essa produção da quebrada traz em si um posicionamento político? Tem esse sentido também?
Então, sobre o cinema de guerrilha. É foda assim, tem seu peso, é potente pra caramba, tá ligado? A gente hoje, principalmente com um celular na mão, consegue fazer vários registros e denunciar várias coisas que antigamente eram impossíveis. Antes, era nossa palavra contra a palavra de alguém mais importante. Hoje em dia tem essa ferramenta que, em qualquer lugar, qualquer pessoa pode filmar qualquer coisa que serve como uma prova contra alguém pesado. Pra quem produz o cinema, tem suas produções, é foda assim e tal quando está começando, mas, ao mesmo tempo, eu me pergunto onde estão vários artistas que têm produção foda, tá ligado, de cinema de guerrilha, hoje? E que pararam, mano. Porque não têm acesso. Só fazendo guerrilha e guerrilha, enquanto tem outra galera que faz com tudo, com todo aporte financeiro e tal, que tem a linguagem dos editais, que sabe como captar esse recurso, que faz o cinema confortável e que tá aí há vários anos e isso tem muito a ver com o cinema pernambucano,
Você considera uma cena muito fechada?
Mesmo ele tendo toda essa ascensão, que ele tem agora, atualmente, fora e tal, nos útlimos dez anos e cada vez mais crescendo, é complicado ver que é sempre a mesma galera. É como se fosse uma roda de ciranda ali onde tá todo mundo dançando de mãos dadas, de mãos fechadas, dançando a mesma dança e quando quem tá de fora quer entrar, quem tá dentro não quer sair e a galera também não solta a mão pra quem tá de fora entrar. Tá, eu achava que era uma panelinha só, onde a gente pudesse rachar aquela panela e onde, se entrasse um, pudesse entrar outro. São poucas as pessoas que estão lá dentro e tentam mudar isso, como Pedro Sotero, que já chegou aqui e deu oficina de graça. Fellipe Fernandes, tripa, que já deu oficina de graça aqui e foca muito nisso de mudar essa situação do cinema pernambucano, de ser sempre a mesma galera, há vários anos, sempre o mesmo olhar, mas ainda é pouco. Saca aquela boneca russa? Tá ligado, que você chega aqui, mas aquilo é só uma panela porque tem uma outra panela que é ainda menor, que é ainda mais fechada, e tem ainda outra que é mais fechada, e outra, até chegar no miolo. Mano, é cansativo pra caralho tentar burlar esse sistema que já existe. Continuo a dizer que tem uma galera massa, mas é isso velho, tem ainda seu monopólio, bem fechado, e que a gente da periferia nem sempre é bem-vindo, saca? Porque a gente faz a parada nessa de vivência, de feeling, tá ligado? A gente não saca muito de nomenclaturas, de técnicas, saca? O que se choca também.
A ideia da escola é tensionar esse sistema fechado?
No final das contas o que a gente está pensando em fazer e o que a gente está fazendo aqui no espaço cultural Ladobeco, na escolinha de cinema, quando a gente conseguir construir ela e deixar ela de pé, é justamente uma forma de não precisar bater de frente, não precisar querer entrar lá, mas criar nosso próprio sistema, nossa própria forma de fazer, e fazer nossas próprias produções e a galera lá e a gente cá. Se a gente conseguir chegar a um ponto de todo mundo trabalhar junto, do caralho, mas se a gente não é bem-vindo lá, a gente vai criar o nosso próprio jeito de fazer e vai chegar mais duas outras gerações, porque não vai ser agora, porque a gente não tem ainda tanta abertura pra isso, do ponto de vista financeiro, de conhecimento para concorrer a editais, de equipamentos que a gente não tem. Câmeras que custam sei lá tantos mil e pá, mas daqui a duas ou três gerações nossos netos talvez consigam estar de igual pra igual com essa galera e é isso. Sonha.
Qual o planejamento pra escolinha?
Eu cresci aqui na minha quebrada vendo muita gente, muitos dos meus amigos morrerem ou serem presos. Ou estarem vivendo infelizes hoje, alguns que tiveram contato com a cultura e hoje vivem infelizes nos trabalhos que prestam para outros, para grandes empresas e tal… Eu sempre cresci nessa onda, meu irmão, eu fui salvo pela arte e cultura e vou salvar muito moleque através da arte e da cultura, tá ligado? Não é só contando ou falando, tem que ser na prática. E eu sei que, enquanto a molecada tá aqui dentro, é um dia a mais que os pirraias vão passar vivos. Seja alvo de bala perdia, que não é bala perdia. Seja como alvo fácil pro tráfico e etc. Então é isso. Eu sempre tive esse sonho de construir um espaço onde trouxesse a molecada, desse esse alerta, e que eles fossem futuros eus. Em Rio Doce, a galera tava muito aberta, teve umas 15 pessoas daqui que conseguiram trabalhar com figuração, minha mãe trabalhou com figuração e atuou em dois clipes meus depois, desenvolveu esse gosto. E é isso, eu fiquei pensando, caralho, quanto que a gente poderia mudar ainda mais. Porque já tem o break e o hip hop em si aqui dentro, tem dança afro, percussão e outros projetos, mas cinema em si não tem, tá ligado?
Considerando a força do audiovisual…
E pensando que tem muito moleque aqui que produz conteúdo para redes sociais, seja de comédia, seja de maquiagem, seja de dança de passinho, seja de MCs que querem produzir videoclipe, então, tipo, mesmo que não sigam na carreira do cinema em si vão conseguir produzir seus conteúdos com melhor qualidade e a ideia é essa. Eu e Amanda fazemos a gestão do espaço e queremos ampliar para a escola de cinema. A gente não sabe qual a melhor maneira de captar recursos, a gente não sabe se é financiamento coletivo, se vai ser alguma forma de, sei lá, incentivo privado e tal… Não sabemos ainda porque a gente não manja dessa onda, mas é um sonho que a gente vê que cada vez mais está próximo e que uma hora vai rolar e, quando isso rolar, eu preciso ainda estar vivo para ver esse bagulho acontecer, porque muitas vezes aqui no Brasil a galera espera alguém morrer para dizer que virou semente e querer apoiar as ideias que tinha enquanto o cara tava vivo, mas se for pra apoiar, pra quem vai ler essa matéria assim, velho, tem que apoiar agora, porque amanhã talvez seja tarde. É isso.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República